Depois vieram cinco anos breves, apaixonados; cinco anos de júbilo e de enigma. Às portas de nosso mundo estava o Vietnã, evidentemente, e o primeiro grande golpe desferido contra os poderes constituídos. Mas aqui, em nossas fronteiras, o que acontecia exatamente? Um amálgama de política revolucionária e anti-repressiva? Uma guerra travada em dois frontes — a exploração social e a repressão psíquica? Uma escalada da libido modulada pelo conflito de classes? É possível. Seja como que for, foi por essa interpretação familiar e dualista que se pretendeu explicar os acontecimentos desses anos. O sonho que entre a Primeira Guerra Mundial e o advento do fascismo havia mantido sob seu encanto as frações mais utopistas da Europa — a Alemanha de Wilhelm Reich e a França dos surrealistas — retornara para abrasar a própria realidade: Marx e Freud iluminados pela mesma incandescência.[(197)]
Mas terá sido isto realmente o que se passou? Tratou-se de fato de uma retomada do projeto utópico dos anos 30, dessa vez na escala da prática histórica? Ou terá havido, ao contrário, um movimento em direção a lutas políticas que não se conformavam mais com o modelo prescrito pela tradição marxista? Em direção a uma experiência e uma tecnologia do desejo que já não eram freudianas? Certamente, foram brandidos os velhos estandartes, mas o combate se deslocou e ganhou novas zonas.
O anti-Édipo mostra, inicialmente, a extensão do terreno percorrido. Porém faz muito mais. Ele não se distrai difamando os velhos ídolos, ainda que se divirta muito com Freud. E, sobretudo, ele nos incita a ir mais longe. Seria um erro ler O anti-Édipo como a nova referência teórica (sabem, essa famosa teoria que nos foi anunciada com tanta freqüência: aquela que vai englobar tudo, que é absolutamente totalizante e tranqüilizante e da qual, conforme nos garantem, “temos tanta necessidade” nessa época de dispersão e de especialização, em que a “esperança” desapareceu). Não se deve buscar uma “filosofia” nessa extraordinária profusão de noções novas e de conceitos-surpresa. O anti-Édipo não é uma contrafação de Hegel. A melhor maneira de ler O anti-Édipo é, creio eu, abordá-lo como uma “arte”, no sentido em que se fala de “arte erótica”, por exemplo. Apoiando-se nas noções aparentemente abstratas de multiplicidade, de fluxos, de dispositivos e de ramificações, a análise da relação do desejo com a realidade e com a “máquina” capitalista traz respostas a questões concretas. Questões que se ocupam menos com o porquê das coisas do que com seu como. Como se introduz o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecidas? Ars erotica, ars theoretica, ars politica.
Donde os três adversários aos quais O anti-Édipo se vê confrontado. Três adversários que não têm a mesma força, que representam graus diversos de ameaças e que o livro combate por meios diferentes.
1) Os ascetas políticos, os militantes morosos, os terroristas da teoria, aqueles que gostariam de preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da Verdade.
2) Os deploráveis técnicos do desejo — os psicanalistas e os semiólogos que registram cada signo e cada sintoma e que gostariam de reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta. [(198)]
3) Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (visto que a oposição de O anti-Édipo a seus outros inimigos constitui antes um engajamento tático): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e Mussolini — que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas —, mas também o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora.
Eu diria que O anti-Édipo (possam seus autores me perdoar) é um livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França desde muito tempo (é talvez a razão pela qual seu sucesso não se limitou a um “leitorado” particular: ser antiÉdipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensamento e de vida). Como fazer para não se tornar fascista mesmo (e sobretudo) quando se acredita ser um militante revolucionário? Como livrar do fascismo nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres? Como desentranhar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento? Os moralistas buscavam os traços da carne que se tinham alojado nas dobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua vez, espreitam os traços mais íntimos do fascismo no corpo.
Prestando uma modesta homenagem a São Francisco de Sales1, poderíamos dizer que O anti-Édipo é uma introdução à vida não fascista.
Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, estejam elas já instaladas ou próximas de sê-lo, é acompanhada de certo número de princípios essenciais, que resumirei como segue, se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:
• Liberem a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante.
• Façam crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, e não por subdivisão e hierarquização piramidal.
• Livrem-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, as castrações, a falta, a lacuna) que por tanto tempo o pensamento ocidental considerou sagradas, enquanto forma de poder e modo de acesso à realidade. Prefiram o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos sistemas. Considerem que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade. [(199)]
• Não imaginem que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo se o que se combate é abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga nas formas da representação) que possui uma força revolucionária.
• Não utilizem o pensamento para dar a uma prática política um valor de Verdade; nem a ação política para desacreditar um pensamento, como se ele não passasse de pura especulação. Utilizem a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política.
• Não exijam da política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação e o deslocamento, o agenciamento de combinações diferentes. O grupo não deve ser o liame orgânico que une indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”.
• Não se apaixonem pelo poder.
Diríamos inclusive que Deleuze e Guattari gostam tão pouco do poder que buscam neutralizar os efeitos de poder ligados a seu próprio discurso. Donde os jogos e as armadilhas que de algum modo se encontram por toda parte no livro, e que fazem de sua tradução uma verdadeira proeza. Mas não se trata das brincadeiras familiares à retórica, aquelas que buscam seduzir o leitor sem que este esteja consciente da manipulação e que terminam por ganhá-lo para a causa dos autores contra a sua vontade. As armadilhas de O anti-Édipo são as do humor: convites a se deixar expulsar, a abandonar o texto batendo a porta. O livro faz pensar com freqüência que só há humor e jogo ali onde entretanto algo de essencial se passa, algo que é da maior seriedade: o banimento de todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos envolvem e nos esmagam, até as formas miúdas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas. [(200)]
1 . Homem da Igreja do século XVII, que foi bispo de Genebra. É conhecido por sua Introdução à vida devota.
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