Em meio às paisagens mais áridas da existência humana – os campos de concentração, os campos de batalha, a pobreza extrema e as profundas injustiças –, parece impossível que qualquer semente de bondade possa brotar. No entanto, é precisamente no solo envenenado pelo ódio e rachado pelo sofrimento que o amor mais puro e tenaz decide desabrochar. Ele não surge apesar da escuridão, mas quase como uma resposta a ela, uma força antagônica e primordial que se ergue para afirmar: "eu ainda existo".
A História, em seus capítulos mais sombrios, é testemunha silenciosa desse fenômeno. Nos campos de extermínio nazistas, onde a desumanização era política de estado, nasciam atos de amor sublime. Prisioneiros dividiam seu mísero pedaço de pão, arriscando a própria vida por um estranho. O psicólogo Viktor Frankl, em seu livro "Em Busca de Sentido", relata como a única liberdade que não lhes podiam tirar era a de escolher sua atitude perante o sofrimento. O amor pela memória de um ente querido, pela esperança de um reencontro, ou mesmo pela simples e crua beleza de um pôr-do-sol visto através do arame farpado, tornava-se uma razão para suportar o insuportável. Essas pessoas, física e psicologicamente dilaceradas, escolhiam amar, e nessa escolha, encontravam um renascimento.
A literatura captura essa essência com maestria. Em "Os Miseráveis", de Victor Hugo, o bispo Myriel oferece as velas de prata a Jean Valjean, um ex-condenado que acabara de roubá-lo. Esse ato de graça incondicional, um amor que perdoa e restaura, é o catalisador que faz de Valjean um novo homem. Ele carrega para sempre as cicatrizes de sua vida anterior – a fome, a injustiça, a prisão –, mas não é mais refém delas. Elas se tornam o contraste que torna sua nova vida de compaixão ainda mais luminosa. Da mesma forma, em "O Diário de Anne Frank", a jovem Anne, escondida no anexo secreto, escreve: "Apesar de tudo, eu ainda creio na bondade humana". Seu amor pela vida, pela escrita e pela beleza que ainda podia observar persistia, como uma flor insistindo em crescer numa fenda de concreto.
O cinema também nos apresenta estas narrativas. Em "A Lista de Schindler", o amor pela humanidade transforma um oportunista em um salvador. As cicatrizes dos sobreviventes são eternas, mas a vida que lhes foi devolvida é um testemunho de um amor que se opôs à máquina de morte. Em "A Vida é Bela", Guido usa o amor por seu filho para transformar o horror de um campo de concentração num jogo elaborado, protegendo a inocência da criança com a força pura do amor paternal.
Estas ideias encontram eco profundo nas tradições espirituais. A Bíblia, no Cântico dos Cânticos, proclama: " O amor é forte como a morte". É uma afirmação poderosa: o amor possui uma força tão intensa e fundamental quanto a própria força que tenta destruí-lo. A história de Jó é um arquétipo do renascimento após a perda total. Ele é deixado com cicatrizes – a memória de seus filhos mortos, a experiência da doença e da pobreza – mas no final, ele reconstrói sua vida. Sua fé e seu amor por Deus, ainda que abalados, passam pela provação e renascem de forma mais profunda e madura.
Na Cabala, a tradição mística judaica, existe o conceito de "Tikkun Olam" – a reparação do mundo. Ensina que a centelha divina está inclusive nos fragmentos partidos da criação. Nossa missão, mesmo – e especialmente – nas situações de escuridão, é recolher essas centelhas através de atos de amor e bondade. Cada gesto de compaixão em face do horror é um ato de Tikkun, uma pequena reparação que nos permite renascer e ajudar o mundo a renascer conosco. As cicatrizes não desaparecem; elas se tornam parte da história de cura, mapas que mostram onde estivemos e que provam que sobrevivemos.
Portanto, o amor que nasce no deserto não é um amor ingênuo ou cego. É um amor consciente, temperado no fogo, um amor que escolheu ver a escuridão e mesmo assim decidiu brilhar. Ele não nega a dor; transcende-a. As cicatrizes permanecem, mas deixam de ser feridas abertas que escravizam. Transformam-se em emblemas de resistência, lembretes de que mesmo quando tudo ao redor sussurra "não", a alma humana, através do amor, ainda pode gritar "sim". E nesse "sim" reside o mais puro e eterno renascimento.
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