Como o amor de um preso pela matemática levou a avanços na teoria dos números
Marta Cerruti
The Conversation*
Há vários exemplos na História de descobertas matemáticas feitas dentro do sistema carcerário. Talvez o mais famoso seja o do matemático francês André Weil, que traçou importantes conexões entre a geometria algébrica e a teoria dos números enquanto cumpria pena em uma prisão militar em Ruen, na França, durante a Segunda Guerra.
Em sua autobiografia, ele afirma que o isolamento da prisão permitiu que ele tivesse uma clareza maior das ideias. O americano Christopher Havens - que segue pelo mesmo caminho - concorda.
Em 2011, ele foi condenado a 25 anos de prisão por homicídio. Descobriu seu amor pela matemática - e sua aptidão - alguns meses após o início do cumprimento da pena, quando estava em uma solitária.
Havens começou a estudar sozinho e, diante da dificuldade de solucionar alguns problemas, resolveu escrever a uma revista de matemática para pedir ajuda. Uma dessas correspondências acabou chegando nas mãos dos meus pais, ambos matemáticos.
Encaminhada em janeiro de 2013 inicialmente a um amigo meu, Matthew Cargo, que na época era editor da editora Mathematical Sciences Publishers, ela dizia o seguinte:
Primeira carta enviada por Havens, que cumpre pena em Washington
"A quem possa interessar:
Estou interessado em receber mais informações sobre a assinatura dos Anais da Matemática para meu uso pessoal. Neste momento, cumpro pena de 25 anos de prisão no sistema prisional do Estado de Washington e decidi usar esse tempo para me tornar uma pessoa melhor.
Como os números se tornaram uma paixão para mim, estou estudando cálculo e teoria dos números. Poderiam, por favor, me enviar o que tiverem de informação sobre o periódico de matemática? Christopher Havens,
P.S.: Sou autodidata, e com frequência fico empacado em certos problemas. Sabem se há alguém com quem poderia me corresponder, dado que eu pagaria pelas postagens?
Aqui não há professores que possam me ajudar e às vezes gasto centenas de dólares em livros que podem ou não ter as respostas que procuro.
Obrigada."
Foi Cargo que colocou Havens em contato com meus pais.
Em carta, Havens afirmou sua recém-descoberta paixão pelos números
Um período produtivo
No início, meu pai, que foi professor da Universidade de Turim, na Itália, e pesquisador da teoria dos números, aceitou ajudá-lo apenas porque pedimos.
Ele achava que Havens seria uma dessas pessoas que de repente se entusiasmavam com os números e acabavam desenvolvendo teorias cheia de falhas. Para tentar provar isso, enviou-lhe um problema e pediu que ele resolvesse.
Meu pai recebeu como resposta, pelo correio, uma folha de 120 centímetros que continha um fórmula longa e complexa.
Colocou-a no computador e, para sua surpresa, descobriu que os resultados estavam todos corretos.
Na sequência, meu pai convidou Havens a se unir a ele na tentativa de resolver um problema de frações contínuas. Descobertas por Euclides em 300 a.C., as frações contínuas permitem expressar todos os números através de sequências de números inteiros.
Teoria dos números tem muitas aplicações práticas, como atividade financeira e comunicações militares
Por exemplo: o número pi é a relação entre o valor da circunferência de um círculo e seu diâmetro - 3,14159… A sequência de números depois da vírgula é infinita e totalmente caótica. Expressa como uma fração contínua, entretanto, ela se converte em algo mais simples e "agradável".
As frações contínuas exemplificam a pujança da teoria dos números, campo ao qual também pertencem parte das contribuições de Weil e que tem permitido avanços na área de criptologia, que é vital para o funcionamento dos bancos, do mercado financeiro e das comunicações militares.
As contribuições de Havens acabaram sendo publicadas em janeiro deste ano na revista Research in Number Theory. Seu trabalho, que teve lugar de destaque na publicação, demonstrou pela primeira vez a existência de uma série de regularidades na aproximação de uma vasta categoria de números.
É uma descoberta que pode abrir novos campos de pesquisa dentro da teoria dos números.
Aliás, encontrar novas formas de escrever números é uma das questões mais relevantes para um pesquisador dessa área - ainda que os resultados não tenham aplicação prática imediata.
Neste momento, por exemplo, há supercomputadores dedicados exclusivamente a processar bilhões de casas decimais do pi.
No caso de Havens, ele usou como ferramentas apenas lápis e papel - e as cartas que enviava para os companheiros de pesquisa do outro lado do oceano, na Itália.
Para Evans, estudar matemática na prisão era uma maneira de reconsiderar sua vida e ter um futuro
As condições na prisão
Como isso foi possível? Nas palavras do próprio Havens:
"Menos de um ano depois de ser preso, meu comportamento acabou me levando à solitária. E foi exatamente ali que vi minha vida mudar, porque me dei conta de que amava a matemática. Passava umas dez horas por dia estudando (…) E então decidi entrar no Programa de Transição Intensiva (ITP, na sigla em inglês)."
"É um programa de um ano que ajuda as pessoas a acertarem as ideias. Foi pensado para efetivamente ajudar o sujeito a abrir sua cabeça. E essa se tornou minha rotina diária: comer, estudar matemática, escovar os dentes, depois tudo de novo. Foi uma época muito importante da minha vida."
Foi depois de completar o ITP que Havens enviou sua solicitação à revista de matemática e que meus pais se tornaram seus tutores. Eles enviavam um monte de livros para os EUA, mas eles acabavam sendo todos retidos pela administração do presídio porque não vinham de uma editora autorizada.
Havens teve então a ideia de propor aos agentes carcerários um projeto para ensinar matemática aos demais detentos, batizado de Matemática na Prisão.
Havens vê matemática como um modo de pagar sua dívida com a sociedade
Em troca, ele conseguiu autorização para manter uma biblioteca e uma pequena sala, onde poderia receber visitas duas vezes por semana. A partir daí, os livros que chegavam no centro de detenção puderam de fato entrar.
Para escrever este texto, tive três conversas por telefone de 20 minutos com Havens (o tempo máximo permitido pelas regras da prisão), durante as quais a palavra educação foi mencionada várias vezes.
"A educação foi um estorvo pra mim. Fui um mau aluno, estava envolvido com drogas, não conseguia me segurar em um emprego e não parava em casa (…) A educação é muito difícil na prisão (…) Por isso estou buscando algo fora. Tento construir pontes e fortalecer minhas relações com gente de fora, porque, para mim, educação é isso."
"As oportunidades que me aparecem são uma experiência e um aprendizado, especialmente porque elas são raras aqui dentro."
Havens também vê na matemática uma forma de pagar sua dívida com a sociedade.
"Posso dizer com certeza que tracei um plano de vida, de longo prazo, para poder pagar uma dívida que na verdade não tem preço. Sei que é um trabalho permanente (…) e que nunca chegará o dia em que poderei quitar essa dívida completamente."
"Mas isso não é algo ruim, é inspirador. Pode soar bobo, mas, no decorrer do cumprimento da minha pena, também me acompanha a alma da minha vítima, e a ela estou dedicando as minhas maiores conquistas."
A vida depois da cadeia
O certo é que, apesar das evidências de que os detentos que estudam em geral têm menor nível de reincidência quando ganham a liberdade, as oportunidades para se ir além do que se aprende na prisão são reduzidas.
E, sem acesso à internet, a maioria dos cursos à distância está fora do alcance dos presos.
Neste momento, Havens está estudando para obter um diploma de bacharel em matemática pela Adams State University, que conta com a modalidade de ensino pelo correio.
Ele quer continuar estudando quando sair, apesar das dificuldades que se impõem devido à sua ficha criminal.
Ele pretende seguir carreira e quer transformar o projeto Matemática na Prisão em uma organização sem fins lucrativos que possa ajudar detentos que tenham aptidão com os números.
*Marta Cerruti é Professora de Engenharia de Materiais na Universidade McGill, em Montreal, no Canadá.
Este artigo foi publicado originalmente em The Conversation. Clique
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