Há uma ironia em um personagem como Colm, um dos protagonistas de Os Banshees de Inisherin, novo longa de Martin McDonagh. O homem chegou a um estado de entendimento do mundo à sua volta tal, que ele decide abrir mão de algo tão primordial ao humano, como o contato, e mais precisamente a fala do outro. Ele não deseja mais ouvir, principalmente o seu melhor amigo, Pádraic. Sendo um personagem saído da pena de McDonagh, que é um especialista em falastrões, intriga pensar se Colm não poderia ser um desejo de alter ego do autor. No seu entorno, a afastada ilha de Inisherin durante a guerra civil irlandesa, todos são extremamente comunicativos; Colm decide abandonar gradativamente a prática. Sem qualquer motivo aparente, o filme se abre para condenar os excessos, abraçando o mínimo e nos questionando sobre a ausência em nossas vidas.
McDonagh vem do maior momento de sua carreira, o divisivo Três Anúncios para um Crime, e reencontra a dupla de Na Mira do Chefe, Colin Farrell e Brendan Gleeson. Sempre entulhado de excessos narrativos, pela primeira vez o diretor e roteirista parece despido de tudo. É óbvio que, com seu desfecho e o pipocar de bombas e tiros ao longe, seu autor está apontando para um esvaziamento do estado de guerra, um comprometimento vazio com a violência que só dialoga com a aleatoriedade. Mas para chegar ao cerne dessa reflexão, McDonagh parte de uma inútil vida coletiva nesta ilha minúscula, palco para o fim abrupto de uma amizade. Esse fim é ancorado em um desejo de reconfiguração pessoal, e assim romper com tudo que lhe parece desnecessário.
Para onde a lente aponta, Os Banshees de Inisherin atesta uma melancolia e um caráter desiludido que contrasta com a personalidade de Pádraic, que alguns chamam de estúpido, outros de idiota, muitos acusam de chato, mas que na verdade o que vemos é uma intrínseca vontade de ser bom. O personagem de Farrell só deseja ser alguém de bem com a vida, em realizar o bem, em propagar bons sentimentos; pode não ser a pessoa mais esperta no recinto, mas compensa isso com pureza. O embate entre seus protagonistas, que estão em diferentes estágios de desejo, trava-se de maneira tão inusitada quanto inexplicável. Há em Colm a consciência de um encerramento de ciclo que precisa ser cumprido, a história entre eles chegou ao fim; Colm deseja mais do mundo, Pádraic não.
O retrato desse desfecho, em paralelo a uma guerra sangrenta que se desenrolava próximo dali, é destrinchado de maneira prosaica, quase banal, por McDonagh. Não há, em sua superfície aparente, um grande evento acontecendo; para Inisherin, no entanto, um lugar perdido no tempo e no espaço, esse é um acontecimento de grandes proporções. E seus personagens centrais acabam cedendo à sede por sangue da massa, dando a eles o que o povo quer, pão e circo. Acabam sendo protagonistas de uma cada vez mais desoladora separação, que se apresenta frugal até se tornar radical e violenta. Como parte integrante de um mundo onde as guerras seguem de um motivo específico para se tornar coisa alguma, Os Banshees de Inisherin é um retrato acurado inclusive sobre o hoje.
O diretor, que também é um premiado autor teatral, poderia ter feito de seu filme um veículo da palavra, exclusivamente – ou da perda delas. Ao escolher não confinar Os Banshees de Inisherin a um espaço físico, e sim procurando encorpar as paisagens à relação de intenso enclausuramento com sua terra, McDonagh realiza um pequenino conto moral cuja ambiência é primordial para a compreensão. Tendo a ilha como catalisador da solidão que se sente e de como aquela vastidão não impede de tornar o ambiente cada vez mais tóxico e desesperador, com rapidez todas as sensações foram apreendidas pelo espectador, que é arrebatado por uma história singela de desamor.
O elenco escolhido para encenar Os Banshees de Inisherin é, inteiro, das personagens centrais até as participações menores e a figuração, todo compacto em sua excelência. Dos premiados Farrell e Gleeson, passando por Kerry Condon e Barry Keoghan, e indo a qualquer participação, maior ou menor, cada passagem beira à perfeição pela textura apresentada na união entre um texto que desenha seus personagens da melhor maneira possível, até a chegada no elenco. Sem perder a leveza despropositada com que a sucessão de eventos acontece, indo do cômico ao trágico em fração de segundos, McDonagh parece ter, mais uma vez, encontrado um lugar de equilíbrio que tinha lhe faltado na inserção anterior. Aqui, a certeza de um fim próximo que vai sendo insuflado na região, faz com que cada um em cena se refugie em respostas diferentes. Alguns o escape, outros a solidão, mais alguns o encontro com o fim, outros a depressão. Diante do fim, estaremos todos ainda na expectativa de uma renovação que nem sempre vem.
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