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domingo, 15 de julho de 2012

Stephen Greenblatt e o personagem Shakespeare



Stephen Greenblatt e o personagem Shakespeare

A primeira lembrança que Stephen Greenblatt tem de William Shakespeare remonta aos 12 ou 13 anos de idade, quando foi apresentado, em sala de aula, à comédia pastoral “As you like it” (“Como gostais”), do dramaturgo inglês. — Uma péssima escolha para alunos desse nível. Éramos garotos cheios de hormônios e espinhas. É um absurdo para qualquer pessoa dessa idade, porque se trata de uma comédia bastante complicada e sofisticada de quiproquós de gênero e personagens travestidos. Hoje a considero fascinante, mas na época me lembro de achar horrível. Não me recordo de ter desgostado de algo tão intensamente — diz ao GLOBO em sua sala no prédio da biblioteca Harry Elkins Widener Memorial, na Universidade de Harvard.

Sua descoberta de Shakespeare como “algo poderoso” se deu alguns anos mais tarde, quando outro professor dedicou mais de um semestre ao estudo do texto de “Rei Lear”. A reveladora experiência o marcou para sempre. Hoje, Stephen Greenblatt é reputado como um dos maiores especialistas na obra e na vida de William Shakespeare, e sua biografia “Como Shakespeare se tornou Shakespeare” — com lançamento previsto para o dia 8 de dezembro no Brasil pela editora Companhia das Letras, com tradução de Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra — foi finalista do prêmio Pulitzer e permaneceu por semanas na lista de mais vendidos do “New York Times”.

Intelectual de curiosidade infatigável, orador e ensaísta de prosa cativante e erudita, Greenblatt é reconhecido como o pai da corrente teórica do novo historicismo, balizada por vertentes do marxismo e do desconstrutivismo e cultuada nos anos 1980. O novo historicismo defendia a análise de uma obra de arte através de seu contexto histórico e, simultaneamente, a compreensão da história cultural através das obras. Em 2008, escreveu a quatro mãos com o autor americano Charles Mee a peça “Cardenio”, sobre o texto homônimo de Shakespeare dado como perdido em 1613, e encenada em diferentes países, inclusive no Brasil.

Seu ensaio recentemente lançado nos EUA, “The swerve: how the world became modern” (“A guinada: como o mundo se tornou moderno”, em tradução livre), narra a trajetória do manuscrito “De rerum natura”, de Lucrécio, escrito por volta de 50 a.C. Um exemplar do poema em hexâmetros, de 7.500 versos, foi redescoberto em 1417 pelo humanista italiano Poggio Bracciolini, um ex-secretário papal “caçador de livros”, na biblioteca de um monastério germânico. A obra, considerada herética pelos crentes, verseja a teoria do atomismo, critica a religião, nega a vida após a morte, afirma a inerente sexualidade do universo e credita exclusivamente ao homem seus desígnios sobre a Terra. Antes condenados ao olvido, os versos ressuscitados influenciaram o pensamento e as artes da Florença do século XV e, num espectro mais amplo, o mundo ocidental nos 400 anos seguintes por meio do interesse de pensadores como Galileu, Giordano Bruno, Montaigne, Charles Darwin, Thomas Jefferson, Sigmund Freud e Shakespeare.

— Foi o nascimento da modernidade, e o que nos deu, em última análise, Darwin, Einstein ou Freud. Sejam quais forem nossas heranças hoje, vêm direta ou indiretamente da volta à circulação desse objeto calado. Eu sou fascinado por isso — confessa Greenblatt, na entrevista a seguir.

Como foi sua descoberta de William Shakespeare?

Eu tive um professor brilhante, John Harris, que passou quase um ano inteiro nos ensinando uma única peça, “Rei Lear”. É um texto sobre pessoas de idade, nada que se relacionasse à minha realidade imediata, mas a intensidade existencial da peça deve ter me tocado num nível bastante profundo quando tinha 16, 17 anos. Me lembro disso como sendo uma das grandes experiências educadoras da minha vida. Eu me lembro desse maravilhoso professor, em algum momento do texto, nos dizer: “Tenho lido isso por anos, e ainda não entendo”. Não sei se ele estava se referindo à linguagem, ao conceito, mas o fato é que pela primeira vez na minha vida escutava um professor dizer que não entendia algo. Um extraordinário professor — que parecia saber de tudo — admitir que um texto lhe impunha problemas de compreensão, aquilo para mim foi uma confissão poderosa. Ainda me lembro disso claramente hoje, 50 anos depois, com uma espécie de arrepio. E isso tinha muito a ver também com Shakespeare. Às vezes penso que você simplesmente não entende as coisas mais poderosas. Há certas coisas que representam problemas profundos, insolúveis, mas que ficam dentro de você de maneira mais profunda do que textos mais transparentes, que você entendeu muito bem. Anos depois, li “O processo”, de Kafka, na Universidade de Cambridge, e me lembro de não ter entendido absolutamente nada. Não compreendi as relações entre os personagens, não entendi por que o homem cometeu suicídio no final da história, nada fazia sentido para mim. Fechei o livro, e me lembro de momentos depois sentir um incrível... não posso realmente explicar, não tenho as palavras certas para isso. Mas algo como se alguém tivesse tangido com força a corda dentro de mim. Isso não aconteceu porque eu entendi, mas porque eu não entendi.

O senhor procurou incorporar efeitos imaginativos de escrita em seu trabalho. Isso teria sido extremo em sua biografia de Shakespeare? (Leia mais: Método de Greenblatt criou polêmica entre críticos)

Não acredito que os efeitos sejam “extremos”. O livro é de não ficção, e tentei indicar claramente os momentos em que estou especulando. Mas qualquer biografia de Shakespeare requer especulação — é um escritor que não só viveu 400 anos atrás, mas também existia, como profissional de classe média, abaixo do nível comum de curiosidade social de sua cultura. E não acredito que a verdade histórica precisa ser apresentada com as roupas mais grosseiras.

Há escassos documentos relacionados à vida de Shakespeare, o que deixa sua história pessoal repleta de vazios. Essas lacunas estimularam as diferentes especulações, inclusive a de que Shakespeare não seria o autor de sua obra, evidenciada no recente filme “Anonymous”, de Roland Emmerich. Como o senhor lidou com isso na hora de escrever a biografia?

Eu me impus como princípio que só me entregaria a especulações se a especulação tivesse uma ligação com um vestígio documental, por menor que fosse. E esse vestígio teria de ter alguma existência fora da própria obra. Isto é, embora as peças de Shakespeare tratem profundamente do adultério, não tomei a liberdade de propor — como James Joyce, entre outros, propôs — que a mulher de Shakespeare teria cometido adultério. Ela pode realmente ter sido adúltera, mas não consegui encontrar nenhuma evidência disso fora da própria imaginação de Shakespeare. É verdade que há lacunas significativas no registro documental, mas Shakespeare foi de fato um escritor famoso na sua época, celebrado repetidamente pelos seus contemporâneos. As teorias de que outra pessoa escreveu as peças têm quase tanta credibilidade quanto as teorias de que os Estados Unidos forjaram o desembarque na Lua.

Seu interesse hoje é o estudo da mobilidade na cultura. Como seu novo ensaio, “The swerve”, se insere nessa pesquisa?

Originalmente comecei a pensar nessas questões porque me interessei pelo que significa recuperar um livro perdido, neste caso, o manuscrito de Lucrécio sobre a natureza das coisas. Para mim foi um tipo de paradigma, não somente da Renascença, mas de questões de mobilidade. Temos um texto escrito em torno de 50 a.C., que foi lido naquela época, mas gradualmente, até o século IV, desapareceu de circulação, foi calado. Não se sabia se existia, sobreviveram uma ou duas cópias. Ficou numa prateleira por mais de mil anos. Então, em 1417, alguém tirou o livro da estante do monastério, e ele voltou a circular. É um tipo de ato primário, uma ação simples, nada glamourosa: alguém retira o livro da estante da biblioteca, e cópias começam a circular. E essa reentrada no mundo da mobilidade acaba produzindo a longo prazo resultados impressionantes. É apenas um antigo poema, mas na verdade foi o que trouxe de volta ao mundo ocidental toda essa teoria de gênese de átomos se debatendo, sem um projeto inteligente ou um criador misterioso. Na verdade, foi o nascimento da modernidade, e o que nos deu, em última análise, Darwin, Einstein ou Freud. Sejam quais forem nossas heranças hoje, vêm direta ou indiretamente do momento da volta à circulação desse objeto calado. Eu sou fascinado por isso. Pelo fato em si, pelo que está envolvido na circulação, pelos riscos assumidos — porque quando as coisas são trazidas de volta, oferecem riscos. Giordano Bruno e outros descobriram o preço de fazer circular ideias fora de lugar, por assim dizer. Conto a história da perda e da redescoberta, um tipo de paradigma para a mobilidade e o início de um novo mundo.

O que senhor pode dizer sobre o novo historicismo hoje?

É difícil dizer. Talvez não seja apenas um movimento, mas vários movimentos ligados frouxamente um ao outro sob uma única rubrica conveniente. Não me sinto disposto a ser o juiz ou o >ita O senhor lê autores contemporâneos?

Leio. Não acompanho a ficção contemporânea de uma forma diária ou rotineira. Não li o último romance de Jonathan Franzen. Li recentemente um romance — que não é contemporâneo, deve ter sido escrito nos anos 1950 —, de Vasily Grossman, chamado “Tudo flui”. Inacreditavelmente dolorido e triste. É um romance sobre a fome na Ucrânia, sob Stálin. Um livro poderoso, mas, como disse, tem 60 anos. Li não faz muito tempo “Wolf hall”, de Hilary Mantel, porque me pediram uma resenha. Algumas vezes leio o que minha mulher ou um amigo recomendam, mas, para ser honesto, meu primeiro impulso não é ler ficção contemporânea. Agora estou lendo Tito Lívio, o historiador romano. Me dei conta de que não tinha lido “Joseph Andrews” de (Henry) Fielding provavelmente desde que estava na pós-graduação, então reli esse livro com grande prazer. Não tenho esse sentimento de que é urgentemente importante me manter atualizado com o que acabou de sair. Mas leio com prazer coisas recentes, e também poesia contemporânea. Há Jorie Graham, Robert Pinsky, Seamus Heaney. Gosto de Frank Bidart, Tom Sleigh.

Por que, para o senhor, o filósofo francês Michel de Montaigne deveria ser mais lido hoje, ou “descoberto”, como diz?

É meu escritor preferido da Renascença. Eu deveria dizer que Shakespeare é o meu favorito, mas para mim Montaigne é o maior deles. Por que “descobri-lo”? Acho que não tenho uma grande resposta, a que tenho é mais ou menos a que Montaigne deu sobre o que explicava a sua relação com Étienne La Boétie, o grande amigo de sua vida: “Porque era ele, porque era eu”. Montaigne atinge da maneira como um amigo íntimo chega até você, alguém que você ama de forma absoluta. Na verdade, Shakespeare não faz isso, ele é muito difuso por toda a sua obra. A não ser que você responda com uma profunda intimidade aos seus sonetos, você não sente — pelo menos eu não sinto —, essa vontade de sentar junto. Mas sinto isso com Montaigne, profundamente. Poderia dizer muitas coisas sobre Montaigne, que ele é assombrosamente inteligente, muito engraçado, notavelmente tolerante e decente, espantosamente franco, aberto consigo mesmo. Ele tem a capacidade de um mestre zen de viver o agora, o tesouro de viver o presente. Algo que gostaria de ter o máximo possível na minha própria vida. Eu realmente amo Montaigne. Pretendo escrever sobre Montaigne, o que sempre adiei toda a minha vida, mas agora vou tentar escrever algo sobre ele.

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