A Complexidade e a Ação
Edgar Morin
A ação é também uma aposta
Temos, às vezes, a impressão de que a ação simplifica porque, diante de alternativas, decidimos, optamos. O exemplo de ação que simplifica tudo lembra a espada de Alexandre que corta o nó górdio que ninguém soubera desatar com suas mãos. Certamente, a ação é uma decisão, uma escolha, porém, é também uma aposta.
Porém, na noção de aposta está a consciência do risco e da incerteza. Toda estratégia, em qualquer domínio que seja, tem consciência da aposta, e o pensamento moderno tem entendido que nossas crenças mais fundamentais são objeto de uma aposta. Isso é o que n
os havia dito, no século XVII,Blaise Pascal acerca da fé religiosa. Nós também devemos nos conscientizar de nossas apostas filosóficas ou políticas.
A ação é estratégia.
A palavra estratégia não designa um programa predeterminado que baste para aplicar, sem variação no tempo. A estratégia permite, a partir de uma decisão inicial, imaginar um certo número de cenários para a ação, cenários que poderão ser modificados segundo as informações que nos cheguem no curso da ação e segundo os elementos aleatórios que sobrevirão e perturbarão a ação.
A estratégia luta contra o azar e busca a informação. Um exército envia exploradores, espiões, para informar-se, quer dizer, para eliminar a incerteza ao máximo. Mais ainda, a estratégia não se limita a lutar contra o azar, trata também de utilizá-lo. Assim foi que a genialidade de Napoleão em Austerlitz foi a de utilizar o azar meteorológico, que fez surgir uma camada de brumas sobre os pântanos, considerados impossíveis para o avanço dos soldados. Ele construiu sua estratégia em função dessa bruma e tomou, de surpresa, por seu flanco mais desguarnecido, o exército dos impérios. A estratégia tira vantagem do azar e, quando se trata de estratégia com respeito a outro jogador, a boa estratégia utiliza os erros do adversário. No futebol, a estratégia consiste em utilizar as bolas que a equipe adversária entrega involuntariamente. A construção do jogo se faz mediante a desconstrução do jogo do adversário e, finalmente, a melhor estratégia – se se beneficia com alguma sorte – ganha. O azar não é somente o fator negativo a reduzir no domínio da estratégia. É também a sorte a ser aproveitada.
O problema da ação deve também fazer-nos conscientes dos desvios e das bifurcações: situações iniciais muito próximas podem conduzir a desvios irremediáveis. Assim foi que, quando Martin Lutero iniciou seu movimento, pensava estar de acordo com a Igreja, e que queria simplesmente reformar os abusos cometidos pelo papado na Alemanha. Logo, a partir do momento em que deve seja renunciar, seja continuar, franqueia um umbral e, de reformador, se torna contestador. Um desvio implacável o leva – isto é o que acontece em todo desvio – e leva à declaração de guerra às teses de Wittemberg (1517).
O domínio da ação é muito aleatório, muito incerto. Impõe-nos uma consciência muito aguda dos elementos aleatórios, dos desvios, das bifurcações, e nos impõe a reflexão sobre a própria complexidade.
A ação escapa a nossas intenções.
Aqui intervém a noção de ecologia da ação. No momento em que um indivíduo empreende uma ação, qualquer que seja, esta começa a escapar a suas intenções. Essa ação entra em um universo de interações e é finalmente o ambiente o que toma posse, num sentido que pode tornar-se contrário à intenção inicial. Aos poucos, a ação se tornará como um bumerangue sobre nossas cabeças. Isto nos obriga a seguir a ação , a tratar de corrigi-la - se ainda há tempo - e talvez a torpedeá-la ,como fazem os responsáveis da NASA que, se um foguete se desvia de sua trajetória, enviam outro foguete para explodi-lo.
A ação supõe complexidade, quer dizer, elementos aleatórios, azar, iniciativa, decisão, consciência dos desvios e das transformações. A palavra estratégia se opõe à palavra programa. Para as seqüências que se situam em um ambiente estável, convém utilizar programas. O programa não obriga estar vigilante. Não obriga inovar. Assim, quando nós nos estamos ao volante de nosso carro, uma parte de nossa conduta está programada. Se surge um engarrafamento inesperado, faz falta decidir se temos que mudar o itinerário ou não, se temos que violar o código: faz falta fazer uso de estratégias.
É por isso que temos que utilizar múltiplos fragmentos de ação programada para podermos concentrar-nos sobre o que é importante, a estratégia com os elementos aleatórios.
Não há um domínio da complexidade que inclua o pensamento, a reflexão, por uma parte, e o domínio das coisas simples que incluiria a ação, por outra. A ação é o reino do concreto e, talvez,parcial da complexidade.
A ação pode, certamente, bastar-se com a estratégia imediata que depende das intuições, dos dotes pessoais do estrategista. Ser-lhe-ia também útil beneficiar-se de um pensamento da complexidade.
Porém o pensamento da complexidade é, desde o começo, um desafio.
Uma visão simplificada linear torna-se facilmente mutilante. Por exemplo, a política do petróleo cru levava em conta unicamente o fator preço, sem considerar o esgotamento dos recursos, a tendência à independência dos países possuidores desses recursos, os inconvenientes políticos. Os políticos haviam descartado de suas análises a Historia, a Geografia, a Sociologia, a política, a religião, a mitologia. Essas disciplinas vingaram-se.
A “máquina” não trivial
Os seres humanos, a sociedade, a empresa, são “máquinas” não triviais: é trivial una máquina que, quando conhecemos todos seus inputs e todos seus outputs; podemos predizer seu comportamento desde o momento que sabemos tudo o que entra na máquina. De certo modo, nós somos também “máquinas” triviais, das quais se pode, com amplitude, predizer os comportamentos.
De fato, a vida social exige que nos comportemos como “máquinas” triviais. É certo que nós não atuamos como puros autômatos, buscamos meios não triviais desde o momento que constatamos que não podemos chegar a nossas metas. O importante é o que sucede em momentos de crise, em momentos de decisão, nos quais a “máquina” se torna não trivial: atua de uma maneira que não podemos predizer. Tudo o que concerne ao surgimento do novo é não trivial e não pode ser predito por antecipação. Assim é que, quando os estudantes chineses estão na rua aos milhares, a China se torna uma “máquina” não trivial... Em 1987-89, na União Soviética, Gorbachov se comportou como uma “máquina” não trivial! Tudo o que sucedeu na história, em especial em situações de crise, são acontecimentos não triviais que não podem ser preditos por antecipação. Juana d´Arc, que ouve vozes e decide ir buscar o rei da França, tem um comportamento não trivial. Tudo o que vai suceder de importante na política francesa ou mundial surgirá do inesperado.
Nossas sociedades são “máquinas” não triviais no sentido, também, de que conhecem, sem cessar, crises políticas, econômicas e sociais. Toda crise é um incremento das incertezas. A preditibilidade diminui. As desordens se tornam ameaçadoras. Os antagonismos inibem as complementaridades, os conflitos virtuais se atualizam. As regulações falham ou se desarticulam. É necessário abandonar os programas, temos que inventar estratégias para sair da crise. É necessário, aos poucos, abandonar as soluções que solucionavam as velhas crises e elaborar novas soluções.
Preparar-se para o inesperado
A complexidade não é uma receita para conhecer o inesperado. Porém, nos torna prudentes, atentos,não nos deixa dormir na mecânica aparente e na trivialidade aparente dos determinismos. Ela nos mostra que não devemos nos encerrar no contemporaneismo, quer dizer, na crença de que o que acontece agora vai continuar indefinidamente. Devemos saber que tudo de importante que acontece na história mundial ou na nossa vida é totalmente inesperado, porque continuamos atuando como se nada inesperado nunca devesse acontecer. Sacudir essa preguiça mental é uma lição que nos dá o pensamento complexo.
O pensamento complexo não rechaça, de maneira nenhuma, a clareza, a ordem, o determinismo.
Porém os sabe insuficientes, sabe que não podemos programar o descobrimento, o conhecimento,nem a ação.
A complexidade necessita uma estratégia. É certo que, os segmentos programados em sequencias nas quais não intervém o aleatório, são úteis ou necessários. Em situações normais, a condução automática é possível, porém a estratégia se impõe sempre que sobrevém o inesperado ou o incerto,quer dizer, desde que aparece um problema importante.
O pensamento simples resolve os problemas simples sem problemas de pensamento. O pensamento complexo não resolve, em si mesmo, os problemas, porém constitui uma ajuda para a estratégia que pode resolvê-los. Ele nos diz: «Ajuda-te, o pensamento complexo te ajudará».
O que o pensamento complexo pode fazer, é dar, a cada um, um sinal, uma ajuda à memória, que lhe lembre: «Não esqueças que a realidade é mutante, não esqueças que o novo pode surgir e, de qualquer maneira, vai surgir».
A complexidade se situa em um ponto de partida para uma ação mais rica, menos mutilante. Eu creio profundamente que quanto menos mutilante for um pensamento, menos mutilará os humanos.
Temos que recordar as ruínas que as visões simplificantes têm produzido, não somente no mundo intelectual, mas também na vida. Suficientes sofrimentos atingiram milhões de seres como resultado dos efeitos do pensamento parcial e unidimensional.
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