SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Primeira infância é uma forma de se reinventar o futuro


Reggio Emilia, um relato de viagem

Gustavo Amora[1]
Entendendo Reggio
Reggio Emilia é uma cidade de 168 mil habitantes localizada na região da Emília Romana, no norte da Itália. Reggio surgiu no cenário internacional a partir do momento que se percebeu que lá havia se constituído um modelo de referencia mundial em termos de cuidados com a primeira infância. Todos os anos pesquisadores, ativistas e lideranças políticas de vários países do mundo visitam Reggio Emilia em busca de referencias sobre o modelo e sobre como aprender com o exemplo da cidade.
Típica rua do centro de Reggio Emilia, uma política de mobilidade urbana que privilegia as bicicletas e amplia a qualidade de vida na cidade
A relevância internacional desta pequena cidade nos mostra que investir na primeira infância é uma forma de se reinventar o futuro de uma cidade e até de um pais. Pouco mais de seis décadas depois do início da reconstrução o resultado é uma cidade que investe 16% do seu orçamento em educação infantil e financia com recursos próprios todo o cuidado com a primeira infância, já que o governo Italiano não repassa recursos para educação infantil.
Este foi o contexto que me inseriu em Reggio, explicarei melhor mais adiante, por enquanto é preciso entender melhor a cidade.
Como começou?
Tudo começou após a derrota da Itália na 2a Guerra Mundial. A população local precisava se lançar na reconstrução da cidade e foram definidas as prioridades no investimento dos poucos recursos disponíveis. Assim surgiu a proposta de se priorizar a educação e o cuidado com as crianças pequenas e o investimento na construção de escolas para estas crianças. Somente na década de 60 é que estas escolas foram municipalizadas, pois até então toda a responsabilidade pela manutenção das escolas era das famílias e da sociedade.
As características mais marcantes do modelo Reggio são reflexo desta história. A valorização da criança como sujeito único e detentor de direitos, assim como da participação das famílias no processo educativo e no compartilhamento de responsabilidades sobre a escola, a pesquisa pedagógica e a prioridade no investimento de recursos a nível municipal são exemplos de valores construídos ao longo de décadas de prioridade para a primeira infância.
Um dos segredos de Reggio Emilia é que lá há espaço para experimentação, ou seja, para errar e acertar, mas tudo é acompanhado por muita pesquisa pedagógica para aprender com os erros e compartilhar os acertos.
Uma das constatações mais marcantes sobre estas escolas é que não existem barreiras para as crianças, todos os ambientes são abertos e não existem lugares proibidos, todo o prédio é arquitetado para dar acesso as crianças e todos os funcionários tem contato com as crianças em um mesmo nível. É possível para as crianças entrarem na cozinha e lá são desenvolvidas atividades para conhecer os alimentos, brincar e preparar alguma receita. Há muita musica e instrumentos para serem tocados e decifrados pelas crianças, não existe um roteiro fixo de atividades e sempre há espaço para invenção de alguma atividade. Os pais são sempre bem vindos, mas não como inspetores de qualidade, mas sim como participantes do processo de crescimento e desenvolvimento das crianças.
O espaço criativo das crianças é compartilhado de modo que elas se percebam valorizadas tanto na sua individualidade como naquilo que constroem coletivamente nos trabalhos em grupo. Este estímulo é fundamental para que as crianças desenvolvam um senso de coletividade e cooperação, assim como o seu papel e sua importância como indivíduos. Em relação aos professores, não existe a figura do professor responsável, todos compartilham a responsabilidade, o aprendizado e a reflexão sobre tudo o que ocorre com as crianças. A família participa de vários momentos do processo educacional, desde o compartilhamento dos trabalhos das crianças, que são publicados e divulgados dentro e fora da escola buscando registrar e despertar o interesse da família sobre as crianças até a participação em debates sobre o investimento de recursos na educação infantil e a importância de se priorizar a primeira infância.
Reggio hoje: imigração, crise econômica e crescimento do fascismo. Reggio Emilia em perigo?
Nos dias atuais, a cidade de Reggio Emilia alcançou um dos melhores indicadores econômicos da Itália, inclusive quando comparada dentro da região norte, que é a mais rica do país. A economia impulsionada pela indústria é uma das que possui as menores taxas de desemprego do país e da região norte, assim como possui uma das maiores taxas de emprego feminino do país. Entretanto, no plano político e econômico, o governo local vem enfrentando desafios crescentes. Por um lado há o crescimento da corrente de extrema direita. As eleições de 2010 foram marcadas por taxas de abstenção muito altas e resultados que fortaleceram os partidos de extrema direita como a Lega Nord, que possui uma plataforma separatista e antiimigração. Nas últimas eleições, eles se tornaram o terceiro maior partido do país e a principal força do norte da Itália.
Se partirmos da hipótese de que o continente Europeu construiu a segunda guerra mundial em torno da tentativa de algumas economias centrais em exportar a divisão internacional do trabalho para os países enfraquecidos com a primeira guerra. E se, além disso, acrescentarmos o ingresso dos imigrantes e a internalização de processos econômicos perversos que antes eram exportados para colônias ou economias satélites, é possível perceber que o cenário de radicalização da política européia e, principalmente, Italiana, é uma tendência, e que poderá afetar os investimentos na primeira infância.
Investimento na Infância e Imigração
O investimento na infância é um exemplo de uma característica redistributiva da política Italiana que mais incomoda os grupos antiimigração. O fato é que a base da pirâmide etária Italiana é composta por uma quantidade muito maior de imigrantes do que o topo, resultado de correntes migratórias iniciadas nas últimas décadas e que representam o fluxo de 35 mil imigrantes nos últimos vinte anos. Isto significa que 22,7% das crianças até seis anos não possuem cidadania italiana. Por outro lado, na visão do cidadão italiano comum, e que nas últimas eleições passou a votar na extrema direita, é o mesmo que: Italianos pagam impostos para financiar a educação infantil de imigrantes.
Líderes Globais em visita a uma escola de Reggio Emilia
O cenário econômico Italiano não é favorável, e ainda que o país não esteja numa situação grave como Irlanda e Grécia, a redução na arrecadação dos municípios tem sido muito forte, principalmente daqueles municípios que se beneficiam da indústria automobilística.
Baseados nestes argumentos e no crescimento da hostilidade contra os imigrantes é que a extrema direita começa a atacar as políticas redistributivas e o investimento na educação infantil. Por outro lado, Reggio vem experimentando uma diminuição nas matrículas de imigrantes nos centros de atendimento. Ainda que o valor das mensalidades pagas seja subsidiado e proporcional à renda familiar, algumas famílias estão deixando de levar suas crianças para os centros, e em função do desemprego, acabam cuidando de suas crianças em casa.
A taxa de escolarização das crianças até seis anos em Reggio é de 40,6%, na pré-escola é de 80%. Por outro lado, esta taxa de matrículas na pré-escola já foi de 95%, e a diminuição das matrículas está concentrada no contingente imigrante. Para o ano de 2010, a redução na arrecadação vai representar uma diminuição considerável na quantidade de creches e pré-escolas previstas para serem construídas.
Neste momento de crise é que a força da comunidade de Reggio Emilia e a inserção do município no cenário internacional se fazem valer. Ainda que o modelo de Reggio fosse algo intocável até tempos recentes, politicamente, a extrema direita vê o modelo como um exemplo do que deve ser atacado em função do seu caráter redistributivo e inclusivo.
A comunidade de Reggio tem se mobilizado para defender o modelo. Além disso, a lógica de participação da família e da comunidade no processo educativo faz com que as pessoas também estejam envolvidas nesta discussão sobre a continuidade do modelo. Neste momento, uma das premissas do modelo se mostra decisiva para sua manutenção, trata-se do conceito da criança como sujeito de direitos único e indivisível, ou seja, independentemente do seu local de nascimento, origem étnico-racial, toda criança tem direito a um atendimento de qualidade e que valorize suas peculiaridades e o seu protagonismo.
Lições importantes sobre Reggio Emilia
Reggio Emilia é o exemplo de uma abordagem surgida da pesquisa pedagógica baseada na prática educacional. Neste sentido, os desafios que a teoria propõe podem ser avaliados a partir da realidade e as barreiras colocadas pela realidade podem sempre ser re/pensadas a partir da reflexão pedagógica e das pesquisas constantes. Neste sentido, é difícil imaginar sucesso na simples cópia do modelo Reggio, isto porque ele está constantemente se reinventando
Líderes Globais pela Primeira Infância
Entre os dias 13 e 15 de setembro, o World Forum Foundation – WFF, organização americana que organiza o Fórum Mundial de Educação e Primeira Infância decidiu reunir em Reggio Emilia um grupo de lideranças internacionais que trabalham com a temática da primeira infância, os líderes globais pela primeira infância. O local escolhido foi o Centro Internacional Loris Malaguzzi, um centro dedicado à pesquisa pedagógica e a memória do modelo Reggio Emilia. O projeto da turma de 2009 do Global Leaders começou quando Vera Melis indicou eu (representando a Secretaria Executiva da RNPI) e Maria Thereza Marcílio (representando a Avante de Salvador) para representar o Brasil no projeto dos líderes globais pela primeira infância que ocorreu em Belfast – Irlanda do Norte em 2009.
Líderes Globais reunidos durante três dias no Centro Internacional Loris Malaguzzi
Em Belfast nós participamos do Fórum Mundial e de um curso sobre advocacy que eles ofereceram aos líderes globais. Ao final do curso, nos comprometemos a desenvolver um projeto relacionado a Advocacy para a primeira Infância no Brasil. Ao longo do ano, organizamos uma publicação de artigos sobre Advocacy para a primeira infância em parceria com o Instituto C&A. Os três dias em Reggio foram o momento para os líderes globais pela primeira infância se reunirem para compartilhar suas experiências de Advocacy para a primeira infância em seus países.
Resumo dos projetos apresentados
Youssef Najar, consultor do World Forum Foundation elaborou um interessante resumo sobre os projetos apresentados durante os três dias. Tomo a liberdade de traduzir o texto e ilustrar com fotos que eu tirei durante estes dias.
“ É um importante conjunto de ações sendo desenvolvidas em prol da Primeira Infância sobre as agendas nacionais. Todas as ações marcadas por avanços concretos, resultado de comprometimento e trabalho de qualdade.”
Youssef dividiu as ações em quatro categorias:
a) Iniciativas focadas em políticas públicas a nível nacional.
- Brasil: ações de advocacy e lobby sobre o Congresso Nacional no Brasil para barrar uma legislação prejudicial para a primeira infância.
- Líbano: ações em busca de uma política nacional pela Primeira Infância. Ativação do processo através de grupos de trabalho especializados envolvendo governo e sociedade civil.
- Polônia: tentativa de criação de ferramentas nacionais para coleta, armazenamento e disseminação de dados sobre a primeira infância.
- Uganda: Criação de uma estrutura de coordenação dos atores da primeira infância.
- Índia: Fortalecimento de uma política nacional pela primeira infância na Índia através da interação entre os níveis federal, estadual e municipal.
b) Iniciativas voltadas pra criação de um movimento para expandir as bases de atores envolvidos na temática da primeira infância.
- Índia: criação de uma plataforma nacional na Índia e o estabelecimento de uma aliança com os profissionais de saúde, no caso a Associação de Pediatras com o objetivo de fazer campanhas e disseminar boas práticas.
- Índia: Articulações com as universidades para mútuo suporte entre acadêmicos e ativistas.
c) Iniciativas para fortalecer a temática do desenvolvimento da primeira infância dentro de comunidades.
- Ilhas Fiji: ampliar a preocupação com a primeira infância na comunidade e no governo a partir da mobilização comunitária.
Analesi Tuicaumia e Milika Waqanisau, líderes globais das Ilhas Fiji apresentaram um projeto de mobilização local em prol da primeira infância
- EUA: educar o setor privado e sensibilizá-lo para a importância de investir na primeira infância. Desenvolvimento de técnicas de captação de recursos a nível local.
d) Fortalecimento e disseminação de boas práticas.
- Holanda: publicação de um livro sobre desenvolvimento cerebral infantil e disseminação dos conteúdos para profissionais da área.
- México: um manual para professores que discute a integração entre a dimensão espiritual ao treinamento na primeira infância.
"Não se pode compartilhar aquilo que não se vivenciou, ser professora é ser eu mesma." Ana Maria Gonzales Garza, México
- México: um manual e uma metodologia de treinamento para ouvir crianças.
- Quênia: disseminação de técnicas de higiene e segurança para crianças de áreas de risco.
- Gana: promoção de meio-ambiente saudável e padrões de saúde para comunidades carentes.
Maggie Kamau-Bird e Janet Mwitiki do Quênia. Elas apresentaram um projeto sobre noções de higiene pessoal e fabricação de sabão caseiro em uma comunidade carente do país.
Projetos para o futuro
Ao final do encontro, os líderes globais sentiram a necessidade de continuar trocando experiências e pensaram na possibilidade de desenvolverem um projeto juntos. Um dos temas que marcaram as apresentações foi a necessidade de se ouvir as crianças, algo que ficou materializado na experiência mexicana de desenvolvimento de uma metodologia de escuta as crianças, assim como na Rede Primeira Infância com sua proposta de um plano nacional no olhar das crianças.
Bonita Birungi - Uganda, Thereza Marcílio - Brasil e Joyeeta Sengupta - Índia
Neste sentido, foi apresentada a proposta de um pequeno documentário intitulado: Escute! A proposta é que cada país se comprometa a registrar imagens com crianças relatando seu cotidiano e sua percepção sobre família, casa, escola, saúde, segurança e temas afins para que possamos montar um relato dos países e transformar isto em um vídeo de curta metragem para ser exibido em eventos e divulgado na Internet.
Estamos ampliando e fortalecendo esta proposta no sentido de envolver uma equipe de documentaristas que poderá fazer os registros de imagens em diversas cidades do Brasil, um vídeo que poderá contribuir para este projeto dos líderes globais assim como servirá para fortalecer a temática da primeira infância no Brasil.
Líderes Globais – América Latina
A próxima edição do Projeto Global Leaders terá foco nas alianças regionais e será constituído um grupo para a América Latina. A idéia é que os líderes formados indiquem pessoas dentro da América Latina e atuem como tutores destes novos grupos.
Saiba mais:
Todas as fotos são de Gustavo Amora, acesse mais imagens sobre Reggio Emilia na página do Flickr da RNPI:
Sobre o projeto Global Leaders:
Reportagem no site da Avante:
Fotos e relato no Blog da Bonnie Neugebauer:
Relato de Maria Thereza Marcílio sobre Reggio Emilia
Impressões de uma viajante

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