Enxergar o país sob a lente da polarização já se provou algo pior do que simplista: é alucinatório. De certa forma, a polarização é o exato oposto do que estamos vivendo na política institucional – escancaradamente promíscua, fisiológica e amalgamada. Diante do clamor por mudanças, os protagonistas dessa crise simulam que estão mudando para que tudo continue como está.
Observamos que a forma, estética e ética das esquerdas do século 20 não dão mais conta. Como dizem os zapatistas, busco estar “abaixo e à esquerda”. À esquerda no espectro político e abaixo (fora) do sistema partidário.. Mas acredito realmente que a definição desse termo está, como todo o resto, em crise. Porque fica muito difícil saber o que é esquerda quando não sabemos mais onde está o norte. Quando não temos mais a clareza de que futuro, qual ideia de sociedade e democracia nosso campo vai oferecer para o século 21.
Mas já sou de uma geração que não é mais a da fundação do PT, mas do ciclo alterglobalização de Seattle e Gênova, que tinha no zapatismo uma grande referência, se informava pelo CMI (Centro de Mídia Independente) e militava pela mundialização das lutas. Então, já é uma geração em êxodo com relação às formas engessadas que a esquerda assume, seja no movimento estudantil, nos sindicatos, nos movimentos sociais.
Num trocadilho com a música do Los Hermanos, quero dizer com isso o bloco dos sem representação, dos sem nome, daquele que está sozinho no deserto, mas encontra outros sozinhos. E sozinhos juntos se faz um povo nômade. Um deserto que é uma produção: não de solidão, de isolamento, mas de solidão ativa, recomeço, bando.
Estamos nos tornando um novo país: as várias autoimagens brasileiras estão se dissolvendo. De baixo para cima, em contraste com o imaginário da mestiçagem, da malandragem e da cordialidade. E de cima para baixo, com o imaginário do coronelismo, da liderança paternal e do patrimonialismo. Os conflitos se estabelecem em nível micro e macro, ao mesmo tempo, colocando a sociedade em estado de hiperpolitização estressante.
A democracia implementada desde a Constituição de 1988 transformou o país, com a estabilidade do Plano Real e a inclusão social do período lulista. Mas a etapa posterior ainda está por ser escrita.
Por isso, a questão mais importante agora é fortalecer os movimentos sociais, principalmente aqueles que atuam por fora do sistema político. Consolidar os movimentos sociais que estão fora do modelo petista de fusão entre partido e movimento.
A partir dos anos 1990 e 2000, esse modelo, que se tornou dominante, começa a ser rejeitado pelos novos movimentos sociais construídos pelos mais jovens. É esse processo de construção – que vemos no Movimento Passe Livre, no movimento dos estudantes secundaristas, no novo movimento feminista, nos movimentos contra a violência policial nas periferias, entre muitos outros – que precisa ser amadurecido, para inaugurarmos uma nova etapa na esquerda brasileira, na qual a sociedade civil pressiona o Estado por mais direitos desde fora.
Gramsci dizia que crise é quando o velho já morreu e o novo ainda não pôde nascer, intervalo durante o qual ocorrem as mais diversas expressões mórbidas. O problema é que nenhuma das posições que está sobre a colina deixa o novo nascer, o que está levando o país – e o mundo – ao ponto do paroxismo. O maior risco é tirar a escolha das pessoas. É a chantagem em tom policial de que você tem que escolher um lado, senão... É preciso desconfiar de qualquer campo de possibilidades em que você não tenha escolha, e diante disso escolher a escolha.
Por exemplo: no dia 18 de março, em São Paulo, onde estive, o PT colocou pra girar toda a sua estrutura na capital e cidades vizinhas, aglutinou todas as forças sindicais, das juventudes, dos movimentos sociais, e contou com o reforço das pessoas ligadas à oposição de esquerda e, sobremaneira, da universidade. O problema é que, conforme o ato ia evoluindo, ele era sucessivamente verticalizado em palavras de ordem, até atingir o clímax que foi o discurso do Lula. Toda a organização se deu de modo arborescente, quase um zigurate, para Lula falar. Lula sai dali e vai negociar com os caciques do PMDB, como vinha fazendo no ano passado, com o poder de barganha conferido pelo orçamento do governo.
Spinoza falava, sobre a servidão voluntária, que não se pode enganar o desejo. Você pode frustrar o interesse – e não o desejo. Seria interessante perguntar então, por qual mecanismo se é levado a lutar pela própria frustração, pelo próprio fracasso. Daí tantas leituras "existencialistas" – signo de interiorização de uma crise onde não se encontra agência – que vão falar em angústia, desespero etc. Claro que, em 18 de março, ouvi inúmeros relatos sobre isso, existiam margens, linhas de fuga, grupos deslocados com relação à verticalização. Dentro da massa vermelha havia matilhas.
É preciso agir sim, falar, estar nas ruas, debater nas redes, enxergar linhas minoritárias em meio aos macroblocos que cobram coesão. Existe uma energia grande à solta, buscando emergir desde as jornadas de junho de 2013, que a polarização partidária vem violentando de maneira ortopédica. Aconteceu algo semelhante na Argentina de 2001, que desembocou no movimento de panelaços e piqueteiros com o grito que se vayan todos. Sem respostas à altura da parte do sistema político-representativo, a indignação vai fazer um strike que nem no boliche.
A crise é um momento em que temos a oportunidade de viver intensamente o nosso tempo histórico. Em que o futuro é uma incógnita, em que podemos portanto contribuir, num sentido ou em outro, para materializar esse futuro aqui e agora. Querer sair do impasse já é, em certa medida, negá-lo. Como se existisse uma saída à mão, um "abre-te sésamo". A esquerda, quando fala em "saída pela esquerda", lembra o Barão de Munchhausen: para sair do atoleiro, resolveu puxar-se pelos próprios cabelos. Vai arrancar alguns, mas não vai sair.
Eu não tenho a resposta do "como fazer" em sentido estrito, ela não vai sair de uma fala ou análise individual. Na verdade, ela só pode ser desdobrada de um campo de relações, redes e agenciamentos de que cada um já participa, mesmo que isto signifique divorciar-se de alguns deles, porque crises também são momentos de reconfiguração. Junho de 2013 foi vivido assim por bastante gente: como tempo que urge.
Temos que assumir o impasse como potência. Não tem como sair, tem que entrar nele.