SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

sábado, 16 de agosto de 2025

Como uma façanha evolutiva nos deu as batatas — e por que elas não existiriam sem os tomates

 

Batatas e tomates em uma mesa de madeira

Crédito,AFP

Legenda da foto,Além de terem um passado comum, batatas e tomates combinam muito bem
    • Author,Dalia Ventura
    • Role,BBC News Mundo

Há muito tempo atrás — cerca de 8 ou 9 milhões de anos —, onde mais tarde foi chamado de América do Sul, quando os Andes ainda eram jovens, a vegetação era selvagem e os humanos eram inexistentes. Havia duas plantas.

"Mais como duas populações de plantas", diz Sandra Knapp, taxonomista de plantas do Museu de História Natural de Londres, em entrevista à BBC News Mundo, serviços de notícias em espanhol da BBC.

"Elas foram as ancestrais do que hoje reconhecemos como tomates (Solanum lycopersicum) e de um grupo de plantas chamado Solanum etuberosum, cujas três espécies atuais são encontradas no Chile e nas Ilhas Juan Fernández [arquipélago chileno no Pacífico]", acrescenta.

Como você deve ter notado pelos nomes, elas eram parentes, e entre elas aconteceu algo que acontece até nas melhores famílias: elas tiveram relações sexuais.

Especialistas chamam isso de hibridização interespecífica, e ela ocorre com frequência, às vezes com resultados parcial ou totalmente infelizes.

A mula, por exemplo, nasce de um encontro íntimo entre uma égua e um burro e, embora seja um híbrido bem-sucedido, apreciado desde a antiguidade, não tem capacidade de reprodução.

No reino vegetal, diz Knapp, os cruzamentos entre espécies "acontecem com frequência: é assim que frequentemente obtemos nossas plantas de jardim".

Naturalmente ou por intervenção humana, "às vezes elas se hibridizam e criam uma geração de plantas que parecem intermediárias entre suas progenitoras, mas às vezes são estéreis, de modo que não se desenvolvem em uma nova população", explica a especialista.

Mas quando a combinação de ingredientes é ideal, o fruto da união supera as expectativas.

Foi o que aconteceu aqui: daquele encontro casual, milhões de anos atrás, entre duas espécies da família Solanaceae, nasceu a batata.

Ilustrações antigas de plantas de tomate e etuberosum

Crédito,LOC/Biblioteca do Patrimônio da Biodiversidade

Legenda da foto,À esquerda, Solanum lycopersicum; à direita, Solanum etuberosum: os descendentes dos progenitores da batata

"É fascinante que algo tão cotidiano e importante para nós como a batata tenha uma origem tão antiga e extraordinária", entusiasma-se Knapp.

"Finalmente resolvemos o mistério da origem da batata", comemora Sanwen Huang, pesquisadora da Academia Chinesa de Ciências Agrícolas.

"O tomate é a mãe e o etuberosum é o pai", acrescenta a cientista, que liderou a equipe internacional que conduziu o estudo revelador publicado na revista Cell.

A origem não foi o único mistério desvendado.

Como foi feita a descoberta

Pule Que História! e continue lendo
Que História! - 8 novos episódios
8 novos episódios

Disponíveis nos tocadores de podcast

Ouça aqui

Fim do Que História!

O ponto de partida foi algo que já era conhecido.

Embora, se as virmos no mercado, a batata — dura e rica em amido — não se pareça muito com o tomate — vermelho e suculento —, "eles são muito, muito parecidos", observa Knapp.

"Se você observar as plantas, as folhas são muito parecidas, as flores, embora de cores diferentes, também são muito parecidas, e se você tiver a sorte de ter uma planta de batata que produza frutos, verá que ela se parece com um pequeno tomate verde."

Além do que se vê, acrescenta a taxonomista, "sabemos há muito tempo que batatas, tomates e etuberosum eram intimamente relacionados."

"O que não sabíamos", continua ela, "era qual era o mais próximo das batatas, porque genes diferentes nos contavam histórias diferentes."

Cientistas passaram décadas tentando desvendar o enigma da origem do popular tubérculo, mas encontraram uma dificuldade: a genética da batata é incomum.

Enquanto a maioria das espécies de seres vivos, incluindo nós, possui duas cópias de cromossomos em cada célula, a batata possui quatro.

Uma planta repleta de tomates acima e batatas na raiz

Crédito,Thompson & Morgan

Legenda da foto,Batatas e tomates são tão semelhantes que enxertá-los produz uma planta que produz ambos, como esta chamada TomTato, produzida pela empresa de horticultura Thompson & Morgan

Para resolver o paradoxo, a equipe analisou mais de 120 genomas de dezenas de espécies abrangendo os grupos batata, tomate e etuberosum.

O que eles descobriram foi que os genomas de batata que sequenciaram exibiam aproximadamente a mesma divisão tomate-etuberosum. O ancestral "não era um ou outro: eram ambos", enfatiza Knapp.

Foi assim que eles descobriram esse romance no sopé das montanhas sul-americanas, milhões de anos atrás.

Foi uma união tremendamente bem-sucedida "porque gerou combinações de genes que permitiram que essa nova linhagem prosperasse nos habitats de alta altitude recém-criados dos Andes", explica ela.

Isso se deveu principalmente ao fato de que, embora a planta de batata acima do solo se assemelhasse muito aos seus pais, havia algo oculto que nenhum deles tinha: tubérculos.

Tê-los é como ter uma lancheira com você o tempo todo: eles armazenam energia, o que ajuda a sobreviver ao inverno, à seca ou a quaisquer outras condições desfavoráveis de crescimento.

E os cientistas descobriram algo fascinante: a planta desenvolveu esses tubérculos ganhando uma loteria genética.

Ilustração vintage da planta da batata, com flores e frutos

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,A letra 'C' no gráfico mostra os frutos da batata, que são como pequenos tomates

Acontece que cada um de seus progenitores tinha um gene crucial para a formação do tubérculo.

Nenhum era suficiente por si só, mas, combinados, eles desencadearam o processo que transformou os caules subterrâneos em batatas saborosas.

A equipe chinesa com a qual Knapp trabalhou até conseguiu provar isso, diz a taxonomista: "Eles fizeram muitos experimentos muito elegantes", eliminando esses genes para confirmar sua hipótese, "e sem eles, os tubérculos não se formaram".

Uma façanha

A hibridização que criou a batata foi mais do que um feliz acidente.

Especialistas que comentaram o estudo enfatizam que esse cruzamento entre os ancestrais do tomateiro e os do Etuberosum criou um novo órgão.

E esse órgão, a batata, marca uma façanha evolutiva.

Sua existência permitiu que a planta se reproduzisse sem a necessidade de sementes ou polinizadores.

Assim, ela se adaptou a diversas altitudes e condições e se expandiu, levando a uma explosão de diversidade.

Ainda hoje, "existem mais de 100 espécies selvagens, encontradas apenas nas Américas, do sudoeste dos Estados Unidos, ao Chile e Brasil", diz Knapp.

No entanto, essa capacidade de se propagar assexuadamente também a prejudicou.

Para cultivar batatas, você planta pedaços pequenos, o que significa que, se você tiver um campo com apenas uma variedade, elas são essencialmente clones.

"Por serem geneticamente uniformes, são muito suscetíveis a doenças, porque se uma nova espécie aparece e não têm defesas contra ela, todas sofrem igualmente", explica Knapp.

Isso nos leva ao motivo que levou os cientistas a realizar esta pesquisa.

As duas plantas fotografadas em um fundo preto, mostrando a raiz de ambas, a raiz da batata, com tubérculos

Crédito,Instituto de Genômica Agrícola de Shenzhen, Academia Chinesa de Ciências Agrícolas

Legenda da foto,Na superfície, Etuberosum e Tuberosum podem parecer semelhantes, mas são os tubérculos ricos em amido que tornam as batatas uma cultura tão popular

Knapp conta que a equipe chinesa "quer criar batatas que possam ser reproduzidas a partir de sementes, para que possam ser geneticamente modificadas mais facilmente, introduzindo genes de espécies selvagens e, assim, criando variedades que possam resistir às mudanças climáticas e a outras questões ambientais".

"Eu e os outros biólogos evolucionistas envolvidos neste estudo, por nossa vez, queríamos descobrir quem era o parente mais próximo das batatas e por que elas são tão diversas", acrescenta.

"Então, abordamos a pesquisa de perspectivas muito diferentes e pudemos fazer perguntas a partir de cada uma das nossas perspectivas, o que tornou o estudo muito divertido de se participar e trabalhar."

Nenhum comentário:

Postar um comentário