A SAGA DOS JANGADEIROS QUE CONQUISTARAM ORSON WELLES
Fortaleza - 10 OCT 2021 - 13:35 BRT
A saga dos jangadeiros de Orson Welles
Quatro pescadores cearenses navegam 2.700 quilômetros numa jangada até o Rio de Janeiro para cobrar direitos trabalhistas de Getúlio Vargas e atraem a atenção do cineasta Orson Welles
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― A jangada tripulada pelos cearenses, que deixou Fortaleza rumando para o Rio em audacioso raid, chega à entrada da baía de Guanabara. (...) E os bravos homens do mar, acostumados às mais vibrantes emoções, acostumados aos perigos e à árdua labuta de todo dia, sentem então o carinho dos cariocas. Recebem os aplausos e as felicitações mais que merecidas (Agência Nacional)
14 de setembro de 1941. Já fazia calor às nove horas da manhã quando Manoel Jacaré e os companheiros Tatá, Jerônimo e Manuel Preto subiram na jangada São Pedro, uma embarcação feita com seis paus de piúba, uma madeira comum da região, rumo a uma aventura imprevisível: navegar 2.700 quilômetros do Ceará, até a baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, para pedir que os pescadores do país fossem incluídos na reforma trabalhista do Estado Novo, que estava em discussão na época. A efervescência gerada pela proposta do ditador Getúlio Vargas foi o que moveu os quatro pescadores rumo à aventura desconhecida. Eles acreditavam que, para serem ouvidos, precisavam ir pessoalmente a então capital do país. E queriam chegar até lá no transporte que os ajudava a tirar o sustento do dia a dia.
Pediriam a Vargas, antes de tudo, uma aposentadoria digna, para que os mais velhos não precisassem se alimentar de sobras de peixe quando não tivessem mais forças para entrar no mar. Foram 61 dias de uma viagem que quebrou recordes náuticos. E que de tão espetacular passou a ser seguida pelo Brasil como uma novela, narrada pelos jornais diários e programas de rádio. Acabou, por fim, atraindo as lentes de um dos mais renomados cineastas do século passado, Orson Welles.
Acostumados à vida no mar desde pequenos, mas sem os apetrechos necessários para grandes travessias, como carta de navegação, bússola ou mapas, os quarto homens tinham um plano simples, contava Tatá a jornalistas na saída daquele raid: bastaria olhar para o céu. “Cada porto tem uma estrela para guiar os jangadeiros”, explicava ele. Na partida, mais de 20 jangadas acompanharam a embarcação dos pescadores até a costa sumir da vista. De frente para aquele infinito de água, ficaram apenas os quatro homens e o sonho de trazer uma vida melhor, ainda que fosse no braço e na força exigida pelo manejo de uma jangada. “É uma vida desgraçada essa nossa, tão desgraçada que parece que as autoridades têm medo de olhar pra ela cara a cara”, dizia Mestre Jerônimo, que atravessou o mar ao menos outras duas vezes depois, sempre para pedir direitos.
Um diário de bordo escrito por Jacaré, único alfabetizado entre os tripulantes, narrava as aventuras vividas desde o porto anterior. Era assim que se sabia, por exemplo, que os homens precisavam se amarrar na jangada para poder dormir algumas horas dentro da embarcação sem qualquer proteção contra o sol ou tempestades. Ou dos momentos desagradáveis como quando chegaram à Praia do Cajueiro, no Rio Grande do Norte, e não encontraram o apoio de ninguém. Nem do padre, que “havia ido confessar uma idosa que há duas semanas estava entregando a alma a Deus”, contou Jacaré. As narrativas cativavam repórteres, que reproduziam os trechos no jornal a cada parada. A Agência Nacional cobria a saga reforçando o heroísmo da empreitada. E a novela alimentava o interesse e criava fama para os homens anônimos, que começaram a ser recebidos por autoridades locais e pescadores nos desembarques. Era assim que eles angariavam doações de alimentos, como farinha e café, para seguir viagem. A mistura era o peixe que tiravam do mar.
Às nove em ponto, quando soprava um bom vento Nordeste, empurramos a jangada para dentro d’água. Rezei pra dentro uma oração pedindo que a padroeira tomasse conta dos nossos filhinhos, pois Deus velaria por nós. E assim, principiou a nossa viagem ao Rio.
“De repente caiu um bruto temporal. O vento era tão forte que não foi possível navegar mais. Eu tive mesmo a impressão de que a bolina tinha se partido, pois a jangada deriva que nem sei quê. Graças a Deus o vendaval passou e só chegamos ao Amaro às 10 horas da noite. Pernoitamos e bem dispostos partimos no dia 20 a uma hora da madrugada. Foi um pedaço duro pra vencer.
“Ás nove horas do dia, fundeamos e partimos para a praia do Cajueiro, ao norte do farol do calcanhar, duas léguas antes da cidade de Touros. Passamos momentos bem desagradáveis neste lugar. Não encontramos apoio de ninguém, nem o padre estava lá.Tinha ido confessar uma velha que há duas semanas estava entregando uma alma a Deus. O Jerônimo disse pra mim: começou a urucubaca da miudinha”
Ao meio-dia do dia 30, o Jerônimo, que estava de vigia, viu um vulto negro a meia milha. Começamos os quatro a olhar e vimos que era uma baleia. Andou muito tempo no rastro da jangada, mas Deus é cearense e a bruta foi para longe.
Como se tivesse perdido o lápis, deixei de anotar um bocado de coisas. Por exemplo: entre Maceió e Bahia, pertinho da boca do São Francisco, pegamos um temporal de arromba. A nossa roupa de algodãozinho, pintada com tinta de cajueiro, começou a rasgar, pois o mar de um mês de viagem estragou o pano. Um jornalista de Maceió ficou com cara de bocó quando soube que nós não tínhamos bússola nem carta de navegação. A gente se guia pelas estrelas e deixa o vento fazer o resto.
Chegando na praia de Canavieira dirigi-me àquela povoação e uma senhora me disse que ‘aqui ninguém dormiu’. Mas por quê? ‘Porque todo mundo está fazendo promessa para que nada acontecesse aos jangadeiros’.
Partimos da Bahia no dia 20 de outubro, e a jangada vinha mais pesada: trazíamos 400 mil réis que o senhor interventor tinha nos dado para os extraordinários.
Há dias lutamos contra a calmaria. Não há vento nem pra remédio. O Tatá está machucado no pé. Eu, que saí de Fortaleza pai de nove filhos, soube que chegou mais um. Se Deus quiser, ano que vem mais um.
Fonte: Trechos dos diários escritos por Jacaré ou narrados por ele a jornalistas.
Em cada novo porto, os homens ouviam também seus companheiros de labuta e, nos bastidores, foram descobrindo que seus problemas se repetiam na maioria das colônias pesqueiras da costa nordestina. As jangadas eram caras demais para serem compradas pelos pescadores, que dividiam o lucro da pesca meio a meio com o dono da embarcação que precisavam alugar. Faltava acesso à saúde, remédios, escola. E a aposentadoria parecia um sonho distante. “De primeiro, quem não podia pescar mais, ficava de esmola. Se morresse, tinha que se enterrar de esmola”, lembra o pescador Antônio Kardec numa tarde de quinta-feira do último mês de setembro, com uma das mãos bloqueando o sol que começava a nascer na enseada do Mucuripe, ponto de partida dos pescadores 80 anos atrás. Ele estava prestes a completar cinco anos de idade quando Jacaré e seus companheiros deixaram o Ceará para falar com Vargas pela primeira vez.
Antônio Kardec tinha quatro anos quando Jacaré, Jerônimo, Tatá e Manuel Preto saíram na jangada São Pedro rumo ao Rio de Janeiro.
FERNANDA SIEBRA
― Os jangadeiros trazem uma mensagem contendo aspirações dos homens que vivem da pesca no Nordeste. Esperam eles serem atendidos pelo chefe da nação, e o presidente Vargas promete estudar o pedido dos heróicos jangadeiros (Agência Nacional).
Chegada celebrada
Em 15 de novembro de 1941, às 17h50, a jangada São Pedro despontou na Baía de Guanabara sob olhares curiosos e aplausos de uma multidão. Navios de pesca acionavam suas sirenes e os carros buzinavam da avenida Rio Branco para cumprimentar os jangadeiros, àquela altura apelidados pela imprensa de “lobos do mar”. Quando, enfim, encontraram o presidente, a reivindicação daqueles homens cearenses havia se tornado um pedido nacional. “Hoje já não somos mensageiros apenas dos pescadores do Ceará”, alertou Jacaré a Vargas, no encontro. Uma postura que colocou aqueles homens sob vigilância da inteligência do Estado, que pretendia evitar que eles fossem cooptados por comunistas logo após o raid.
O pescador Luciano Preto maneja o mastro da jangada para levantar a vela.
Com os olhos do país grudados na vela branca da São Pedro e o próprio ditador se aproveitando da saga para construir uma imagem nacionalista do “trabalhador de fibra”, os cearenses conseguiram arrancar um decreto presidencial incorporando-os ao Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos. O problema é que, diante da informalidade da pesca artesanal, o benefício ficou só no papel naquele momento. No fim das contas, os pescadores só foram de fato beneficiados pela aposentadoria muitos anos depois, com a criação de outra lei.
Uma tragédia diante da câmera de Welles
Na outra ponta da América, o Governo Roosevelt colocava em marcha nos Estados Unidos a política da boa vizinhança com os países latinoamericanos, depois de instalar bases militares durante a Segunda Guerra em alguns pontos do Nordeste. Foi sob esta encomenda que o cineasta Orson Welles desembarcou no Brasil para filmar It’s all true (É tudo verdade). Veio ao país sem salário, com um orçamento de um milhão de dólares. No auge da carreira com seu clássico Cidadão Kane, ele registraria o Carnaval do Rio de Janeiro, mas decidiu incluir na produção também as favelas cariocas e a saga dos jangadeiros cearenses após ler um artigo sobre eles na revista norte-americana Time. “Ele acha que o Jacaré é o verdadeiro herói americano. Acha esta história impactante, um feito único no mundo”, conta a pesquisadora Berenice de Abreu, que há anos estuda a saga dos jangadeiros.
Orson Welles no Ceará
PARAMOUNT (DIVULGAÇÃO)
Já em Fortaleza, no ano seguinte à viagem dos quarto homens, Welles passou semanas ensinando as famílias dos pescadores a atuarem para seu filme. “Seu Orson”, como era chamado por eles, era uma pessoa educada, que agradecia à equipe ao fim de cada gravação. E convenceu Jacaré, Tatá, Manuel Preto e Jerônimo a retornarem ao Rio de Janeiro ―desta vez de avião― para encenar sua apoteótica chegada à baía de Guanabara em 15 de novembro de 1941. Os quatro aceitaram.
Welles escolheu como locação uma praia próxima à Barra da Tijuca. Os homens insistiram para chegar ao local das filmagens já de barco, saídos de uma praia próxima. Mas o mar estava agitado. A jangada virou abruptamente e os pescadores foram lançados para fora. Lutando contra as ondas, Jacaré gritou a seus companheiros para que nadassem rumo à costa. E foi obedecido pela última vez. O líder do grupo nunca mais voltou à superfície. Sumiu para sempre nas águas. “Era um homem que nadava que só um peixe. Mergulhou e desapareceu desta vez”, conta o pescador Antônio Kardec, no Mucuripe. Welles lamentava não só a morte de um jangadeiro, mas de uma grande liderança, emenda Berenice de Abreu.
Nas telas de cinema, a morte de Jacaré reverberou em silêncio. Welles afastou-se do seu projeto It’s all true após vários conflitos com a produtora estadunidense RKO Pictures, que já não se interessava pelas horas e horas de drama social que havia recebido dele diante da encomenda de um filme que incentivasse o turismo. O cineasta ainda tentou seguir o trabalho em homenagem a Jacaré, apesar do orçamento cortado. Não deu. Os rolos de filmes ficaram esquecidos por décadas até serem redescobertos em 1985 por um diretor da Paramount. Foram usados oito anos depois no documentário É tudo verdade – Um filme inacabado de Orson Welles. Recentemente, a passagem de Welles pelo Ceará foi parar de outra forma nas telas: os cineastas Petrus Cariry e Firmino Holanda estrearam no ano passado o longa A Jangada de Welles, com detalhes sobre a turbulenta passagem do diretor no Brasil.
MAIS INFORMAÇÕES
A experiência brasileira de Welles
Pescadores descarregam o pescado na pequena faixa de areia ainda destinada a eles.
FERNANDA SIEBRA
Os problemas continuam
No braço, levando jangada até o sul para chamar a atenção do país em ao menos outras nove viagens nas últimas décadas, os jangadeiros conseguiram o pouco que têm hoje: a aposentadoria —conquistada, de fato, apenas na década de 60— e um benefício social para os meses de vento intenso ou de defeso do pescado, quando é proibido pescar.
No Mucuripe de hoje, todos os dias, às 3h, o pescado continua a ser descarregado na areia e o cheiro do peixe toma o local, entrecortado pelo odor do café ou da cachaça vendidos aos montes pelas marisqueiras aos homens que retornam do mar. Mas dos prédios altos do outro lado da avenida, a tradicional pesca artesanal já não é mais celebrada. É vista como feia, indesejável ao progresso. E os jangadeiros precisam reunir forças todos os dias, espremidos em uma reduzida faixa de praia, sob pressão cada vez maior do turismo, da pesca predatória e da especulação imobiliária.
Há décadas, suas casas são empurradas pelas remoções ao topo dos morros que viraram favelas. São áreas dominadas pelo tráfico de drogas, onde só é possível subir de carro com os vidros abertos. Falar demais pode significar a morte. Enquanto mais uma obra avança para transformar a orla, dar espaço às embarcações de turistas ou construir novos quiosques, o pescador segue se sentindo invisível.
Neto do pescador Antônio Banqueiro caminha sobre o esqueleto da jangada que está sendo construída pelo avô no morro Santa Terezinha.
FERNANDA SIEBRA (FERNANDA SIEBRA)
“É como uma moeda de dois lados, mas rasparam um deles e agora só vêem o lado do dinheiro”, diz Antônio Banqueiro, um homem franzino que apresenta o Mucuripe como quem mostra sua casa. Aos nove anos de idade, ele pedia para ser levado ao mar porque sonhava que seria o pescador do futuro. Foi a primeira vez com o pai, mas como ele não tinha embarcação, depois saiu pedindo para ser levado pelos outros pescadores. Ouvia sempre que deveria estudar. “Tenho que trabalhar. Como eu vou estudar com fome?”, retrucava.
Tentou fazer as duas coisas e ainda conseguiu cursar o primeiro grau. Desde então, foi o mar que lhe deu tudo o que tem: inteligência para construir jangada no olho, sem desenho ou esboço; ciência para decifrar o cheiro dos ventos que o guiarão quando o GPS falhar; a casa onde criou seus filhos no vizinho morro Santa Terezinha. O que o mar não realizou foi o sonho do menino de ser o pescador do futuro, como os quarto jangadeiros heróicos esperavam 80 anos atrás.
Quando este futuro finalmente chegou, Banqueiro viu que a vida da pesca ainda estava presa ao passado, com os mesmos problemas enfrentados pelos seus antepassados. “Eu sou o pescador do presente. Mas espero que o jangadeiro do futuro ainda chegue”, ele diz. Mas que não seja necessário algo tão custoso como um novo raid.
Antônio Banqueiro deitado no compartimento de sua jangada.
FERNANDA SIEBRA
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