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domingo, 19 de novembro de 2023

Matemática, um pacto social

 

Matemática, um pacto social

Teórico afiança: a objetividade inexiste até no mundo dos números. Não há pensamento puro, mas árduos experimentos. E as grandes verdades da área são repletas de palpites — que sempre exigem acordo mútuo entre pensador e comunidade científica 

Arte: Interior de uma sala com geógrafos e matemáticos, c.1680-90/Musee Municipal, Cambrai, França 
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Andrew Granville em entrevista a Alex Tran, no Quanta Magazine | Tradução: Mariana Bercht Ruy

Em 2012, o matemático Shinichi Mochizuki declarou que havia resolvido a conjectura abc, grande questão aberta na teoria dos números, a respeito da relação entre adição e multiplicação. Havia apenas um problema: sua prova, com mais de 500 páginas, era completamente impenetrável. Ela se baseava em um turbilhão de novas definições, notações e teorias que quase todos os matemáticos acharam impossível de entender. Anos depois, quando dois matemáticos traduziram grande parte da prova em termos mais familiares, eles apontaram para o que se chamou de “uma falha séria e sem conserto” na sua lógica – apenas para que Mochizuki rejeitasse o argumento com base no fato de que eles não houvessem entendido seu trabalho.

O incidente levanta uma questão fundamental: o que é uma prova matemática? Costumamos pensar que seja como a revelação de alguma verdade eterna, mas talvez seja melhor compreendê-la como um construto social.

Andrew Granville, matemático da Universidade de Montreal, tem pensado muito sobre isso recentemente. Após ser contatado por um filósofo a respeito de seus escritos, “eu pensei muito sobre como chegamos às nossas verdades”, ele disse. “E uma vez que essa porta é aberta, você descobre como o assunto é vasto”.

Desde muito cedo, Granville gostou de aritmética, mas nunca havia considerado a possibilidade de uma carreira em pesquisa em matemática por não saber que tal coisa existisse. “Meu pai deixou a escola aos 14 anos, minha mãe, aos 15 ou 16”, ele disse. “Eles nasceram na área da classe trabalhadora da Londres de então, e a universidade estava além daquilo que eles achavam que fosse possível. Então não fazíamos ideia.”

Após graduar-se na Universidade de Cambridge, onde estudou matemática, ele começou a adaptar The Rachel Papers [Os documentos de Raquel], romance de Martin Amis, para um roteiro. Enquanto trabalhava no projeto e buscava financiamento para ele, Granville quis evitar um emprego de escritório – havia trabalhado em uma companhia de seguros durante um ano sabático entre o ensino médio e a faculdade e não queria voltar para lá –, “então fui para a pós-graduação”, disse ele. O filme nunca decolou (o romance foi adaptado mais tarde, de forma independente), mas Granville conseguiu o mestrado em matemática e mudou-se para o Canadá para completar seu doutorado. Nunca olhou para trás.

“Foi uma aventura, de verdade”, ele disse. “Eu não esperava muito quando entrei. Não tinha ideia do que fosse um Ph.D.”.

Nas décadas desde então, ele foi autor de mais de 175 artigos, principalmente em teoria dos números. Ele também se tornou conhecido por escrever sobre matemática para o público popular: em 2019, junto com sua irmã Jennifer, que é roteirista, foi coautor de uma Graphic novel sobre números primos e conceitos relacionados. Junto com outros matemáticos, cientistas da computação e filósofos, ele planeja publicar um conjunto de artigos no Bulletin of the American Mathematical Society [Boletim da Sociedade Americana de Matemática] do ano que vem, sobre como as máquinas podem mudar a matemática.

A revista Quanta conversou com Granville sobre a natureza da prova matemática – como funciona na prática e equívocos populares a seu respeito até sobre como a redação de provas matemáticas pode evoluir na era da inteligência artificial. A entrevista foi editada e condensada para maior clareza.

Recentemente, você publicou um artigo a respeito da natureza da prova matemática. Porque você decidiu que esse era um assunto a respeito do qual era importante escrever?

A forma como os matemáticos aproximam-se da pesquisa em geral não é bem retratada na mídia popular. As pessoas tendem a ver a matemática como essa busca pura, onde simplesmente chegamos às grandes verdades apenas com o puro pensamento. Mas a matemática é feita de palpites – muitas vezes, palpites errados. É um processo experimental. Aprendemos em etapas.

Por exemplo, quando a hipótese de Riemann apareceu em um artigo pela primeira vez, em 1859, parecia magia: eis aqui essa conjectura maravilhosa, tirada do nada. Por setenta anos, as pessoas falavam sobre o que um grande pensador pode conseguir apenas com o pensamento. Então o matemático Carl Siegel encontrou os rascunhos de Riemann nos arquivos de Göttingen. Riemann na verdade tinha enchido páginas com cálculos de zeros da função zeta de Riemann. As famosas palavras de Siegel foram: “lá se foi o pensamento puro”.

Então há essa tensão na forma como as pessoas escrevem sobre matemática – particularmente alguns filósofos e historiadores. Eles parecem pensar que somos alguma criatura mágica pura, um unicórnio da ciência. Mas, em geral, nós não somos. Raramente é apenas puro pensamento.

Como você caracterizaria o que os matemáticos fazem?

A cultura da matemática é construída em torno de provas. Nos sentamos e pensamos, e 95% do que fazemos são provas. Muito do entendimento a que chegamos se dá por meio da luta com as provas e da interpretação dos problemas que surgem enquanto lutamos com elas.

Frequentemente pensamos em uma prova como um argumento matemático. Por meio de uma série de passos lógicos, ela demonstra que certa afirmação é verdadeira. Mas você escreve que isso não deve ser confundido com uma verdade pura, objetiva. O que você quer dizer com isso?

O principal objetivo de uma prova é persuadir o leitor da verdade de uma asserção. Isso significa que a verificação é chave. O melhor sistema de verificação que temos em matemática é que muitas pessoas olhem para uma mesma prova a partir de diferentes perspectivas e ela se encaixe adequadamente no contexto que eles conhecem e no qual acreditam. De certa forma, não estamos dizendo que sabemos que é verdade. Estamos dizendo que esperamos que ela esteja certa, porque muitas pessoas a testaram a partir de diferentes perspectivas. As provas são aceitas por esses padrões da comunidade.

E aí existe essa ideia de objetividade – de ter certeza que aquilo que se afirma está certo, ou sentir que você tem uma verdade suprema. Mas como podemos saber que estamos sendo objetivos? É difícil sair do contexto em que você fez uma declaração – ter uma perspectiva de fora do paradigma estabelecido pela sociedade. Isso é tão verdadeiro para as ideias científicas quanto o é para qualquer outra coisa.

Pode-se perguntar o que é objetivamente interessante ou importante em matemática. Mas isso também é claramente subjetivo. Porque consideramos Shakespeare um bom autor? Shakespeare não foi tão popular em seu próprio tempo quanto o é hoje. Existem convenções sociais evidentes a respeito do que é interessante, do que é importante. E elas dependem do paradigma atual.

Em matemática, como isso se manifesta?

Um dos exemplos mais famosos de uma mudança de paradigma é o cálculo. Quando o cálculo foi inventado, ele envolvia a divisão de algo que está se aproximando de zero por outra coisa que também está se aproximando de zero – conduzindo a zero dividido por zero, que não tem nenhum significado. Inicialmente, Newton e Leibniz criaram objetos chamados infinitesimais. Isso fez com que as equações funcionassem, mas não de forma sensata ou rigorosa para os padrões de hoje.

Agora temos a formulação épsilon-delta, que foi introduzida no fim do século XIX. Essa formulação moderna é tão estonteantemente, obviamente boa para acertar esses conceitos que quando se olha para as formulações antigas você pensa, o que eles estavam pensando? Mas na época, considerava-se que fosse a única forma de resolver o problema. Para ser justo com Leibniz e Newton, provavelmente eles teriam adorado o jeito moderno. Eles não pensaram nele por causa dos paradigmas da sua era. Então demoramos um tempão para chegar aqui.

O problema é que não sabemos quando estamos nos comportando assim. Estamos presos à sociedade em que vivemos. Não temos uma perspectiva externa que nos diga quais suposições estamos fazendo. Um dos perigos na matemática é que você pode não conceber que algo seja importante por não ser facilmente expresso ou discutido na linguagem que você escolheu usar. O que não significa que você esteja certo.

Eu gosto muito dessa citação de Descartes, em que ele diz essencialmente: “eu acho que sei tudo sobre um triângulo, mas quem disse que eu sei? Quer dizer, alguém no futuro pode vir com uma perspectiva radicalmente diferente e levar a um jeito muito melhor de se pensar sobre um triângulo”. E eu acho que ele está certo. Você vê isso na matemática.

Como você escreveu no seu artigo, você pode pensar na prova matemática como um pacto social – uma espécie de acordo mútuo entre o autor e sua comunidade matemática. Vimos um exemplo extremo disso não funcionando, com a alegada prova da conjectura abc de Mochizuki.

É extremo, porque Mochizuki não quis jogar o jogo como ele é jogado. Ele fez essa escolha de ser obscuro. Quando as pessoas fazem grandes avanços, com ideias realmente novas e difíceis, eu acredito que seja incumbência delas tentar incluir as outras pessoas, explicando a elas suas ideias da forma mais acessível possível. E ele estava mais para, bom, se você não quer ler do jeito que eu escrevi, não é problema meu. Ele tem o direito de jogar o jogo que quiser. Mas isso não tem nada a ver com comunidade. Não tem nada a ver com a forma como progredimos.

Se provas existem em um contexto social, como elas mudaram ao longo do tempo?

Tudo começa com Aristóteles. Ele disse que precisava haver algum tipo de sistema dedutivo – que você só pode provar novas coisas baseadas em coisas que você já sabe e sobre as quais tem certeza, voltando a certas “afirmações primitivas”, ou axiomas.

Mas então a questão é: quais são essas coisas básicas que você sabe que são verdade? Por muito tempo as pessoas simplesmente disseram, bem, uma linha é uma linha, um círculo é um círculo; há algumas coisas que são simples e óbvias e é por elas que devemos começar nossas assunções.

Essa perspectiva tem durado desde sempre. Ainda hoje é amplamente presente. Mas o sistema axiomático euclidiano que se desenvolveu – “uma linha é uma linha” – teve seus problemas. Houve esses paradoxos descobertos por Bertrand Russell com base na noção de conjunto. Além disso, era possível fazer jogos de palavras com a linguagem matemática, criando afirmações problemáticas como “esta afirmação é falsa” (se for verdadeira, então é falsa; se for falsa, então é verdadeira) que indicavam que havia problemas com o sistema axiomático.

Então Russell e Alfread Whitehead tentaram criar um novo sistema de fazer matemática que pudesse evitar esses problemas todo. Mas era ridiculamente complicado, e era difícil acreditar que oferecesse as melhores afirmações primitivas para começar tudo. Ninguém estava confortável. Algo como provar 2+2=4 tomava uma vastidão de espaço, desde o ponto de partida. Qual era o sentido de um sistema assim?

Então David Hilbert apareceu com essa ideia fantástica: que talvez nós não devêssemos dizer a ninguém qual era o ponto de partida certo. Em vez disso, qualquer coisa que funcione – um ponto de partida simples, coerente e consistente – vale a exploração. Não é possível deduzir duas coisas de seus axiomas que se contradizem, e você deve ser capaz de descrever a maior parte da matemática em termos dos axiomas selecionados. Mas você não deve, a priori, dizer quais são eles.

Isso também parece encaixar na nossa discussão anterior, sobre verdade objetiva na matemática. Então, na virada do século XX, os matemáticos perceberam que podia haver uma pluralidade de sistemas axiomáticos – que um determinado conjunto de axiomas não devia ser tomado como verdade universal ou autoevidente?

Sim. E eu diria que Hilbert não começou com isso por razões abstratas. Ele estava interessado em noções diferentes de geometria, em geometria não euclidiana. Era muito controverso. As pessoas na época diziam: você me dá essa definição de uma linha que contorna os cantos de uma caixa, por que eu deveria te dar ouvidos? E Hilbert dizia que se ele pudesse fazer algo coerente e consistente, você deveria ouvir, porque talvez houvesse outra geometria que nós precisávamos entender. Essa mudança de ponto de vista – que você pode permitir qualquer sistema axiomático – não se aplicava só à geometria: ela se aplicava a toda a matemática.

Mas é claro que algumas coisas são mais úteis que as outras. Então a maioria de nós trabalha com os mesmos dez axiomas, um sistema chamado ZFC.

O que nos leva à questão daquilo que pode ou não pode ser deduzido a partir dele. Há afirmações, como a hipótese do contínuo, que não podem ser provadas usando o sistema ZFC. Precisa haver um décimo primeiro axioma. E você pode resolver de qualquer jeito, porque pode escolher seu sistema axiomático. É bem legal. Nós continuamos com esse tipo de pluralidade. Não é muito claro o que está certo e o que está errado. De acordo com Kurt Gödel, nós ainda precisamos fazer escolhas baseadas em gosto, e tomara que nós tenhamos bom gosto. Nós deveríamos fazer coisas que façam sentido. E nós fazemos.

Falando em Gödel, ele também tem um papel grande nisso.

Para discutir matemática, você precisa de uma linguagem e um conjunto de regras para seguir nessa linguagem. Nos anos 1930, Gödel provou que não importa como você selecione sua linguagem, sempre há afirmações nessa linguagem que são verdadeiras, mas não podem ser provadas pelos seus axiomas de partida. Na verdade, é mais complicado que isso, mas ainda assim você tem esse dilema filosófico imediato: o que é uma afirmação verdadeira se você não pode justifica-la? É loucura.

Então existe essa grande bagunça. Nós estamos limitados pelo que podemos fazer.

Matemáticos profissionais ignoram isso amplamente. Nós focamos naquilo que é fazível. Como diz Peter Snark, “somos trabalhadores”. Nos esforçamos e tentamos provar o que podemos.

Agora, com o uso não apenas de computadores, mas também da inteligência artificial, como a noção de prova está mudando?

Nos movemos para um lugar diferente, onde computadores fazem coisas doidas. Agora as pessoas dizem, ah, eu tenho esse computador que faz coisas que as pessoas não conseguem. Mas ele faz mesmo? O computador pode mesmo fazer coisas que as pessoas não conseguem? Lá nos anos 1950, Alan Turing disse que um computador é desenhado para fazer coisas que humanos fazem, só que mais rápido. Nada mudou.

Por décadas, matemáticos têm usado computadores – para fazer cálculos que podem guiar sua compreensão, por exemplo. O que a IA pode fazer que é novidade é verificar aquilo que acreditamos que seja verdadeiro. Alguns desenvolvimentos fantásticos aconteceram com a verificação de provas. Como o [assistente de prova] Lean, que permitiu que os matemáticos verificassem muitas provas ao mesmo tempo em que ajudava os autores a entender melhor o próprio trabalho, porque eles precisavam dividir algumas de suas ideias em etapas mais simples para alimentar o Lean para verificação.

Mas isso é à prova de erros? Uma prova é uma prova só porque o Lean concorda que seja? De certa forma, é tão garantido quanto as pessoas que convertem as provas em inputs para o Lean. O que soa muito parecido com a forma como fazemos matemática tradicional. Então não estou dizendo que acredito que algo como o Lean esteja cometendo muitos erros. Só não tenho certeza se é mesmo mais seguro do que a maioria das coisas feitas por humanos.

Receio que eu seja um bocado cético a respeito do papel dos computadores. Eles podem ser uma ferramenta valiosa para acertar as coisas – particularmente para verificar matemática baseada massivamente em novas definições, que não são fáceis de analisar à primeira vista. Não há dúvida de que seja útil ter novas perspectivas, novas ferramentas e nova tecnologia no nosso arsenal. Mas me esquivo dessa ideia de que agora teremos máquinas lógicas perfeitas que produzirão teoremas corretos.

Você tem que admitir que nós não temos como ter certeza que as coisas estão corretas com os computadores. Nosso futuro depende no senso de comunidade de que dependeu ao longo da história da ciência: que possamos trocar ideias entre nós. Que conversemos com pessoas que veem a mesma coisa de perspectivas completamente diferentes. E assim por diante.

Mas então para onde você vê isso indo, no futuro, à medida que essas tecnologias fiquem mais sofisticadas?

Talvez elas possam assistir na criação de provas. Talvez daqui cinco anos eu diga para um modelo de IA como o ChatGPT, “eu tenho certeza que vi isso em algum lugar. Você checaria para mim?”, e ele vai me responder com uma afirmação semelhante que seja correta.

Uma vez que o modelo fique muito, muito bom nisso, talvez a gente possa ir mais longe e perguntar “eu não sei como fazer isso, mas há alguém que já tenha feito algo assim?”. Talvez alguma hora um modelo de IA possa encontrar maneiras hábeis de pesquisar a literatura para encontrar ferramentas que já foram usadas em outros lugares, de uma maneira que um matemático não poderia prever.

Ainda assim, não entendo como o ChatGPT poderia ir além de um certo nível para fazer provas, de um jeito que nos supere. O ChatGPT e outros programas de aprendizado de máquina não pensam. Eles usam associação de palavras baseadas em muitos exemplos. Então parece pouco provável que eles transcendam seus dados de treinamento. Mas se acontecer, o que os matemáticos vão fazer? Grande parte do que fazemos é prova. Se você tirar as provas de nós, não tenho certeza do que nos tornaremos.

Independentemente disso, quando pensamos sobre até onde vamos levar a assistência computacional, precisamos considerar as lições que aprendemos do empreendimento humano: a importância de usar diferentes linguagens, trabalhando juntas, carregando diferentes perspectivas. Existe uma robustez, uma saúde, na forma como diferentes comunidades se juntam para trabalhar e compreender uma prova. Se vamos ter assistência computacional em matemática, precisamos enriquecê-la da mesma forma.

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