SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

AS DIFERENÇAS ENTRE OS GESTORES EDUCACIONAIS E AS CRIANÇAS SOBRE O QUE PENSAM SOBRE EDUCAÇÃO!

 



Eu fico com a pureza da resposta das crianças é a vida... Ás vezes fico pensando e até sonho com situações que passei em sala de aula com a fala de meus alunos sobre fome, a falta do lápis, não saber ler, abandono, situações de violências e mortes que presenciaram, doenças sem apoio, muitas vezes provocadas pelas reformas na escola, sobre ficar em casa sozinho encontrar a mãe ou avó a noite, entre outras e tantas histórias que acontecem todos os dias em várias escolas. Eu também fico pensando nos discursos de muitos gestores educacionais e líderes que usam a educação para manter suas posições e outros interesses sobre uma das melhores educação do Brasil, SPAECE e a melhor rede do mundo, tudo está ótimo. É importante lembrar na História que os nazistas deliravam sobre os seus poderes enquanto negavam a realidade que as pessoas viviam. Eles repetiam palavras, ideologias, tudo que os chefes mandam, a rede dos que obedecem, os capitães do mato eram brilhantes, mesmo que isso não apaga a realidade de milhares de crianças e suas escolas. Eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita, viver sem ter a vergonha de ser feliz. Eu acredito que é possível educar criança sem sua FAMÍLIA inteira, sem se render a RELIGIÃO A ou B, sem PÁTRIA mas como humanidade, desde que a educação não se renda a interesses de políticos, de fundações empresariais, nem de gestores educacionais que se perpetuam no poder há anos cometendo os mesmos erros contra o direito das crianças e professores em acordos das casas grandes as custas das senzalas. 



Muitos educadores sentem prazer em se deixar guiar pelos chefes e combatem juntos qualquer sinal de sensibilidade e verdade que vai contra os discursos oficiais. Um Nazista da SS alemã como Rudolf sonhava em se tornar missionário para levar a civilização branca para África. Ainda hoje impomos uma educação branca as crianças e jovens negros que sofrem todos as consequências do racismo estrutural. Fortaleza e Ceará matam mais jovens que São Paulo com 4 vezes a população, muitos deles passaram vários anos na escola, e suas vidas não mudaram, somos a cidade mais rica do Nordeste e de bilionários, onde a maioria da população vive na pobreza há décadas com esse mesmo modelo de educação que não deu certo nos EUA. Mas somos a cópia da cópia, negamos Paulo Freire todos os dias que alfabetizou pessoas em 40 dias, aqui duram décadas e nada. Ainda usam as estatísticas para enganar as pessoas falando de pequenos ganhos dos últimos anos que não alteram a exclusão da maioria no acesso à educação, sem se alfabetizar e concluir o ensino médio, mas as prioridades continuam novos prédios, propaganda e outros interesses eleitorais nas escolas com o silêncio dos vereadores sobre a realidade.  



A liberdade mental e de expressão é diferente da repetição para provas. O poder das palavras do português é tão grande que o menor acontecimento, traumas ou sofrimentos em nossas vidas pode mudar seu significado e nos fazer ver um mundo diferente. E podemos fazer isso com o ensino do português e matemática falando de suas vidas, é assim que educo. É possível mudar o destino de vidas escutando e apoiando as necessidades dos alunos, mas também podemos compreender o mundo dos gestores educacionais para enfraquecer suas certezas fanáticas. Dar sentido às coisas para sair do caos permite um trabalho de reconstrução. Quando a representação que o ferido faz de seu trauma está de acordo com as narrativas circundantes familiares, escolares e culturais, o prazer e o orgulho de voltar a viver, superam a infelicidade de ter sido mutilado. “Você não é mais uma folha levada pelo vento, você adquiriu um grau de liberdade" Quem escreve isso é um especialista em educação infantil, o psiquiatra Dr. Boris Cyrulnik, autor do livro O lavrador e os comedores de vento. Ele perdeu os pais e foi preso para ser levado à morte aos 6 anos na segunda guerra mundial pelos nazistas que são comedores de vento. Eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita, viver sem ter a vergonha de ser feliz. 



A novidade da educação agora é a tecnologia? A sereia ou a fome ?Todos sabemos que a falta de alimentação prejudica o aprendizado na “era da neurociência”? A escola aprendeu isso? Aprendeu sobre a importância do brincar na educação infantil? mas sem brinquedos e espaços lúdicos? É mais barato comida e brinquedos que propaganda falsa. Mas há décadas no poder políticos e gestores educacionais pactuam e negam essa triste realidade. Sim, é possível escapar do destino biológico e social, mas não pela ausência de caminhos. Enquanto isso culpam as crianças? que não conseguem apreender? Que crescem em ambientes que destinam prisão? Que brigam muito e são indisciplinados? Gostaria que os políticos e gestores educacionais ouvissem a República das crianças e não a Oligarquia deles e dos amigos da SEDUC. A arte e o esporte são prioridades nos melhores sistemas educacionais do mundo e não o português e a matemática, o debate de ideias na escola fortalece a democracia e o pensamento não a repetição. Eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita, viver sem ter a vergonha de ser feliz.  


 


As crianças não devem ser excluídas dentro da escola, proibidas de viver na escola, de se calarem sobre suas vidas fora da escola ou não ser escutadas, não adianta culpar suas famílias, temos que transformar essas realidades em ações educacionais e políticas para mudar vidas e pensamentos incluindo dos gestores educacionais. As nossas crianças já são expulsas de nossa sociedade assim como suas famílias e comunidades. A insurreição pedagógica é necessária quando a criança é humilhada pela sociedade. A Dignidade é recuperada quando a revolta restabelece a confiança da criança dilacerada pela vida.  Buscar que as crianças falem sobre suas vidas faz sofrer, mas se ninguém escuta elas se calam. Os sonhos nos salvam de loucas realidades em que é normal matar crianças e jovens. É preciso aprendermos a compartilhar dores e sofrimentos na escola e na sociedade. Isso é saúde mental. Não nos acostumarmos com a infelicidade de morrer, sofrer, viver na miséria ou educar para isso é preciso compreender para transformar. A compreensão do horror nos faz dominar melhor os agressores. Para dar sentido ao sem sentido é preciso colocar em ordem e educar nossas almas. 


 


Desconfiar de ideias claras como SPAECE é urgente, ela é uma ideia sombria. De onde vem essa maneira de tentar dizer o que é o saber? Dos principais pensadores da educação não! É na infância que colocamos os problemas fundamentais que formam nossa vida. Algumas crianças nascem ouvindo histórias nazistas, racistas e excludentes de seus pais como se fossem heróis e reproduzem seus comportamentos, enquanto a maioria vive na miséria. A maioria se for falar de suas vidas a memória sangra. Os nossos heróis educacionais da elite ou capitães do mato tem feito muita gente sofrer e sangrar com suas proezas que nos afastam do real dos efeitos da educação da mentira e da morte. Os detalhes do banal dos brinquedos, lápis, comida os incomodam por suas grandiosidades são perturbadas pelas verdades que não aparecem nas propagandas. Eles buscam impedir os questionamentos e vivem de delírios. E preparam a guerra contra os que não pensam como eles, tipo eu.




As primeiras palavras das crianças designam objetos do contexto, tipo bola, aos poucos elas se afastam no espaço para brincar, e entre cinco e seis anos seu cérebro permite a representação do tempo, a idade da narrativa. Eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita, viver sem ter a vergonha de ser feliz. Somente continuar nosso caminho de educadores e das crianças rumo a autonomia é que temos acesso a um grau de liberdade interior e exterior. É que podemos julgar ou avaliar as narrativas que ouvimos de políticos e gestores educacionais, alguns se rendem às narrativas dos gestores e se calam ou omitem em relação à realidade das escolas e das crianças. A maioria dos educadores preferem tocar as pedras, sentir o cheiro da vida, e experimentar o prazer de compreender a realidade do que se render aos discursos podres dos poderes. Nós ficamos com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita, viver sem ter a vergonha de ser feliz.     




domingo, 18 de junho de 2023

O Caso Collini.


O Caso Collini / Der Fall Collini

Nota: ★★★½

(Disponível na Netflix em dezembro de 2021.)

O livro O Caso Collini, lançado em 2011, foi um imediato e imenso sucesso, chegando à lista dos mais vendidos na Alemanha e tendo os direitos adquiridos por editoras de 18 países. Era o terceiro livro de um respeitado advogado, de família rica, tradicional, Ferdinand von Schirach, e foi comparado aos trabalhos de John Grisham e Scott Turow, os grandes mestres dos romances de tribunal.

O filme baseado no livro é uma produção fantasticamente caprichada, germanicamente perfeita em todos os quesitos técnicos e artísticos. Tem a direção de Marco Kreuzpaintner, rapaz jovem (nasceu em Rosenheim, na Bavária, em 1977, 32 anos depois do final da Segunda Guerra Mundial e 13 anos antes da queda do Muro de Berlim) mas já experiente, com 16 títulos na filmografia como diretor e nove como roteirista – inclusive como um dos autores do roteiro de Ele Está de Volta (2015), a cortante sátira política em que Adolf Hitler reaparece de repente na Alemanha contemporânea. (Os italianos refariam a história mostrando o retorno de Benito Mussolini em Estou de Volta, de 2018.)

Três autores assinam a adaptação do livro Der Fall Collini e sua transposição para a linguagem cinematográfica: Christian Zübert, Robert Gold e Jens-Frederik Otto. Aparentemente, foram bastante fiéis ao romance de Ferdinand von Schirach.

A trama é uma maravilha. Tem, de fato, características típicas dos romances de tribunal de John Grisham, como o fato de que o protagonista da história é um jovem advogado, mas muito jovem mesmo, acabado de sair das fraldas, perdão, da faculdade, e que logo se vê envolvido em um caso extremamente difícil, complexo – um perfeito Davizinho enfrentando não um, mas um monte de Golias. De Scott Turow, tem essa característica de se tratar de um caso especialmente complexo, enrolado, daqueles dos quais se costuma dizer que o começo é apenas a parte visível de um gigantesco iceberg.

Os três roteiristas e o diretor Marco Kreuzpaintner levam menos de 15 minutos para apresentar os fatos básicos do caso aos réus, perdão, aos espectadores. São 15 minutos absolutamente intensos, fortes, impactantes.

No entanto, levam mais de uma hora das 2h03 que dura o filme para chegar ao que é, na verdade, o cerne de tudo, o coração da matéria, o fulcro da obra.

O assassino confessa e fica à espera de ser preso

Um grande, rico, poderoso industrial é brutalmente assassinado no quarto que ocupa em um dos mais exclusivos hotéis de Berlim, em 2001. O ano, assim como o local, é indicado por um letreiro no início da ação. Veremos que ele se chama Hans Meyer (o papel de Manfred Zapatka).

O assassino é um homem de mais de 70 anos, grande, forte (na foto acima). Depois de dar três tiros à queima-roupa em Meyer, e desferir uma série de pontapés na cabeça da vítima já sem vida, ele se encaminha para o lobby do hotel, deixando um rastro de sangue no piso imaculadamente limpo, e senta-se em uma poltrona. A uma funcionária que se aproxima dele, diz: – “Ele está morto. Suíte presidencial”.

O assassino simplesmente fica à espera de ser preso.

Simultaneamente a tomadas que mostram o assassino chegando à suíte ocupada por Hans Meyer, e depois sentando-se em uma poltrona do lobby do hotel, vamos vendo um rapaz jovem, aí talvez de uns 28 anos, treinando boxe em uma academia. Ele é – veremos bem rapidamente – o recém-formado advogado Caspar Leinen, o papel de Elyas M’Barekna foto abaixo, o protagonista da história, o Davi que vai enfrentar os Golias.

Enquanto a funcionária vai rapidamente para a recepção do hotel ali no lobby, a câmara do diretor de fotografia Jakub Bejnarowicz mostra em um plano americano o rosto do idoso que acaba de confessar seu crime. Usa paletó, gravata, um sobretudo, e na camisa social há pingos de sangue. É um homem de barba, grandes entradas no cabelo ralo do alto da cabeça, mas com um pequeno rabinho de cavalo. É um rosto forte e belo, muito forte e muito belo, de olhos de um azul faiscante.

Tive muita vergonha de mim mesmo quando vi, nos créditos finais, que aquele ator que faz o assassino é Franco Nero. Eu não o havia reconhecido. Franco Nero, o galã do cinema italiano dos anos 60 que virou galã, bandido, mocinho e o escambau em tudo quanto é tipo de filme de tudo quanto é país europeu, trabalhou em mais de 200 títulos e foi dirigido por Luis Buñuel, Rainer Werner Fassbinder, Claude Chabrol, Sergei Bondarchuk, Michael Cacoyannis, Elio Petri, Marco Bellocchio. Ali pelo fim dos anos 60, início dos 70, casou-se com Vanessa Redgrave, aquela deusa. Depois de décadas vivendo juntos, os dois se casaram no papel em 2006, e estão juntos até hoje.

Me estendi sobre Franco Nero aqui bem no princípio do texto. Foi um erro, mas não consegui me impedir. Franco Nero é uma grande figura, e é importante que seja ele o ator que interpreta o assassino.

O rapaz vai defender o assassino de seu pai adotivo!

Quando se passaram apenas 3 minutos, a câmara, que antes mostrava o assassino em plano americano, vai se aproximando do rosto dele, em suave zoom. Atrás, em segundo plano, o espectador pode perceber a agitação que começa a haver junto da recepção do hotel. A trilha sonora de Ben Lukas Boysen cresce no volume e na dramaticidade de acordes pesados de cordas. Vemos agora em close-up o rosto do homem.

Corta, e, sobre a tela inteiramente negra vemos o título em pequenas letras vermelhas, maiúsculas: DER FALL COLLINI.

Na sequência seguinte, o jovem advogado Caspar Leinen está chegando a um magnífico prédio de um tribunal berlinense, onde é aguardado por um juiz, o juiz Koehler (Falk Rockstroh), e pelo procurador-geral Reimers (Rainer Bock). Fica claro – embora não seja dito com todas as letras – que o juiz havia designado o jovem recém-formado para fazer a defesa do assassino.

O juiz e o promotor dão as informações básicas para o novato: o réu que ele deverá defender se chama Fabrizio Collini, nascido em Montecatini, na Itália, perto de Pisa, em 1934; fala alemão razoavelmente, pois havia 30 anos morava na região de Stuttgart. Ele havia assassinado Jean-Baptiste Meyer.

O jovem advogado é tão absolutamente neófito, inexperiente, que havia colocado sua beca para comparecer diante do juiz e do procurador numa primeira audiência, informal, sem a presença de mais ninguém.

Mais, e muito pior: Caspar Leinen era tão jovem, tão absolutamente neófito, inexperiente, que sequer havia percebido que a vítima, Jean-Baptiste Meyer, era o conhecido, famoso, poderoso industrial Hans Meyer.

Quando seus colegas de escritório contam para ele que o Jean-Baptiste Meyer assassinado pelo homem que iria agora defender é Hans Meyer, Caspar Leinen entra em absoluto pânico, parafuso.

E então rápidos flashbacks mostram que o milionário Hans Meyer havia conhecido o garotinho Caspar, filho de uma imigrante turca separada do marido, e havia se tornado um benfeitor dele, praticamente um pai adotivo. Caspar havia crescido sendo amigo íntimo de Philip, um neto do milionário.

Mais, e muito mais complicado ainda: na adolescência, Caspar havia tido um caso, e um caso sério, com a irmã de Philip, Johanna Meyer.

Os pais de Philip e Johanna, assim como o próprio Philip, haviam morrido num acidente de trânsito. Johanna passara a ser a única descendente de Hans Meyer, e a herdeira de sua fortuna e de suas indústrias.

E para seu primeiro caso de direito penal Caspar havia sido designado para defender o velho que assassinara com a maior brutalidade possível o homem que havia sido seu pai adotivo, seu benfeitor. O avô da garota que ele havia amado na adolescência, de quem ele ainda era próximo.

Quando o filme está com apenas 12 minutos, Caspar e Johanna (o papel de Alexandra Maria Larana foto abaixo, nascida na Romênia e criada na Alemanha desde criancinha) se encontram. Fica claríssimo para o espectador que os dois continuam se gostando muito. Para complicar um pouco mais, o marido dela está longe, numa temporada em Londres.

Quando ele conta que foi escolhido para defender o assassino, ela diz o óbvio: – “Claro que você não vai aceitar.”

Ele: – “Eu já aceitei. Não é tão fácil sair dessa.”

Ela: – “É um conflito de interesses.”

Ele: – “Não somos parentes.”

Ela: – “Caspar, você não pode defender alguém como este homem.”

Surgem na tela tomadas de Caspar treinando boxe, a trilha sonora de Ben Lukas Boysen amplificando a tensão, acordes contundentes de violino. Corta, e os dois se abraçam.

O filme não chegou a 15 minutos ainda, e já há aí uma trama intrincada, uma quantidade de drama capaz de preencher uns dois livros de John Grisham. Mas ainda tem mais logo em seguida.

O professor doutor Richard Mattinger (Heiner Lauterbach, um ator apavorantemente competente), uma lenda no mundo do Direito daquela Berlim de 2001, que havia sido professor de Caspar, é escolhido advogado da família da vítima, para trabalhar juntamente com a procuradoria.

Todos os Golias do mundo contra o pequenino novato Davi.

Não é apenas um filme de tribunal. É mais

Temos aí, de sobra, elementos para um excepcional filme de tribunal. Só que este O Caso Collini não é apenas um filme de tribunal.

Há vários pontos que chegam perto de fatos reais na trama fictícia criada pela imaginação imensa do escritor-advogado Ferdinand von Schirach. Mas eles só vão aparecer depois que o filme passa da metade de seus 123 minutos.

Repito: tudo o que de fato é o tema central do filme só aparece depois que ele chega na metade.

Assim, a rigor, falar sobre isso é spoiler.

Para quem ainda não viu O Caso Collini e chegou até aqui neste texto, o que dá para dizer é que o assassino, esse Fabrizio Collini interpretado por Franco Nero, recusa-se a falar, a contar por que raios matou Hans Meyer. Insiste em não falar, contar, confessar, explicar – mesmo com o advogado batendo diversas vezes na tecla de que se ele explicasse, desse as razões, seria mais fácil defendê-lo, conseguir uma pena menor.

Quando o filme está com 52 minutos, o jovem Caspar faz mais uma tentativa, dentro do tribunal, antes do início de mais uma sessão do julgamento: – “Por que você se tortura? Por que não me diz o que aconteceu?”

E Collini, firme como uma rocha: – “Por que não adianta”.

Todas as sinopses do filme que vi dizem de cara o que o filme só revela depois de 60 minutos de projeção. São erros de quem escreveu as sinopses, eu acho. Pessoalmente, tenho tido cada vez mais cuidado com os spoilers. Spoiler, só se a gente avisar bem.

A partir daqui vem spoiler. Não faz sentido o eventual leitor que ainda não viu o filme continuar lendo.

Atenção: aqui surgem spoilers

Os fatos que levaram Fabrizio Collini a assassinar Hans Meyer, em 2001, em Berlim, aconteceram num passado remoto. Exata, precisamente, 57 antes, em 1944, ainda durante a Segunda Guerra, na cidadezinha da família de Collini, Montecatini, na Toscana, perto de Pisa.

Um soldado do destacamento do exército nazista estacionado na região foi morto numa emboscada, e então o oficial que comandava o grupo deu a ordem: para cada alemão morto, dez italianos seriam executados no meio da praça central da cidadezinha. Os soldados fizeram buscas nas casas da região atrás de todos os que pudessem estar ligados aos partisans, os resistentes, rebeldes. Dez homens foram escolhidos – e fuzilados. Um deles era Nicola Collini (Stefano Cassetti), o pai de Fabrizio (interpretado pelo garoto Leonardo Orsolini).

O oficial que ordenou o massacre, que segurou o menino Fabrizio enquanto o pai era fuzilado, era Hans Meyer.

O jovem advogado Caspar Leinen vai obtendo esses fatos não através do seu cliente Fabrizio Collini, que permanece em silêncio – “Porque não adianta” –, mas num trabalho duro de investigação, em que conta com a ajuda de uma historiadora especialista, do seu próprio pai (o papel de Peter Prager), de quem sempre esteve distante por ele ter abandonado a sua mãe, e de uma jovem italiana meio punk, Nina (o papel de Pia Stutzenstein).

A questão que se levanta então no tribunal é: mas por que Fabrizio Collini não denunciou o caso às autoridades competentes, após o final da guerra? Por que não procurou por justiça junto à Justiça, em vez de fazer justiça com as próprias mãos?

Aí é que está. Fabrizio e sua única irmã haviam ido à Justiça, haviam apresentado o caso às autoridades alemãs, anos e anos atrás. Mas a Justiça não fez absolutamente nada contra o sujeito que, como oficial nazista, havia ordenado a matança de civis em Montecatini.

E neste ponto o escritor Ferdinand von Schirach fundiu – com grande talento – a sua história fictícia com elementos da realidade histórica.

O jovem Hans Meyer foi inocentado com base em um artigo enfiado na última hora numa lei aprovada em 1968 pelo Parlamento da então República Federal da Alemanha, a Alemanha Ocidental. O tal artigo foi colocado no texto que ia à votação no Bundestag por um advogado chamado Eduard Dreher, e passou a ser conhecida como Lei Dreher. Esse sujeito havia sido advogado de criminosos de guerra nazistas.

Explica a Wikipedia que o artigo declarava que daí em diante haveria um estatuto de limitação de 15 anos após a época da ofensa para que ela fosse levada aos tribunais. Em outras palavras, em 15 anos os crimes estariam prescritos. “Em 1969, foi feita uma estimativa de que graças ao adendo de Dreher, 90% de todos os criminosos de guerra nazistas passaram a ter total imunidade”, informa a enciclopédia colaborativa.

Volto à história de ficção criada por von Schirach. Em 2001, morreu a irmã de Fabrizio Collini. Ele não tinha mais parente algum no mundo. Ninguém iria sofrer se ele fosse preso. E então ele decidiu se vingar.

Justiçamento e Justiça, barbárie e civilização

Ah, o desejo de vingança…

A imensa distância entre justiçamento e justiça – a mesma distância que há entre a barbárie e a civilização.

O olho-por-olho, dente-por-dente, e a civilização.

O Caso Collini consegue com brilho expor uma história em que a Justiça falhou fragorosamente – no caso, por causa de um detalhe de uma lei feito para proteger os criminosos de guerra nazista, especificamente. O que eleva a falha à máxima potência, o que torna a falha insuportavelmente agressiva, nojenta, abjeta.

O que, portanto, serve para explicar a decisão tomada por esse Fabrizio Collini tão bem encarnado por Franco Nero.

Para explicar.

Mas justifica?

Não sei como é no livro, mas o filme mostra, num dos flashbacks em que aparecem eventos dos anos 80, o momento em que o então garoto Caspar Leinen viu pela primeira vez na vida o milionário Hans Meyer.

Caspar (interpretado então por Titus Flügel) estava com a mãe (o papel de Ilknur Boyraz) junto de uma lagoa. Hans Meyer chega em um de seus vários Mercedes-Benz com o neto Philipp (Levi Kirchhoff) – e Phjlipp fala uma frase racista, alguma coisa tipo: – “Como esse menino turco pode nadar nesse lago?” Hans Meyer (já interpretado por Manfred Zapatka) pede desculpas à mãe e ao próprio Caspar, dizendo uma frase como “Não sei onde esse meu neto aprendeu a falar esse tipo de coisa”. E em seguida vemos Caspar e Philipp, já amiguinhos, brincando juntos, correndo pelos salões da magnífica mansão do milionário.

A partir daí, Caspar passa a ser um protegido de Hans Meyer. Há falas e referências no filme que mostram que seus estudos foram custeados pelo milionário, que virou de fato uma espécie de pai adotivo dele.

Um garoto moreninho, filho de um casamento que logo se desfez entre um alemão e uma imigrante turca.

Em todas as sequências dos flashbacks passados nos anos 80, em que Caspar era garoto, o Hans Meyer que vemos é um homem com todo o jeito de uma pessoa afável, simpática, de bom coração.

A coisa mais distante possível de um nazista criminoso de guerra.

Depois que o filme terminou, fiquei pensando: aquele homem que Fabrizio Collini assassinou tinha pouco, quase nada a ver com aquele que, 57 anos antes, havia assassinado seu pai.

E esse me parece o ponto mais importante de todos.

Cada obra é refeita por cada um que a vê. O espectador pode achar o que quiser, é claro. Mas, na minha opinião, O Caso Collini é um grande filme até mesmo por não fazer a defesa da vingança empreendida por Fabrizio Collini já no final da sua vida – e da do homem que ele assassina.

O filme mostra a história. Mostra a gigantesca falha do sistema judiciário alemão no passado, provocado por um erro do Legislativo. Mas não defende a vingança, o olho-por-olho, dente-por-dente.

Porque mostra que o homem assassinado já não era mais o assassino nazista, tantas décadas depois.

Uma beleza de filme.

Anotação em dezembro de 2021

O Caso Collini/Der Fall Collini

De Marco Kreuzpaintner, Alemanha, 2019

Com Elyas M’Barek (Caspar Leinen)

e Alexandra Maria Lara (Johanna Meyer, a neta da vítima), Heiner Lauterbach (Prof. Dr. Richard Mattinger, o advogado bambambã), Franco Nero (Fabrizio Collini, o assassino), Manfred Zapatka (Hans Meyer, a vítima), Jannis Niewöhner (o jovem Hans Meyer), Rainer Bock (Dr. Reimers, o promotor), Catrin Striebeck (a juíza presidente do tribunal), Pia Stutzenstein (Nina, a italiana da pizzaria), Peter Prager (o pai de Caspar), Hannes Wegener (Aicke), Falk Rockstroh (juiz Koehler), Titus Flügel (Caspar menino), Omid Memar (Caspar adolescente), Ilknur Boyraz (a mãe de Caspar), Levi Kirchhoff (Philipp, o neto de Hans Meyer, quando criança), Ludwig Simon (Philipp Meyer, o neto de Hans), Tara Fischer (Johanna adolescente), Margarete Tiesel (a governanta da mansão Meyer), Esther Maria Pietsch (secretária do tribunal), Alexander Tschernek (funcionário da pizzaria), Sabine Timoteo (especialista em armas), Sandro Di Stefano (Claudio Lucchesi), Axel Moustache (Alberto Lucchesi), Stefano Cassetti (Nicola Collini, o pai de Fabrizio), Sina Reiß (Janina Fischer), Frederik Götz (Tim), Thomas Limpinsel (patologista forense), Leonardo Orsolini (Fabrizio Collini menino)

Roteiro Christian Zübert & Robert Gold & Jens-Frederik Otto

Baseado no romance de Ferdinand von Schirach  

Fotografia Jakub Bejnarowicz 

Música Ben Lukas Boysen     

Montagem Johannes Hubrich

Casting Franziska Aigner-Kuhn

Direção de arte Josef Sanktjohanser

Produção Marcel Hartges, Christoph Müller, Kerstin Schmidbauer, Constantin Film, SevenPictures Film, Mythos Film,

Rolize GmbH & Co., Viola Film

Cor, 123 min (2h03)

***1/2

O sertão não virou mar.

 



Entre a denúncia e o fatalismo: natureza, sociedade e sertanejos-retirantes na literatura que evoca o Nordeste das secas
Between denunciation and fatalism: nature, society and “sertanejos-retirantes” in the literature that evokes the Northeast of the droughts


DOI: 10.36920/esa-v28n3-4



orcid_cinza.jpg  Liduina Farias Almeida da Costa[1]

 

 

Resumo: Há consenso de que, no Brasil, a literatura é uma das primeiras áreas a assimilar contribuições sociológicas europeias do final do século XIX, e sob influência do darwinismo social e de teorias deterministas tematizar a raça e o meio. O movimento conhecido como literatura regionalista foi profundamente influenciado por esses temas. Neste artigo, o objetivo é desenvolver reflexão sobre obras desse movimento literário, cujos autores se dedicaram ao tema da seca na região Nordeste do Brasil, apontando algumas de suas repercussões na constituição de uma suposta identidade nordestina. O artigo consta de duas partes. A primeira trata do Nordeste como região construída e da emersão da seca como calamidade social. Na segunda, discutimos sobre a seca nos romances regionalistas, destacando elementos discursivos que expressam relações sociais em cidades nordestinas “receptoras” de populações rurais em tempos de seca. Concluímos que as obras têm uma função denunciatória, mas deixam quase ausentes as reações de sujeitos políticos. Desse modo, ainda contribuem na reprodução de velhas imagens, como símbolos, que também impelem à estigmatização da identidade e ações políticas muito mais de permanência que de mudanças

Palavras-chave: literatura regionalista; Nordeste; imagens da seca.

 

Abstract: (Between denunciation and fatalism: nature, society and “sertanejos-retirantes” in the literature that evokes the Northeast of the droughts). There is an agreement about the role of literature in Brazil in the assimilation of the European sociological contributions in the end of 19th century, particularly the influence of social Darwinism and Determinism on the discussions about race and context. The movement known as regionalist literature was deeply influenced by these themes. This paper aims to reflect on the works of this literary movement, whose authors dedicated themselves to the theme of drought in Northeast Brazil, pointing to some of its repercussions on the construction of an alleged Northeastern identity. The paper is divided in two parts. The first deals with the idea of the Northeast as a constructed region and the emersion of drought as a social calamity. In the second part, the drought in the regionalist novel is discussed, highlighting the discursive elements that express social relations in cities that acted as “receptors” of rural populations during drought periods. It concludes that these novels had a denunciative role, but they rarely reflect the reactions of the political subjects. They therefore contribute with the reproduction of old images as symbols that stigmatize identity and political actions much more related to permanence than to change.

Keywordsregionalist literature; Northeast; drought images.

 

 

 

 

 

Introdução

No Brasil, a literatura é uma das primeiras áreas que, juntamente à do direito e à da filosofia, irá assimilar as contribuições sociológicas do final do século XIX e com elas a priorização de temáticas como a racial e a do meio. Naquele fim de século, a constituição das ciências sociais, em contexto europeu, assimilou contribuições do modelo mecanicista de ciência e, em decorrência, propiciou a discussão entre objetividade e subjetividade no exercício de produção do conhecimento e a busca por perspectivas teórico-metodológicas. À época, literatos e intelectuais brasileiros como que atormentados pela nossa miscigenação racial espelharam-se em centros ditos civilizados do mundo, na tentativa de definir um “caráter nacional brasileiro” (LEITE, 2002). São exemplares a este respeito vários romances regionalistas, sobretudo os da fase realista e Os Sertões, de Euclides da Cunha, considerado precursor das ciências sociais brasileiras (GALVÃO, 1984SEVCENKO, 1999). Nele, haveria não apenas “um tipo antropológico brasileiro” e sim um intrincado caldeamento de sub-raças, destacando-se o sertanejo. Este daria a impressão de um tipo antropológico invariável: “antes de tudo, um forte”, Hércules-Quasímodo que reflete a fealdade típica dos fracos, entretanto, transfigura-se diante de qualquer incidente. Centauro bronco, que tem como antítese na postura, no gesto, na palavra, na índole e nos hábitos o gaúcho do Sul, que não conhece os horrores da seca e os combates cruentos com a terra árida e exsicada (CUNHA, 1995).

A despeito da classificação “literatura regionalista”, podemos extrair dela um comprometimento com temas – localistas e universalistas, como talvez dissesse Rouanet (1993) – como a vida, a fome, a morte, o sofrimento e a violência, entre outros estreitamente relacionados à sociedade e à natureza, conforme discutimos na segunda parte deste artigo. A última frase de Guimarães Rosa (1986) “existe é homem humano”, em Grande Sertão Veredas, sugere enxergarmos em personagens centrais dos ficcionistas regionalistas não uma sub-raça forte, mas seres humanos destituídos de bens materiais e simbólicos desafiando a morte. 

Como documento estético, a literatura regionalista pode cumprir “a função de denúncia que caracteriza a boa ficção” (MONTENEGRO, 1983). Nela, conforme o crítico literário Landim (1992 apud COSTA, 2005), o fenômeno da seca é considerado como fato social de grande significação, tendo em vista: a desarticulação do processo de acumulação em termos regionais e de classe; a desagregação familiar e de aglomerados humanos, sobretudo os que dependiam das culturas de subsistência; e a pressão de grupos sociais sobre o Poder Público, pela execução de políticas de assistência à população atingida.

Neste artigo, temos como objetivo discutir acerca de obras literárias classificadas como regionalistas, cujos autores se dedicaram à temática da seca em séculos passados, no Nordeste do Brasil, apontando algumas de suas repercussões na constituição de uma identidade nordestina.

Ao nos debruçarmos sobre essas obras clássicas que focaram a seca, sintonizamo-nos com a perspectiva interpretativa de Ortiz (1985) sobre o papel dos intelectuais na construção da identidade nacional. Seriam agentes históricos operadores de transformações simbólicas na realidade. Ao sintetizá-la como única e compreensível, teriam possibilitado que, por meio de reinterpretação, o Estado se apropriasse de determinadas práticas populares, apresentando-as como expressão da cultura e da identidade nacionais. 

Entretanto, ao considerarmos especificidades da região Nordeste, admitimos, de acordo com Bourdieu (1989a1996), que a identidade é relacional, está em jogo nas lutas sociais e, nesse jogo, existe a possibilidade de manipulação, visando torná-la emblema ou estigma, como também a possibilidade de sua utilização para enfatizar a existência do grupo ou dissimulá-lo para apagar sinais reveladores de estigma. Para o autor, as manifestações sobre identidades dominadas são lutas simbólicas em torno da identidade social e resposta à estigmatização que produz um território ou região. Nestas lutas, o envolvimento dos agentes ocorre de modo individual ou coletivamente, visando à conservação ou à transformação das leis de formação dos preços materiais ou simbólicos. 

O artigo tem suporte teórico e metodológico em minha tese de doutoramento em sociologia, em trabalho de releitura bibliográfica, sobretudo, de autores utilizados em sua elaboração, como também em obras literárias e revisão de publicações nossas.

No processo de escolha das obras literárias, encontramos apoio em genealogia da literatura regionalista, proposta por Landim (1992), e sua classificação em três perspectivas e fases, tais como: romantismo, naturalismo, modernismo. Entretanto, destacamos dessa genealogia as obras que nos remetem ao drama da seca, ou seja: Cabeleira (1988), de Franklin Távora; Os Retirantes (1972), de José do Patrocínio; A Fome (1979), de Rodolfo Teófilo; Luzia-Homem (1957), de Domingos Olímpio; A Bagaceira (1983), de José Américo de Almeida; O Quinze (1997), de Raquel de Queiroz; Vidas Secas (1983), de Graciliano Ramos; Gabriela Cravo e Canela (1958), de Jorge Amado. 

Além desta introdução, o artigo consta de duas partes e considerações finais. Na primeira parte, desenvolvemos discussão acerca da constituição sócio-histórica do Nordeste e da emersão da seca como calamidade social em contexto de desorganização da dinâmica socioeconômica da região ao final do século XIX e o desnudamento das desigualdades e diferenças. Na segunda, discutimos sobre elementos discursivos dos romances regionalistas que expressam relações sociais em cidades nordestinas “receptoras” de populações rurais em tempos de seca, destacando elementos discursivos recorrentes, tais como: os sertanejos diante da seca; a transmutação dos sertanejos em retirantes; a dissolução da família; a insustentabilidade da propriedade privada; a fome, perda de honorabilidade, corrupção e violência instituída. Esta é representada por meio de ações de prepostos do Estado sobre os grupos sociais desalojados do seu mundo rural: os sertanejos-retirantes.

 

Seca e calamidade social no Nordeste: o desnudamento de desigualdades

Embora haja informações de ocorrências de estiagens nessa área do país desde a chegada dos portugueses, seus efeitos só adquirem mais importância política à medida que os interesses de grupos dominantes também começam a ser afetados, como no período compreendido entre 1877 e 1879, quando o Nordeste ainda não havia se constituído como região, mas emergiam as primeiras articulações simbólicas neste sentido (SILVEIRA, 1984ALBUQUERQUE JÚNIOR, 19881994a1994bDOMINGOS NETO, 19972010).

Com apoio nas formulações teóricas de Bourdieu (1989a) sobre a região, admitimos que o Nordeste não é mera invenção ex nihilo, não possui uma natureza essencialista, entretanto comporta especificidades objetivas, as quais nos indicam que a literatura regionalista direcionada ao fenômeno da seca pode ser mais bem compreendida ao acompanharmos a transformação desse fenômeno em flagelo social em face de alterações na dinâmica socioeconômica dessa área do país e sua constituição como região-problema e, nesta, a do Nordeste das secas.

 

O Nordeste como região construída

Em consonância com o pensamento de Said (1996), a nosso ver, o Nordeste não é mero fato da natureza nem também uma criação sem correspondência com a realidade. As ideias, culturas e histórias relacionadas à região têm referência nas relações de poder que se estabelecem entre grupos sociais diferenciados interna e externamente. O Nordeste, conforme diria este autor, não é apenas um mito ou um mero discurso passível de demolição mediante análises desmistificadoras.

Especificidades de natureza objetiva como condições climáticas e tipos humanos da região são apontadas desde as narrativas de viajantes europeus, a exemplo de Koster (1941), Spix e Martius (1981), ou por autores brasileiros como Capistrano de Abreu (1930), Euclides da Cunha (1995), Gilberto Freyre (1926/197619411961), Djacir Menezes (1995), Josué de Castro (19571967), escritores regionalistas como José de Alencar (1965) e os mencionados em página anteriorConforme podemos afirmar com inspiração em Bourdieu (1989b), as descobertas dessas especificidades tiveram suporte numa sociologia espontânea e foram assimiladas pelo processo de definição legítima do Nordeste como região diferenciada, e vêm, até o presente contexto, contribuindo para sua reprodução, mediante múltiplas linguagens e pautas políticas.

Adverte-nos, entretanto, o mesmo autor: embora inexistam critérios capazes de definir regiões naturais; a fronteira seja o produto de uma di-visão a que se atribuirá maior ou menor fundamento na realidade; e no processo de regionalização determinados agentes sociais (neste caso, o Estado) tenham o monopólio da definição legítima, o poder de constituição de determinada realidade só poderia ser obtido ao término de um longo processo de institucionalização. Ou seja, a “eficácia simbólica depende do grau em que a visão proposta está alicerçada na realidade” (BOURDIEU, 1989a, p. 166).

 

Emerge o Nordeste das secas

Tornou-se consenso entre estudiosos, que a seca na região Nordeste do Brasil passa a configurar-se como problema de calamidade social depois da segunda metade do século XIX, em decorrência de fenômenos socioeconômicos como o rebaixamento de preços do açúcar, a venda de escravos para o Sul e o expressivo crescimento demográfico. Associada a estes fenômenos ocorre, segundo Domingos Neto (1997 apud COSTA, 2005),[2] a perda dos traços originais da pecuária extensiva praticada na região, sobressaindo, entre estes, a acentuada dependência dos fatores naturais para complementar a alimentação humana; vigoroso processo de formação de mercado interno; graves problemas de convívio com a agricultura e extraordinária capacidade de esgotamento das condições naturais do solo. No intuito de se reproduzir, a pecuária extensiva introduz a prática de consorciação de gado com produtos de subsistência e algodão. É nesse processo de recriação da atividade pecuária que emerge o Nordeste das secas.

A pecuária extensiva nordestina no período colonial – seu período de expansão e apogeu –, segundo Domingos Neto e Borges (1987), antecipava-se às perspectivas de riscos em decorrência de estiagens, porque fazia parte de sua dinâmica o empreendimento de retiradas periódicas do gado, em busca de refrigério encontrado na própria região.

Na ótica de Domingos Neto (2010), além de a pecuária haver representado importante contribuição para a ocupação do território brasileiro, foi uma extensão e ao mesmo tempo uma infraestrutura do empreendimento açucareiro. Tratar-se-ia de um esforço de produção de mercadorias com características radicalmente diferentes das que marcavam a produção agroexportadora canavieira, da qual se destacava pelos seguintes aspectos: utilização de padrão técnico elementar, pouca vinculação de moeda, ausência de aglomerados urbanos, pequena diversificação da produção, relações de trabalho e, finalmente, as condições de pobreza da população dedicada a essa atividade.

Descartando ideias como as de marasmo e dualidade presentes nas análises acerca do Nordeste da pecuária, Domingos Neto (1997 apud COSTA, 2005) realça que a rápida expansão da atividade pecuária visava: ao atendimento das demandas dos engenhos por força de trabalho indígena e por gado, ao afastamento das tribos que preocupavam a zona açucareira e à necessidade de ocupação de todo o espaço, objetivando evitar a reorganização de comunidades nativas.

Conforme analisa esse mesmo autor, a dinâmica da sociedade dos vaqueiros, organizada segundo os traços originais anteriormente referidos, recriara-se ao longo do século XIX, em virtude de fenômenos como: empobrecimento dos pastos naturais, crescimento populacional, aquisição de novas percepções do espaço pelos sertanejos, mudanças nas relações de trabalho mesmo antes da Lei Áurea, como no caso do Ceará, alterações na estrutura fundiária com a redução dos domínios territoriais e multiplicação das pequenas e médias propriedades, complexificação das atividades econômicas com o desenvolvimento do comércio e de outras formas de prestação de serviços e, finalmente, a intervenção paulatina do Estado nacional no sertão (DOMINGOS NETO, 1997 apud COSTA, 2005).

Acrescenta ainda o autor que, diante da necessidade do estabelecimento de consórcios entre a criação de gado, o algodão e as culturas de subsistência, em face do crescimento demográfico e do número de núcleos urbanos, a fazenda irá absorver, também, trabalhadores que não se ocuparão do rebanho e sim de cultivos que transferirão a renda da terra para o fazendeiro. Em número elevado, esses trabalhadores ficariam sujeitos ao fenômeno da seca, conforme esclarece Domingos Neto:

[...] A expansão dos roçados foi sintoma da impossibilidade da criação de gado garantir as necessidades de uma população em crescimento. Assim, a sobrevivência econômica do fazendeiro passa a depender de sua capacidade de apropriação do excedente de roças de algodão e de uma reduzida pauta de produtos alimentares. A expansão da agricultura de subsistência ocorre paralelamente a queda de produtividade da criação de gado e da redução das dimensões da fazenda. A proliferação dos roçados leva o fazendeiro a assumir funções de comerciante, resultando na ampliação das exigências sobre os trabalhadores rurais quanto a renda da terra. Esta assume múltiplas e variadas formas, sendo a mais elementar e generalizada a do aproveitamento da roça, após a colheita, para o pasto. A novidade adotada para assegurar a sobrevivência da fazenda de gado foi socialmente elevada: fez crescer o contingente de trabalhadores dependente de uma produção agrícola rudimentar e sem possibilidades de defesa técnica contra as adversidades climáticas. (1997, p. 64)

Portanto, a seca, como calamidade social, emerge juntamente com a criação de estratégias de salvação da pecuária extensiva, ou seja: o consórcio do gado com as culturas de subsistência e o algodão. Este último, conforme análise desse mesmo autor, embora tenha dinamizado várias cidades nordestinas, por meio da comercialização, não teria configurado um ciclo ou uma atividade cuja importância se ligasse somente ao mercado internacional, devido à recorrente oscilação de demanda. Sua função primordial seria a sobrevivência da pecuária, um alento à sociedade dos vaqueiros.

Ao emergir segundo essa dinâmica, a seca não seria determinante da quebra do processo produtivo da criação de gado, e sim um fator a mais colocado como a gota d’água na desorganização da economia vigente. Posteriormente, o fenômeno ter-se-ia expandido geograficamente para o Nordeste Ocidental.

A emersão do Nordeste das secas tem como uma das suas mais claras demonstrações a ocorrência da estiagem verificada entre 1877 e 1879 – a seca dos três oitos, como mostram memórias de antepassados nossos – num contexto de crise econômica, quando, em consequência da desorganização do processo produtivo, grande quantidade de sertanejos – trabalhadores/agregados e proprietários rurais/fazendeiros – até então ocupados nas atividades agrícolas de subsistência, algodão ou pecuária transmutam-se em retirantes ao deixar para trás essas atividades e enfrentar as agruras do êxodo rumo às cidades, principalmente as do litoral. 

Contudo, não obstante a dinâmica econômica ora apresentada, admite-se que a seca como flagelo é também socialmente construída. Ultrapassa, portanto, o mero processo econômico. Além disso, suas repercussões e significados modificam-se em conformidade com as circunstâncias socioeconômicas e políticas de distintos períodos na região e no país. 

O conjunto de alterações nas formas de sociabilidade e nos costumes cotidianos das áreas afetadas pela estiagem, o modo de deslocamento dos sertanejos carentes de alimentação em exaustivas caminhadas de léguas e léguas rumo a alguma cidade e o dia a dia nos abarracamentos ou campos de concentração improvisados pelo Poder Público para lhes “abrigar” nessas cidades foram captados por várias modalidades de artes. Entre estas, a literária, especialmente por ficcionistas pertencentes a correntes regionalistas que, antecipando-se ou em paralelo às ciências sociais, produziram análises de valor documental estético inconteste.

 

A seca no romance regionalista

Diante das mudanças socioeconômicas, ocorridas em consequência das razões anteriormente descritas, a seca irá provocar enorme êxodo rural rumo às cidades. Estas, ao se transformarem em áreas “receptoras” de sertanejos-retirantes serão palcos, por excelência, de desnudamento do fenômeno da pobreza e expressões de desigualdades que, entretanto, são percebidas pelo senso comum como desordem social. 

Tais cidades convertem-se em grandes abarracamentos de desocupados e mendigos, os quais, carentes de condições da reprodução biológica da própria vida, deploram costumes e valores sociofamiliares, alimentares, religiosos e sexuais então vigentes. As elites urbanas, parte delas enriquecida com o tráfico interno de escravos, tiram proveitos econômicos e políticos da situação, mas deploram os sertanejos agora transmutados em retirantes ou mostram-se indiferentes ao seu sofrimento. 

Esse panorama é protagonizado por grupos sociais em grande e visível assimetria e representado, pioneiramente, em obras literárias regionalistas que também se apoiaram no darwinismo social e em teorias deterministas.

Landim (1992 apud COSTA, 2005) refere-se ao fato de que, sob o ponto de vista ficcional, o fenômeno da seca confere uma autonomia à região, à medida que os escritores teriam assumido um enfoque sociopolítico de explicação do fenômeno, concebendo-o como fato social de expressiva significação. Um dos elementos já mencionados, que, segundo este autor, constituem a temática da seca nas obras de ficção consistiria em pressões sociais de grupos destituídos de seus bens em consequência da quebra do processo econômico. 

Destacamos, entretanto, que os estudos de Neves (2000) tecem uma crítica a interpretações equivocadas das reações dos retirantes famintos como se fossem elas de natureza meramente espasmódica ou irracional. Para o autor, com fundamento na concepção thompsoniana de multidão, esses grupos sociais constituiriam multidões e, como tal, sujeitos coletivos políticos, cujas raízes já seriam encontradas em 1877.

          

Os sertanejos diante da seca

Embora os escritores regionalistas não afirmem que a quebra do processo produtivo decorrente da seca é determinante dos problemas presentes na sociedade rural e na urbana, uma relação de causalidade desta ordem pode ser lida nas entrelinhas de suas obras. A seca é tratada como uma espécie de matriz geradora de todos os malefícios sociais que atingem os sertanejos de quaisquer grupos sociais, quer sejam trabalhadores rurais de qualquer categoria, quer sejam os donos das terras, os fazendeiros. Em boa parte dos romances em tela, estes grupos aparecem nivelados socialmente pelo sofrimento e suas reações são interpretadas ambiguamente: ora como mero espectador diante dos caprichos da natureza que lhes nega as condições de reprodução da vida, ora como herói-lutador diante da percepção de que a morte se avizinha (COSTA, 2005).

Encarada pelos sertanejos como desgraça ou sentença de morte, a seca desencadearia uma sequência de ações que seriam inerentes a uma cultura calcada na ignorância e no misticismo. Práticas populares efetivadas como adivinhações sobre o inverno consistiriam no apelo aos horóscopos populares, indicações do lunário perpétuo, observações aos sinais emitidos pela Natureza, como a lua sem lagoa a prenunciar a seca; o ronco das guaíbas ou o zum-zum da itaquatiara anunciando o inverno; a experiência das pedras de sal no dia de Santa Luzia; e a mais decisiva de todas, a falta de chuvas no dia de São José – 19 de março (COSTA, 2005).

Essas práticas populares, todavia, são, em geral, descredenciadas nas narrativas dos escritores em apreciação e, quase sempre, (des)classificadas como superstição, ignorância ou bruxaria.

Prosseguindo, ainda com esperança, os sertanejos lutariam, bravamente, para salvar o gado, mas, perdidas as esperanças, consumariam a venda dos últimos bens que lhes restassem, e até mesmo de pertences da família (inclusive de objetos simbólicos de caráter e valor religioso), no intuito de adquirir meios para custear a emigração e, finalmente, por-se-iam em retirada. 

Essa brava luta é representada pela narrativa de A Fome, quando o autor descreve o momento em que, ao concluir que não há inverno, um fazendeiro e coronel da guarda nacional, destacado entre os sertanejos mais obstinados, se curva aos desígnios divinos e empenha-se, honrosamente, na luta contra o flagelo. Lê-se:

De alvião às costas, acompanhado dos escravos, vai dar combate. Desce à primeira cacimba, que encontra e, com coragem heróica, é quem começa o trabalho. Os alviões retalham a rocha e as pás atiram-na para longe [...]. A camada pastosa foi-se refazendo-se e em breve tocavam os ferros no dorso de uma rocha de granito [...]. Desprezado o primeiro bebedoiro, procurou outros, e assim numa luta sem tréguas com a seca, sempre vencido, assistia ao aniquilamento de seus rebanhos. (TEÓFILO, 1979, p. 6)

A obstinação em salvar o gado, porém, não seria regra geral, pois outros sertanejos, não suportando a catástrofe, poderiam até mesmo dar fim à vida, conforme representado em A Fome, com todo realismo:

[...] Apodrecia ali o cadáver de um homem, cujo rosto estava medonho pela decomposição. A pele cianótica se estilhava na putrefação, que fazia a cara disforme e horripilante. A fisionomia mais hórrida tornava o nariz, que, diluído em uma amálgama de pus e vermes, caía sobre a boca, já sem lábios, e não cobria mais os dentes alvos e sãos [...]. O cadáver estava vestido de camisa e calça de algodão. O hábito, entretanto, na altura do ventre estava rasgado, e rasgado também estava o abdômen pelo cão, a cevar-se nos intestinos e vísceras do morto. O terreno onde descansava o corpo estava revolvido. Parecia-lhe que o morto não era vítima da fome [...]. Examinava o cadáver com interesse, quando notou sinais de um crime: um suicídio por estrangulamento. O pescoço do defunto ainda apertava o mortífero laço. (TEÓFILO, 1979, p. 30)

Apesar de nas obras de ficção examinadas, às vezes, pessoas pertencentes a grupos sociais tão distintos serem igualadas pelo sofrimento diante da perspectiva da morte ou das arbitrariedades praticadas por representantes do Estado, outras vezes grupos sociais distintos – fazendeiros e trabalhadores de fazendas – também teriam reações e destinos diferenciados. Escravos conseguiriam desertar da fazenda sob o olhar benevolente do bom patrão, embora seu destino mais certo fosse a venda para a indústria agrícola do Sul, como descreve Rodolfo Teófilo. 

Os não escravos tinham destino certo: transformar-se-iam, inexoravelmente, em retirantes, após venderem ou sacrificarem seus poucos animais, conseguidos ao longo de muitos anos com o suor do rosto e a humilhação aos patrões, como mostra narrativa de Graciliano Ramos, referente a contexto posterior. Poderiam ainda partir para o desconhecido, conforme se lê em O Quinze, migrando para o Sul, onde encontrariam, quem sabe, um barracão de emigrantes. Ou, ainda, ter o destino de migrante interno à própria região como o da retirante Gabriela, personagem principal de Jorge Amado em Gabriela Cravo e Canela que é “recrutada” para o trabalho doméstico por comerciante no chamado “mercado dos escravos” de Ilhéus – antiga região cacaueira do estado da Bahia –, lugar onde os retirantes acampavam à espera de trabalho. 

Entretanto, até o mais obstinado dos sertanejos teria como destino certo o êxodo, e, caso sobrevivesse durante a viagem em retirada, a condição de retirante na cidade.

O Quinze de Rachel de Queiroz ainda conserva a representação do sertanejo obstinado que, diante do prenúncio ou da consumação da seca, se utiliza de todos os meios disponíveis nas suas terras para a salvação do rebanho. Descreve a escritora:

Encostado a uma jurema seca, defronte ao Juazeiro que a foice dos cabras ia pouco a pouco mutilando, Vicente dirigia a distribuição de rama verde ao gado [...].Era raro e alarmante, em março, ainda se tratar de gado. Vicente pensava sombriamente no que seria de tanta rês, se de fato não viesse o inverno. A rama já não dava nem para um mês. (1997, p. 10-11)

Segundo a narrativa dessa mesma obra, apenas excepcionalmente, alguns sertanejos reagiriam de modos diversos, ao abandonarem o gado e os empregados das fazendas, deixando-os à mercê da sorte. É o caso da personagem dona Maroca, fazendeira velha e doida, conforme a ficcionista, que ordenara ao vaqueiro Chico Bento abrir as porteiras do curral e soltar o gado, caso não chovesse até o dia de São José.

          

A transmutação dos sertanejos em retirantes

Os protagonistas do romance regionalista são seres condenados às imposições de um meio ambiente hostil e avesso às necessidades humanas. Sua capacidade devastadora em tempos de seca é retratada por ficcionistas que realçam beleza e morbidez da natureza indiferente, personificando-a, às vezes, com traços de maldade mesmo diante dos apelos desesperados dos sertanejos aos santos protetores, em quem acreditam. Lê-se em narrativa de Os Retirantes sobre os atos devocionais dos sertanejos, em homenagem a São José, e, entretanto, um desfecho doloroso:

Desde dezembro uma tristeza densa como um nevoeiro, tinha empanado os espíritos [...]. Nem um suor de tempestade embaciou a atmosfera, sempre de limpidez cristalina. Começou desta data a devoção solene, mas foi inteiramente vão o apelo para o céu diante da misantropia da natureza. Os dias secos e ardentes continuavam a devastar o gado, as plantações e as pastagens, ao passo que os rios e os açudes empobreciam como fidalgos pródigos [...]. A claridade elétrica do luar, caindo então sobre a comum tristeza, parecia o olhar esgazeado de miséria a magnetizar o povoado [...]. Estava-se já em princípios de março, e a fatalidade parecia ratificar acrueza das predições [...]. Nos rostos escaveirados, a máscara da fome estagnava-lhes os olhares numa quietação comatosa [...]. O desleixo enxovalhava a mocidade, envilecia a velhice e deformava a meninice. (PATROCÍNIO, 1972, p. 23-57)

Em perspectiva semelhante, a ironia de uma natureza que mata é descrita por José Américo de Almeida em A Bagaceira:

[...] Os raios de sol pareciam labaredas soltas ateando a combustão total. Um painel infernal. Um incêndio estranho que ardia de cima para baixo. Nuvens vermelhas como chamas que voassem. Uma ironia de ouro sobre o azul. O sol, que é para dar o beijo da fecundidade dava a beijo da morte. (1983, p. 35)

A transmutação dos sertanejos em retirantes assemelha-se ao movimento de um ritual marcado por começo, meio e fim. Iniciar-se-ia com o esgotamento dos bens econômicos e a autodestituição de pertences de valor simbólico como objetos sagrados, a despedida saudosa da terra castigada e infertilizada, o início da caminhada em êxodo à luz do luar ou sob o clarear do dia, às vezes em grupos formados por vizinhos, às vezes somente o grupo familiar, e sua fase final, o ritual humilhante da busca por um lugar para descansar um pouco e, finalmente, por sorte, a entrada no abarracamento ou campo de concentração “organizado” pelo Poder Público em algumas cidades. A narrativa a seguir, extraída da obra de Domingos Olímpio em Luzia-Homem é ilustrativa do fenômeno da retirada e da transmutação dos sertanejos:

[...] eram pedaços de multidão varrida dos lares pelo flagelo, encalhando no lento percurso da tétrica viagem através do sertão tostado como terra de maldição ferida pela ira de Deus, esquálidas criaturas de aspecto horripilante [...] trajes rendilhados de trapos sórdidos de uma sujidade nauseante, em papados de sangue purulento de úlceras, que lhes corcomiam a pele, até descobrirem os ossos nas articulações deformadas [...] e o céu límpido, sereno [...] sem uma nuvem mensageira de esperança. (1997, p. 20)

Daí em diante estarão sujeitos ao desdém e à rejeição pela população da cidade, especialmente as elites e autoridades. Ademais, impera a violência em suas variadas formas, desde a simbólica (BOURDIEU, 1989b), expressa pelo (des)tratamento das autoridades e citadinos em geral, até a mais explícita e instituída, representada por policiais em ação ou propostos do Estado encarregados da acintosa e abjeta forma de assistência aos flagelados, a qual consiste, geralmente, em punhados de farinha, em quantidades racionadas e ínfimas. 

Dependentes de tais condições naturais e sociais, e em estado famélico, os retirantes liberariam seus instintos animais, a culminar no desmoronamento da ordem e na destruição dos ideais de uma sociabilidade fundada em valores morais como o respeito à propriedade privada e a preservação da família. 

Diante disso, far-se-iam rearranjos muitas vezes “condenáveis” nas formas de sociabilidade, no intuito de garantir a mera reprodução biológica da própria vida ou a da família. Com a sociedade em processo de degeneração, não faltariam oportunidades para a germinação ou intensificação do banditismo ou do cangaço, conforme descrição de José do Patrocínio em Os Retirantes:

[...] Por que vivo assim? Por que sou malvado? Toda a gente diz; mas ninguém sabe que eu sou pai e que errei de casa em casa sofrendo quanto o diabo enjeita para um dia ver a mulher morrer a míngua na hora do parto. 

– Está bom, você avexa-se com elas demais e eu quase desacoroçôo da vida.

– Fique certo, Virgulino, de que eu não fui convidá-los para virem comigo só para fazê-los bandidos dos Viriatos. Bandidos são todos os homens em certa hora da vida. Eu fui chamá-los para dar-lhes com que alimentar as suas famílias; tomando aos que têm e não querem dar aos que morrem à fome. Os juízes e os ricos podem nos condenar, os pobres chamarão ao que fazemos igualar as necessidades. (1972, p. 15, v. II)

Em O Cabeleira, primeiro romance do cangaço e obra inaugural do regionalismo, Franklin Távora desenvolve narrativa sobre a saga de um herói do mal que, apesar de ser exímio tocador de viola, passou a depender de matar para sobreviver. Fora treinado para isso, e disso vivia, como ilustra um trecho da narrativa, conforme a seguir: 

Quando se divulgou que Joaquim tinha deixado a mulher [...] logo prognosticaram que ele ia estabelecer na mata virgem o seu novo domicílio. À vista de sua má índole [...] houve quem assegurasse que ele estava de mãos dadas com os facínoras de Pernambuco, de Paraíba e de Rio Grande do Norte, que ali se hominizavam. Muitos destes eram conhecidos por seus nomes e pessoas, e uma vez por outra faziam sortidas sobre os povoados, saqueavam as vendas, perpetravam desatinos, e escapavam sempre à ação da justiça, ineficaz naquele tempo [...]. A voz do povo não era senão o eco da verdade. (1988, p. 44)

Em face da impossibilidade de suprir a necessidade mais básica, a alimentação, o homem se igualaria ao animal, como percebemos na descrição de uma luta corporal pela obtenção de alimentos travada entre retirantes e comboieiros a serviço do Estado, responsáveis pela distribuição de farinha, onde se lê: “Travou-se uma luta tremenda, uma briga de feras esfomeadas sobre um minguado repasto [...]. Havia ali uma multidão de homens em tudo semelhantes a uma manada de porcos esfomeados, a disputar o maior quinhão da ceva” (TEÓFILO, 1979, p. 44).

A luta do sertanejo retirante por alimento nem sempre ocorreria por meios violentos explícitos; podia também expressar-se como irracionalidade, ou violência a si próprio. Diante da situação de esgotamento dos alimentos costumeiramente consumidos, retirantes alimentavam-se de cardos, raízes intoxicantes causadoras da cegueira ou da morte, palmitos amargos, animais encontrados mortos em consequência da fome ou de doenças – disputados por cães e urubus – e até mesmo animais domésticos de estimação como cães e papagaios que integravam o grupo familiar. Encontra-se em Vidas Secas:

[...] Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. [...] Sinhá Vitória queimando o assento no chão [...] pensava em acontecimentos antigos [...]. Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio [...]. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. (RAMOS, 1983, p. 11-12)

Na fase de desespero em virtude da fome, ante a perspectiva de morte e total impossibilidade de adquirir alimento, os retirantes praticariam canibalismo. Atitude representada pelos ficcionistas, geralmente a partir de conotação moral ou em comparação à loucura ou animalidade. Lê-se em Os Retirantes:

[...] Ela fitou-o com a gula do tigre, e, gatinhando como ele, com movimentos largos, mas sem ruído, foi parar a pequena distância. Tornou-o a fitar e como se uma jibóia esfaimada se intumescesse dentro de si, empregando toda a sua elasticidade para dar força e precisão ao bote, encolheu-se e de um salto agarrou pelos cabelos a mísera vítima, levantou-a até a altura dos lábios, cobriu-a pela última vez de beijos, como a jibóia cobre a presa de baba, e perdeu de todo a cabeça. Quando voltou aos sentidos regularmente, estava entre as mãos das pessoas que a amarravam e a conduziam à vila. (PATROCÍNIO, 1972, p. 121-122, v. II)

O limite da indignidade humana a que chegariam os sertanejos-retirantes expressa-se por meio da descrição da autofagia, processo característico de animais que se nutrem da própria carne, segundo pode-se ler em A Fome:

[...] O faminto leva a ferida à boca e, com uma avidez com que desarma e comove Freitas, suga o sangue que sai do ferimento, um sangue incolor como o dos insetos. A sucção era feita com gula infrene [...]. Nem uma gota mais vertendo do ferimento, começou a comer as próprias carnes. (TEÓFILO, 1979, p. 35)

 

A dissolução da família

A dissolução da família, esta concebida por alguns dos escritores regionalistas como célula-mãe da sociedade, estaria vinculada a várias causas imediatas: chefes de famílias originários do sertão as abandonariam, metendo-se na esbórnia da cidade; filhos desertariam do grupo familiar por não encontrarem neste qualquer perspectiva de futuro; perda da natureza maternal diante da fuga de filhos em busca de alguma possibilidade de uma sobrevida; filhas donzelas seriam pressionadas pelos prepostos do Estado encarregados da distribuição de víveres a prostituir-se para ganhar a ração que manteria vivos, biologicamente, os membros da família.

Em síntese, a causa mais imediata é a miséria, conforme narrativa de O Quinze sobre uma trajetória de desagregação familiar. Chico Bento e Cordulina – o vaqueiro e sua mulher, moradores de uma fazenda abandonada pela proprietária, dona Maroca, em virtude da seca – perdem, paulatinamente, quase todos os filhos, à medida que a fome vai se tornando insuportável. Inicialmente é a cunhada (Mocinha) que, ainda no caminho do sertão para a cidade, se desgarra do grupo familiar para empregar-se com estranhos, caindo depois na prostituição e na mendicância. Josias, um dos filhos do casal, encontra a paz da cova à beira da estrada, após envenenar-se com raiz devorada para aliviar a fome também durante o trajeto da retirada. A ausência de compromisso do Poder Público com a vida dos retirantes pode ser percebida nas entrelinhas da descrição da morte do menino Josias antes de chegar a uma cidade que recebesse a família. Lê-se em O Quinze:

[...] Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para depois cair no mesmo buraco, à sombra da mesma cruz. (QUEIROZ, 1997, p. 61)

Pedro, outro membro da família, desertou do grupo familiar enquanto os pais variavam de fome pela estrada. Nas buscas empreendidas, alguém teria visto o menino num rancho de comboieiros de cachaça. Mas a mãe, perdendo também a “natureza maternal, pensou: Talvez fosse até para a felicidade do menino. Onde poderia estar em maior desgraça do que ficando com o pai?” (QUEIROZ, 1997, p. 85).

Duquinha, também filho de Cordulina e Chico Bento, foi entregue à madrinha e protetora da família, sob forte comoção dos pais, mas mediante a racionalização de que viraria gente. O casal e os outros dois filhos teriam, no Sul do país, um futuro desconhecido, porém esperançoso: lá não veriam seca nem passariam fome.

[...] Iam para o desconhecido, para um barracão de emigrantes, para uma escravidão de colonos [...] Iam para o destino, que os chamara de tão longe, das terras secas e fulvas de Quixadá, e os trouxera entre a fome e mortes, e angústias infinitas, para os conduzir agora, por cima da água do mar, às terras longínquas onde sempre há farinha e sempre há inverno. (QUEIROZ, 1997, p. 114)

          

A insustentabilidade da propriedade privada

A perda do respeito à propriedade privada, apontada pelos escritores para mostrar a desagregação da ordem social, em face do grau de indignidade humana a que chegavam os sertanejos diante da fome e da sede, é recorrente no romance regionalista, conforme representado em O Quinze:

[...] Um homem de mescla azul vinha para eles em grandes passadas. Agitava os braços em fúria, aos berros. – Cachorro! Ladrão! Matar minha cabrinha! Desgraçado!Chico Bento, tonto, desnorteado, deixou a faca cair e, ainda de cócoras, tartamudeava explicações confusas. O homem avançou, arrebatou-lhe a cabra e procurou enrolá-la no couro. Dentro da sua perturbação, Chico Bento compreendeu apenas que lhe tomavam aquela carne em que seus olhos famintos já se regalavam, da qual suas mãos febris já tinham sentido o calor confortante. E lhe veio agudamente à lembrança Cordulina exânime na pedra da estrada [...] O Duquinha tão morto que já nem chorava. (QUEIROZ, 1997, p. 65-66)

A luta pela sobrevivência, ao longo de todas as etapas de transmutação do sertanejo em retirante e um mundo em destruição pelos efeitos da seca, destituiria os sertanejos de sentimentos humanos a exemplo da solidariedade e da dignidade, como na descrição de Rachel de Queiroz sobre o episódio em que Chico Bento – vaqueiro forte antes de se transformar em retirante – perde o respeito à propriedade alheia ao se ver diante do único meio de salvar sua família da morte por causa da fome:

[...] Caindo quase de joelhos, com os olhos vermelhos cheios de lágrimas que lhe corriam pela face áspera, [Chico Bento] suplicou, de mãos juntas: – Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne, um taquinho ao menos, que dê um caldo para a mulher mais os meninos! Foi pra eles que eu matei! Já caíram com a fome!...

– Não dou nada! Ladrão! Sem-vergonha! Cabra sem-vergonha! A energia abatida do vaqueiro não se estimulou nem mesmo diante daquela palavra. (QUEIROZ, 1997, p. 66)

Cenas amedrontadoras, abjetas e repugnantes denunciam as condições miseráveis dos retirantes no dia a dia dos abarracamentos ou campos de concentração. Por meio delas, Rodolfo Teófilo alude a um passado de fartura e a um presente de miséria em virtude da seca, e assim descreve o estado de animalização a que chegam os sertanejos, mesmo aqueles sob a “proteção” do Estado.

[...] à entrada do quiosque assomou um vulto escuro, caminhando lentamente como um quadrúpede. [...]. Não era um bicho, mas um homem que a fome reduzira a bicho [...]. Os dentes completos, de branco esmalte, sem lábios mais que os cobrissem, num riso perene de ironia e mofa, brilhavam em lúgubres cintilações, mais horripilante tornavam-lhe a figura [...]. Aquela nudez obscena que o delírio famélico expunha sem rebuço, sem consciência, mas também sem sensualidade; à vista de um esqueleto, mas de um esqueleto com sexo o aterrava, porque ia violentar a castidade dos sentidos de Carolina [...]. As narinas dilatam-se-lhe mais, fareja, sorve o cheiro daquela carne sadia na qual tem ímpetos de saciar a fome, de rasgá-la a dentadas. (1979, p. 34)

Cenas com significados semelhantes, no entanto, explicitadoras de um submundo no qual vivem e morrem não somente os antigos trabalhadores das fazendas de gado, mas também os de outras condições econômicas que anteriormente ao flagelo da seca dispunham de um lugar social satisfatório. Descreve Rachel de Queiroz:

Mas, mesmo de fora, que mau cheiro se sentia! Através da cerca de arame, apareciam-lhe os ranchos disseminados ao acaso. Até a miséria tem fantasia e criara ali os gêneros de habitação mais bizarros. Uns, debaixo dum cajueiro, estirados no chão, quase nus, conversavam. Outros absolutamente ao tempo, apenas com a vaga proteção de uma parede de latas velhas, rodeavam um tocador de viola, um cego, que cantava numa melopéia cansada e triste [...]. E, além, uma família do Cariri velava um defunto, duro e seco, apenas recoberto por farrapos de cor indecisa. Conceição sabia quem ele era. Tinha morrido ao meio dia, e a sua gente teimava em não o misturar com os outros mortos. (1997, p. 57-58)

 

Fome, perda de honorabilidade, corrupção e violência instituída

A noção do perigo que os sertanejos-retirantes representavam para a população citadina, em razão de sua condição miserável e do rótulo de retirante que carregavam, seria uma justificativa do Estado para não os deixar no ócio.

Para efetivar o controle social dos imigrantes do sertão, o Estado imprimiria uma marca inaceitável à assistência pública atrelada à violência que, sequer, manifestava-se por meios sutis, como nessa descrição de A Fome:

Mais de mil infelizes, magros e esfarrapados, cercando à distância um comboio de víveres, pediam aos comboieiros punhados de farinha para matar a fome [...] uma retirante se aproxima destes e de joelhos apresenta o filho, uma criancinha a expirar de fome, e pede um pouco de farinha pelo amor de Deus. Uma bofetada tremenda, dada por um dos comboieiros, fá-la rolar no chão, por cima do filho [...]. 

– Não espanco ninguém, garanto e defendo os víveres que me foram entregues e pelos quais sou responsável. (TEÓFILO, 1979, p. 42-43)

A violência velada do Estado também é representada na literatura regionalista por meio da crítica de um personagem à obrigatoriedade dos retirantes de realizarem trabalhos extenuantes e degradantes, sob o pretexto de garantia da ordem e em troca de uma ração, cujo efeito seria apenas o prolongamento de uma vida desgraçada. O diálogo a seguir, entre personagens de A Fome, é ilustrativo a este respeito.

– Não acha o transporte de pedras uma medida vexatória e extravagante?

– O maior dos absurdos. Justificam-no como um meio de livrar o povo da ociosidade. A medida é desastrada [...]. Inanido, cansado da viagem, às vezes velho e doente, segue o infeliz. Alguns nem chegam, com a carga que o governo lhes pôs às costas, ao porto do destino; caem no caminho e morrem de fome, de fadiga! Os que vencem a distância são mais desgraçados ainda, porque continuam a viver uma vida de misérias, de humilhações. Duas vezes por semana dão-lhe um litro de farinha e meio quilo de carne do sul, para se alimentarem com uma família, termo médio, de seis pessoas. (TEÓFILO, 1979, p. 116)

Como expressão da face mais explícita da violência do Estado, o controle social dos retirantes efetivar-se-ia por meio de batidas policiais nos próprios abarracamentos, nos trajetos para o trabalho ou em outros aglomerados de miseráveis, para lhes ensinar. A violência policial sob a justificativa de manutenção da ordem é representada, emblematicamente, também em A Fome, conforme narrativa a seguir:

A soldadesca se aproximava mais e mais [...]. As palavras insultuosas já se ouviam perfeitamente. As mulheres tremiam de medo [...]. Os homens, envergonhados de sua fraqueza, cravavam o olhar no chão! [...]. As patas dos animais pisavam os infelizes, que a prancha do soldado lançava por terra! Na areia rolavam, estorcendo-se, homens e mulheres, cuja epiderme, ainda coberta de cicatrizes, havia sido rasgada. Debandou-se em um instante o grupo. Os soldados continuavam a persegui-los, quando o comandante os chamou a postos:

– Basta por hoje de ensino, não faltará ocasião de surrar esta canalha. (TEÓFILO, 1979, p. 180-181)

Paralelamente a essas formas de controle social, a intervenção do Estado nos problemas ocasionados pela seca define-se nos romances em apreciação pela corrupção dos seus prepostos. Os socorros públicosdestinados à calamidade seriam manipulados por agentes estatais que os administrariam de modo discriminatório, priorizando os protegidos das autoridades ou os apadrinhados de famílias bem relacionadas com as autoridades políticas ou religiosas, como descrito em O Quinze: “Armado com um cartãozinho do bispo e um bilhete particular de Conceição à senhora que administrava o serviço, Chico Bento conseguiu obter o ambicionado lugar no açude do Tauape” (QUEIROZ, 1997, p. 97-99).

A corrupção na forma de apropriação dos bens e serviços públicos pelos agentes estatais pode ser vista por meio do diálogo de personagens também em O Quinze, onde se lê:

[...]

– Ajudar, o governo ajuda. O preposto é que é um ratuíno... Anda vendendo as passagens a quem der mais...

Os olhos do vaqueiro luziram:

– Por isso é que ele me disse que tinha cedido cinqüenta passagens ao Matias Paroara!...

– Boca de ceder! Cedeu, mas foi mão pra lá, mão pra cá... O Paroara me disse que pouco faltou pro custo da tarifa... Quase não deu interesse...

Chico Bento cuspiu com o ardor do mata-bicho:

– Cambada ladrona! [...].

– Que passagens! Tem de ir tudo é por terra, feito animal! Nesta desgraça quem é que arranja nada! Deus só nasceu pros ricos! (QUEIROZ, 1997, p. 30-31)

Sob as patas dos animais, o alimento seria disputado de modo selvagem, depois que Freitas – personagem de Rodolfo Teófilo, descendente de família tradicional e das mais importantes do alto sertão, detentor de fortuna modesta e influência eleitoral herdadas do pai, coronel da guarda nacional transformado em retirante pela ação da seca – decidindo-se pelos famintos, lhes acorda um resto de energia.

[...] Os mais esfomeados precipitavam-se sobre a farinha com uma gula e teimosia para as quais não havia oposição possível. Eram repelidos a empuxões, a murros: caíam, mas voltavam de gatinhas, gemendo ou praguejando. [...] As turmas de famintos aumentavam e a confusão crescia sempre[...]. Pelejavam corpo a corpo. Não se ouvia o tinir de um ferro, mas percebia-se que as carnes dos lutadores eram rasgadas a dentadas. Enquanto os contendores rolavam no chão enovelados num amplexo fratricida, o sítio foi invadido pela onda que avançava, sempre, e com uma gula difícil de descrever comiam a farinha a mãos cheias. (TEÓFILO, 1979, p.44)

A miséria dos flagelados, em si mesma, justificaria a ação violenta dos agentes estatais. Não importaria a esses a posição anterior dos que se achavam sob a condição de retirante. É o caso do coronel Manuel de Freitas, o qual, apesar de zelar pela sua honra e a da família, é destituído da honorabilidade conferida pela patente, em face do empobrecimento e da identificação com a canalha de miseráveis, como se lê no diálogo entre ele e um preposto do Estado. Escreve, o ficcionista:

[...] Sem receber?! Está mentindo, velho! [...]

– O coronel Manuel de Freitas, nunca mentiu.[...].

– Soldados, lancem na rua este miserável.

– Podem até me mandar assassinar, mas não podem duvidar de minha probidade.

– Fora, velho, nem mais um pio, disse-lhe um soldado, pondo-lhe a mão no ombro [...].

– Não me toquem, repito, não posso ser conduzido por inferiores; sou coronel da Guarda Nacional.

– Conduzam, que a farda que veste é de mendigo. (TEÓFILO, 1979p. 187-189)

Mas as perdas econômicas, de lugar social e de honorabilidade atingiam também outros sertanejos que não se distinguiam pelo título honorífico, mas gozavam do prestígio social conseguido em decorrência da posse de terras e de rebanhos de gado. Porém, a seca consumira tudo, como demonstra a descrição a seguir:

É pessoa de consideração e procedente de boa família. Dizem que deixou moradas de casa e uma fazenda no Crateús; mas essa desgraça da seca acabou com tudo e o obrigou a andar trabalhando para arranjar um bocado para comer... Ah! também já tive muito de meu e agora vivo nesta miséria [..] traçava na areia úmida figuras cabalísticas, entremeada de letras que logo apagava como se simbolizassem importunas e saudosas recordações da felicidade, para sempre perdida. (OLÍMPIO, 1997, p. 26)

A despeito de representarem a condição degradante da região e da população nordestinas, os personagens dos romances regionalistas que enfocaram a seca, de modo geral, tomam posições ambíguas diante do Poder Público. Eles tecem críticas vigorosas aos poderes locais (provincial, estadual ou municipal) e aos agentes estatais que atuam entre os flagelados, mas nunca aos poderes centrais.  Excetuam-se, nesse sentido, O Cabeleira e Luzia-Homem, cujas representações expressam, não raras vezes, um Estado-pai empenhado em minorar as calamidades sociais decorrentes da natureza, embora ao mesmo tempo descrevam enfaticamente as condições de flagelo dos retirantes e o socorro prestado por benfeitores e protetores, “pessoas bondosas” pertencentes ou relacionadas ao clero ou a camadas sociais abastadas. 

 

Considerações finais

Ao focar cenários expressivos dos tempos de seca em diversas províncias e estados membros do país integrantes da região Nordeste, os escritores regionalistas, como mediadores simbólicos, sintetizam particularidades do Nordeste das secas e de seus habitantes. Cumprem, assim, papel denunciatório não obstante a inspiração no darwinismo social e em teorias deterministas, retornando-as para a sociedade. Desse modo, podemos concluir que embora cumprindo esse papel, os ficcionistas terminaram contribuindo na oferta de estigmas que se agregaram a outros elementos na construção de imagens da região como área de flagelo e dos nordestinos como seres bizarros.

Nem mesmo Graciliano Ramos, que assume perspectiva distinta da dos demais ficcionistas em relação ao seu personagem principal, Fabiano, construiu uma imagem não degradante para representar os retirantes. Nesta obra, Fabiano é um ser humano totalmente destituído de condições para enfrentar a seca no seu habitat. E, sobretudo, vive mergulhado em profundo conflito de identidade devido à posição social que ocupa e à luta voraz pela sobrevivência. Tem dúvida até da sua condição como ser humano: ora duvida ser homem e se identifica como bicho, ora duvida ser bicho e se identifica como homem.

A recorrência de elementos discursivos como a seca, a miséria, o flagelo, o misticismo, a ignorância, o fatalismo, a submissão, o banditismo e o cangaço, da parte dos retirantes; ou a violência, a omissão e a corrupção do Estado por meio de agentes do Poder Público irão contribuir, de modo semelhante, na constituição e permanência de uma identidade regional estigmatizada, embora relacional, à medida que tais elementos discursivos sintetizam anormalidade e inferioridade de seres humanos contingenciados pela natureza ou pela sociedade, que lhes tiraria qualquer possibilidade de reação orientada à mudança. 

Nos romances examinados para fins deste artigo, embora entre os elementos constitutivos da seca como fato social estejam também as pressões sociais, estas são esporádicas e não se mostram suficientes como contraponto à estigmatização dos nordestinos e da região. Em síntese, ao retratarem as condições do meio e a miséria de populações sertanejas afetadas pela seca, possibilitam uma denúncia social, mas ao mesmo tempo deixam quase ausentes as reações de sujeitos políticos.

Desse modo, contribuem na reprodução de imagens, às quais, à semelhança de símbolos, também impelem a ações políticas e simbólicas muito mais de permanência que de mudanças. Falamos de grupos dominantes que, ora dissimulando os estigmas, ora simulando uma homogeneidade de interesses, ainda capturam imagens da seca formuladas pela palavra escrita, as quais, continuam sendo evocadas pelo senso comum e por segmentos hegemônicos do país, ora como estigma, ora como emblema, não obstante as posições atuais de agentes políticos da região. Diria, finalmente, como Bourdieu (1989a), que interesses poderosos e até vitais entram nessa luta, expressando a força mobilizadora de tudo o que toca a identidade.

 

 

Referências bibliográficas

ABREU, J. C. de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil, São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 1930.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino de problema à solução (1877-1922). 1988. 416 f. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1988. 

ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. O engenho anti-moderno: a invenção do Nordeste e outras artes. 1994. 500 f. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1994a. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/280137. Acesso em: 6 jul. 2020.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. Palavras que calcinam, palavras que dominam: a invenção da seca no Nordeste. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 28, 1994b.

ALENCAR, J. de. O Sertanejo. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965.

ALMEIDA, J. A. de. A Bagaceira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.

AMADO, J. Gabriela Cravo e Canela. São Paulo: Livraria Martins, 1958. 

BOURDIEU, P. A identidade e a representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a ideia de região. In: BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989a.

BOURDIEU, P. Introdução a uma sociologia reflexiva. In: BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989b.

BOURDIEU, P. Os ritos de instituição. InA economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Edusp, 1996. 

CASTRO, J. de. Documentário do Nordeste. São Paulo: Brasiliense, 1957.

CASTRO, J. de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. São Paulo: Brasiliense, 1967.

COSTA, L. F. A. da. O sertão não virou mar: nordeste(s), globalização e imagem pública da nova elite cearense. São Paulo: Annablume, 2005.

CUNHA, E. da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.  

DOMINGOS NETO, M. A fala do coronel: o poder no Nordeste dos vaqueiros. Fortaleza: UFC, 1997.

DOMINGOS NETO, M. O que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale do Parnaíba. São Paulo: Annablume, 2010.

DOMINGOS NETO, M.; BORGES, G. A. Seca seculorum: flagelo e mito na economia rural piauiense. Teresina: Fundação Centro de Pesquisa Econômica e Social do Piauí, 1987.

FREYRE, G. Manifesto regionalista. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1926/1976. 

FREYRE, G. O Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961.

FREYRE, G. Região e tradição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941.

GALVÃO, W. N. Euclides, elite modernizadora e enquadramento. In: GALVÃO, W. N. (Org.). Euclides da Cunha. São Paulo: Ática, 1984. 

KOSTER, H. Viagem pelo Nordeste do Brasil. São Paulo: Nacional, 1941.

LANDIM, T. Seca: estação do infernoUma análise dos romances que tematizam a seca na perspectiva do narrador. Fortaleza: UFC, 1992.

LEITE, D. M. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo: Unesp, 2002.

MENEZES, D. O Outro Nordeste: ensaio sobre e evolução social e política do Nordeste da “Civilização do Couro” e suas implicações históricas nos problemas gerais. Fortaleza: UFC, 1995.

MONTENEGRO, P. P. O romance de 30 no Nordeste. In: PORTELLA, E.; CRISTÓVÃO, F.; TELLES, G. M. et alO romance de 30 no Nordeste. Fortaleza: UFC, 1983.

NEVES, F. C. A multidão e a história: saques e outras ações de massa no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza: Secretaria de Cultura, 2000.

OLÍMPIO, D. Luzia-Homem. São Paulo: Ática, 1997.

ORTIZ, R. Cultura brasileira & identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.

PATROCÍNIO, J. do. Os Retirantes, v. I e II. São Paulo: Três, 1972.

QUEIROZ, R. de. O Quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.

RAMOS, G. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 1983.

ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

ROUANET, P. S. Mal-estar na modernidade. São Paulo: 1993.

SAID, E. W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidenteSão Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SEVCENKO, N. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1999.

SILVEIRA, R. M. G. O Regionalismo nordestino: existência e consciência da desigualdade regional. São Paulo: Moderna, 1984.

SPIX, J. B. von; MARTIUS, C. F. P. Viagem pelo Brasil através dos sertões. Belo Horizonte: Itataia/São Paulo: USP, 1981.

TÁVORA, F. O Cabeleira. São Paulo: Ática, 1988.

TEÓFILO, R. A Fome. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.

 

 

Como citar

COSTA, Liduina Farias Almeida da. Entre a denúncia e o fatalismo: natureza, sociedade e sertanejos-retirantes na literatura que evoca o Nordeste das secasEstudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 28, n. 3, p. 571-593, out. 2020. DOI: https://www.doi.org/10.36920/esa-v28n3-4.