SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Pobreza e desigualdade atingem menor patamar em 30 anos: 'Bolsa Família expandido é caro, mas dá resultado'

 

Pessoas de baixa renda sendo atendidas num Centro de Referência de Assistência Social (Cras) em Manaus, onde se vê uma grande faixa que diz "Atendimento Cadastro Único"

Crédito,Prefeitura de Manaus

Legenda da foto,Entre 1995 e 2024, a taxa de extrema pobreza no Brasil baixou de 25% para menos de 5%, graças em grande medida ao Bolsa Família, dizem pesquisadores do Ipea
    • Author, Thais Carrança
    • Role,Da BBC News Brasil em São Paulo

Pobreza, extrema pobreza e desigualdade chegaram em 2024 aos menores níveis da série histórica iniciada em 1995, enquanto a renda média dos brasileiros atingiu seu maior patamar em 30 anos, revela estudo inédito do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicado nesta terça-feira (25/11).

Entre 1995 e 2024, a renda média mensal por pessoa cresceu quase 70%, de R$ 1.191, para R$ 2.015. O coeficiente de Gini (indicador que mede a desigualdade e varia de 0 a 100, sendo 100 a desigualdade máxima) recuou quase 18%, de 61,5 para 50,4. E a taxa de pobreza extrema caiu de 25% para menos de 5%.

"Os resultados indicam que, no longo prazo, o Brasil melhorou bastante", destacam Pedro Ferreira de Souza e Marcos Hecksher, do Ipea, autores do estudo.

Os dados, obtidos a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelam, porém, que essa melhora dos indicadores sociais não foi contínua ao longo dos anos.

Ela foi concentrada em dois períodos: de 2003 a 2014 e entre 2021 e 2024, tendo sido interrompida pela crise econômica de 2014-2015 e pela pandemia.

Souza e Hecksher buscaram analisar, então, quais foram os principais fatores por trás da surpreendente recuperação dos indicadores sociais no pós-pandemia.

Fazendo essa decomposição, eles descobriram que a melhora do emprego e a expansão dos programas sociais de transferência de renda tiveram igual contribuição. Para a queda da extrema pobreza especificamente, o peso das transferências de renda é maior.

Isso apesar de esses programas representarem uma parcela muito menor do Produto Interno Bruto (PIB, soma de todos os bens e serviços produzidos pelo país) do que o mercado de trabalho. Para os pesquisadores, isso revela que a expansão do Bolsa Família nos últimos anos deu resultado.

"Teve o Auxílio Emergencial e o Auxílio Brasil [durante o governo de Jair Bolsonaro], depois o Bolsa Família foi recriado [em 2023, sob Lula], mantendo esse orçamento grandão, que hoje acaba sendo objeto de polêmica, porque virou um programa caro", observa Pedro Ferreira de Souza, em entrevista à BBC News Brasil.

Em 2025, o Bolsa Família teve orçamento de R$ 158 bilhões, atrás apenas dos gastos com Previdência Social (R$ 972 bilhões) e saúde e educação públicas (R$ 245 bilhões e R$ 226 bilhões, respectivamente), segundo a Lei Orçamentária Anual.

"Como pesquisadores, nós passamos anos escrevendo que o grande gargalo do Bolsa Família era seu orçamento pequeno. Agora, ele tem um orçamento grande, então nossa grande pergunta era: será que está dando resultado?", conta o pesquisador. "E a nossa conclusão é inequívoca que sim."

Segundo Souza — um dos maiores estudiosos da desigualdade no Brasil, autor do livro Uma História da Desigualdade: a Concentração de Renda entre os Ricos no Brasil - 1926-2013, vencedor do Prêmio Jabuti em 2019 —, isso é muito importante porque, com a expansão do Bolsa Família, aumento do número de famílias beneficiárias, mudanças de regras e até de nomes do programa ao longo dos últimos anos, havia o risco de ele ter se desvirtuado, perdendo a focalização nas famílias mais pobres. Mas os dados mostram que isso não aconteceu.

"Então, de fato está aí uma coisa que o Brasil sabe fazer: essa política assistencial de transferência de renda para as famílias", diz Souza.

"Claro que tem problemas, mas foram muitos avanços e vemos que estamos gastando muito dinheiro, mas também está tendo muito retorno em termos de redução da pobreza."

Entre 2019 e 2024, as transferências do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC, benefício pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda) cresceram 135%, descontada a inflação do período, destacam os pesquisadores. Em termos relativos, os gastos aumentaram de 1,2% para 2,3% do PIB.

O Bolsa Família passou de 13,8 milhões de famílias beneficiárias na média em 2019, para mais de 20 milhões no começo deste ano — número já reduzido a 18,6 milhões em novembro, após a saída de famílias devido a aumento de renda e um pente-fino feito pelo governo.

O valor mínimo do benefício também foi ampliado, de R$ 400 ao fim do governo de Jair Bolsonaro (PL), para R$ 600 sob o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Atualmente, são elegíveis ao programa famílias com renda por pessoa de até R$ 218 por mês — atual linha da pobreza oficial.

Melhora dos indicadores deve arrefecer à frente

Souza, do Ipea, observa que a melhora dos indicadores sociais entre os anos 2021 e 2024 foi fruto de um período de muito estímulo fiscal, o que guarda semelhanças com o ciclo anterior de redução da pobreza e da desigualdade, nos anos 2000.

"Vemos que, nos momentos em que há condições de ter uma política fiscal mais expansionista, é quando esses indicadores melhoram no Brasil", observa o pesquisador, destacando que ambos os períodos de melhora dos indicadores foram marcados pelo mercado de trabalho aquecido para trabalhadores com menor qualificação, que sofreram particularmente com a crise de 2014-2015.

Souza pondera, porém, que isso coloca uma incerteza à frente, posto que o ciclo de expansão do Bolsa Família já acabou, pois não há mais espaço fiscal para novo crescimento.

Com isso, a melhora dos indicadores deve perder força nos próximos anos, mas é preciso garantir que ela continue, ainda que mais lenta, defende o pesquisador.

Pedro Ferreira de Souza veste camisa cinza listrada e usa óculos. Ele olha para a câmera com rosto sério e tem uma estante de livros ao fundo

Crédito,Helio Montferre/Ipea

Legenda da foto,'Vemos que, nos momentos em que há uma política fiscal mais expansionista, é quando esses indicadores [de renda, pobreza e desigualdade] melhoram no Brasil', observa Pedro Ferreira de Souza, do Ipea

"O xis da questão é o seguinte: como conseguir nos próximos anos manter o mercado de trabalho aquecido, especialmente para esses trabalhadores com menos qualificação e que tiveram muita dificuldade de inserção no mercado de trabalho na década passada", diz Souza.

Para o pesquisador, a chave será equacionar a questão fiscal de maneira suave, de forma a evitar uma nova crise ou pressões inflacionárias devido ao descontrole das contas públicas. Isso também permitiria a queda dos juros e retomada dos investimentos, fundamental para a geração de postos de trabalho em setores como a construção civil, que emprega muito, diz o pesquisador.

Apesar da proximidade das eleições de 2026, Souza não vê risco de o país eleger alguém que queira fazer cortes orçamentários muito bruscos no próximo mandato — a exemplo de Javier Milei na Argentina ou do candidato de direita radical chileno José Antonio Kast, que promete um drástico ajuste fiscal de US$ 6 bilhões (quase R$ 32 bilhões), se eleito.

"[O Brasil] é um país ainda muito desigual, em que boa parte da população tem muitas carências ainda, não só de renda, mas de serviços públicos", diz Souza.

"Nesse contexto, sempre é difícil fazer ajuste fiscal. Qualquer ajuste fiscal é muito difícil de obter consenso. Há um motivo para ser tão difícil e estarmos essencialmente há 30 anos nesse debate, desde o fim da hiperinflação."

Nesse cenário, Souza aposta não em reformas radicais nos próximos anos, mas em mudanças incrementais. Ele cita como exemplos recentes o programa Pé de Meia, que pode ter impacto positivos nos indicadores educacionais nos próximos anos; a reforma tributária, que deve ter uma política de cashback para os mais pobres com efeitos positivos para a desigualdade; além da reforma do Imposto de Renda, com impactos esperados principalmente para o topo da distribuição de renda.

"Não vai ser uma revolução, nada é. Mas o que me deixa assim, moderadamente otimista — e eu sou uma pessoa bem pessimista — é essa ideia de que pelo menos a gente vê iniciativas que, se tudo der certo, elas podem atuar em conjunto."

Souza destaca ainda que o levantamento publicado agora pelo Ipea foi feito com base apenas em pesquisas domiciliares, que têm algumas limitações metodológicas, como não captar bem a renda do topo e os impactos plenos das transferências de renda.

Os pesquisadores optaram por usar esse dados, porém, por serem a forma mais acessível de fazer um levantamento mais atual, já que os dados de Imposto de Renda da Receita Federal, que permitem ver melhor a renda do topo, são divulgados tardiamente e com muitas restrições de acesso.

Assim, o pesquisador avalia que, nos próximos anos, quando esses e outros dados do IBGE, como a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2024-2025, estiverem disponíveis, será possível ter um quadro ainda mais completo da evolução da renda, pobreza e desigualdade no Brasil.

Gráficos por Laís Alegretti, da Equipe de Jornalismo Visual da BBC News Brasil

Desigualdade caiu 18% e é a menor em 30 anos

Coeficiente de Gini da renda domiciliar per capita de todas as fontes*

Como a figura da mãe de Jesus ainda divide cristãos 75 anos após dogma da Assunção de Maria

 

Estátua da Virgem Maria, dentro da caverna de Massabielle, onde a Virgem Maria teria aparecido a Bernadette Soubirous, no Santuário de Nossa Senhora, em 5 de novembro de 2019.

Crédito,PASCAL PAVANI/AFP via Getty Images

Legenda da foto,A assunção de Maria integra a lista de 43 "verdades de fé", crenças oficializadas pela Igreja Católica como sendo "inquestionáveis" para os que seguem essa religião
    • Author,Edison Veiga
    • Role,De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

"Pronunciamos, declaramos e definimos como sendo um dogma revelado por Deus: que a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, tendo completado o curso de sua vida terrena, foi assumida, de corpo e alma, na glória celeste", publicou o papa Pio 12 (1876-1958) em 1º de novembro de 1950.

Foi a última vez que a Santa Sé proclamou um dogma: a assunção de Maria, portanto, integra a lista de 43 "verdades de fé", crenças oficializadas pela Igreja Católica como sendo "inquestionáveis" para os que seguem essa religião.

A afirmação papal de 1950 foi feita por meio de um documento chamado constituição apostólica, categoria dentre as mais importantes dentro da máquina burocrática que rege os assuntos da fé católica.

Assim, Pio 12 buscou encerrar uma questão que desde os primeiros séculos era debatida por teólogos e controversa entre populares: qual teria sido o fim da mãe de Jesus, já que os textos bíblicos não se ocuparam de contar sobre seus últimos dias.

O entendimento religioso era o de que ela não poderia ter tido um fim comum aos demais humanos.

"Para ser mãe de Deus, Maria não estava sujeita ao poder do pecado, portanto, não poderia também ficar sujeita ao poder da morte", explica à BBC News Brasil a cientista da religião Wilma Steagall De Tommaso, coordenadora do grupo de pesquisa A Palavra É Imagem: Arte Sacra Contemporânea, História e Religião, na Fundação São Paulo, e coautora do livro A Glorificação de Maria em Corpo e Alma.

"Jesus foi gerado por Maria e, por isso, a carne do filho era a mesma carne da mãe. Se a carne do Filho, Jesus Cristo, não se corrompeu, a mãe também não deveria experimentar a corrupção da carne, sendo glorificada na alma e no corpo da mesma forma que Jesus", completa De Tommaso

"Embora o dogma seja algo recente, estamos falando de uma crença antiga", diz à BBC News Brasil o teólogo Raylson Araujo, pesquisador na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

"O dogma veio de uma reflexão interna da Igreja."

Mas se o papa Pio 12 buscava encerrar a questão, fato é que nem o dogma foi capaz de botar uma pedra sobre o assunto.

Em outros meios cristãos, a ideia de Maria alçada de corpo e alma ao céu é vista como uma invenção; dentro da Igreja Católica, também não há consenso teológico se a mãe de Jesus morreu e, então, foi levada para junto de Deus ou se, chegado o momento, ela foi alçada aos céus sem precisar passar pela experiência da morte.

Há ainda duas curiosidades — um tanto opostas em si — sobre a proclamação do último dogma.

Por um lado, Pio 12 tomou o cuidado de, em um movimento um tanto democrático, consultar bispos de todo o mundo para saber se havia apoio popular para que a tradição da assunção de Maria se convertesse em uma verdade de fé.

Em maio de 1946, o papa publicou uma encíclica na qual apresentou a questão ao episcopado, questionando como suas comunidades viam a proposta de um "dogma de fé" da "assunção corpórea da santíssima Virgem".

Pio 12 citava que era importante saber a posição tanto do clero quanto dos fiéis.

De acordo com informações do Vaticano, 1181 respostas foram recebidas, sendo a esmagadora maioria favorável — 1169 diziam concordar com a definição do novo dogma.

Em artigo publicado sobre o tema, o cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, Orani João Tempesta afirmou que, por causa dessa consulta, a decisão papal veio para confirmar "a fé de toda a Igreja".

No livro O Dogma da Imaculada Conceição, o bispo Pedro Carlos Cipolini escreveu que o que se fez foi "uma espécie de concílio por escrito". Já o frade, teólogo e professor Clodovis Boff afirmou que o que foi feito foi "uma democracia de verificação".

 Imagem mostra Maria no céu com vários anjos

Crédito,Domínio Público

Legenda da foto,Obra de Rubens, de 1616, retrata a assunção da Virgem Maria

Por outro lado, a declaração do dogma da assunção de Maria foi o único episódio em que o papa claramente evocou um princípio formulado por outro dogma — e que soa como autoritário: a ideia da infalibilidade papal, instituída em 1870 por Pio 9º (1792-1878). Afinal, na sua declaração ele enfatiza que o faz pela "própria autoridade".

"Dogma de fé é tudo aquilo que o magistério da Igreja, de modo ordinário e costumeiro, proclama como verdade revelada por Deus e que os católicos aceitam na profissão de fé ou no credo", define a cientista da religião De Tommaso. A especialista explica que a palavra tem origem grega e significa "uma obediência de fé".

A construção teológica

Ao longo dos séculos de cristianismo, a Igreja Católica sedimentou as poucas informações dos textos bíblicos sobre Maria, mesclou-as com tradições populares e, pouco a pouco, foi consolidando uma biografia da mãe de Jesus calcada em doutrina, fé e dogmas.

Destas verdades consideradas inquestionáveis, são quatro os pilares que ajudam a compreender o status de Maria dentro do catolicismo: a ideia de que ela é a Mãe de Deus, por ter gerado Jesus; a narrativa de que ela também foi concebida "sem a mancha do pecado original", ou seja, de forma milagrosa; sua virgindade perpétua; e, por fim, a assunção.

Mas se a história da assunção só foi oficialmente sacramentada há 75 anos, essa versão sobre o destino de Maria circula desde os primeiros séculos do cristianismo. Em 377, o bispo Epifânio de Salamina (c. 320-403) afirmou que ninguém sabia se Maria havia morrido ou não.

Desde essa época, textos apócrifos relatando Maria sendo levada ao céu já circulavam. São possivelmente do século 4º o texto chamado O Livro do Repouso de Maria e também os relatos das Narrativas da Dormição dos Seis Livros.

"O que se percebe, historicamente, é uma construção visando a justificar a importância teológica de uma mulher tão especial para ter sido escolhida para gerar Jesus", afirma à BBC News Brasil o historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Nos séculos seguintes, espalharam-se diversas versões, muito possivelmente baseadas nessas, de que a mãe de Jesus não havia morrido — e, sim, levada diretamente ao Reino de Deus.

Imagem mostra Maria rodeada por anjos

Crédito,Domínio Público

Legenda da foto,Obra da Imaculada Virgem Maria, no céu, feita por Barbolomé Esteban Murillo em 1678

Algumas narrativas diziam que anjos a vieram buscar. Outras, que o próprio Jesus encarregou-se disso. O historiador e bispo Gregório de Tours (538-594) debruçou-se sobre o assunto, buscando explicações teológicas para o que ele chamou de "assunção corpórea" de Maria.

De Tommaso ressalta que as dimensões da vida de Maria estiveram em ampla discussão durante "toda a Patrística", o período filosófico cristão do século 1º ao século 8º.

"Percebe-se essa realidade nos primeiros escritos da literatura cristã antiga", exemplifica.

Ela lembra que Aristides de Atenas, intelectual que viveu no século 2º, defendia o cristianismo como religião ressaltando que Jesus seria o "Filho de Deus […] que nasceu de uma virgem santa, sem germe de corrupção".

Há registros que por volta do ano 600 já havia celebração em memória desse episódio da assunção. Os papas Sergio 1 (650-701) e Leão 6º (880-929) reconheceram e aceitaram esse costume, que se arraigava.

Teólogos católicos passaram a oscilar entre aceitar e defender a doutrina — ou, pelo menos, tolerar.

E o assunto acabou aparecendo em textos de Boaventura (1217-1274), Tomás de Aquino (1225-1274), Afonso de Ligório (1696-1787) e muitos outros. O papa Bento 14 (1675-1758) declarou que a ideia da assunção de Maria era "uma opinião piedosa e provável".

Convenientemente, a data da comemoração foi trazida para o 15 de agosto, data que desde o ano 18 a.C., por imposição do imperador Augusto (63.a.C - 14 d.C.) era o grande feriado festivo de Roma Antiga.

Segundo Moraes, em 1925, o papa Pio 11 (1857-1939) recebeu de um grupo de religiosos eslavos "uma petição" que buscava inserir a crença na assunção de Maria no rol dos dogmas católicos. "Havia a expectativa que isso ocorresse ainda naquele ano", conta.

Quando o dogma foi proclamado, há 75 anos, a tradição já era tão forte que a afirmação estava "naturalizada" dentro da Igreja, argumenta o teólogo.

Ele reconhece que esse papel importante de Maria dentro do catolicismo funcionou muito bem porque "é um rosto feminino" que dá o toque materno à religião.

"A Igreja Católica passou a extrair os relatos a respeito de Maria a partir de tudo o que era construído pela própria Igreja, pelas opiniões dos teólogos, pelos documentos papais e também pelas lendas transmitidas, pela tradição, pelos milagres atribuídos a Maria", enumera.

"Soa como se sempre tivesse existido e se apaga, principalmente aos fiéis, a história do dogma", comenta.

"Esse dogma é o último estágio da exaltação a Maria. Coloca a assunção de seu corpo ao céu sem que este tivesse experimentado qualquer tipo de corrupção, uma visão piedosa largamente sustentada pela comunhão romana", analisa Moraes.

Dormição

De Tommaso lembra que os evangelhos e outros textos bíblicos "silenciam sobre a morte" de Maria. E isto fez com que a explicação precisasse deixar de ser histórica e ser dogmática, segundo ela.

A cientista da religião cita entendimento teológico de Joseph Ratzinger (1927-2022), que depois seria o papa Bento 16, para definir a assunção de Maria como "afirmação teológica" e não "histórica".

Nunca houve consenso, contudo, sobre como teria se dado essa assunção, se com a mãe de Jesus ainda viva ou imediatamente após a morte.

Em geral, os de tradição oriental, os ortodoxos, tendem a entender que Maria teve morte natural, sua alma foi recebida por Jesus e seu corpo foi ressuscitado e levado aos céus — no que seria uma antecipação privilegiada daquilo que ocorreria com todos os humanos para o julgamento final.

É o que eles costumam chamar de dormição de Maria, episódio celebrado também no 15 de agosto.

Imagem mostra Maria deitada, morta, e várias pessoas ao redor

Crédito,Domínio Público

Legenda da foto,A Morte da Virgem, obra de 1606, de Caravaggio

Entre os católicos de tradição ocidental, contudo, prevalece o entendimento de que Maria foi levada ao céu, de corpo e alma, antes de morrer.

Na definição do dogma, o papa se furtou a definir isso.

"No texto em que proclama o dogma, o papa fala em 'terminado o curso de sua vida terrena'. Virou um grande 'morreu ou não morreu'", pontua Araujo.

"É fato que um dogma não pode ser anulado, negado, mas ele pode ser revisitado e passar por reinterpretações. E escolas teológicas entendem o dogma da assunção porque ele nos comunica o que o Senhor nos espera no dia final. Em Maria há a antecipação disso e, preservada do pecado original, ela não precisa ter seu corpo corrompido. […] Essa é a interpretação, para além de pensar Maria sendo levada por anjos."

"A discussão teológica é essa. Claro que no popular, essa conversa geralmente é tratada de maneira mais convencional: alguns vão dizer que ela morreu e depois foi levada por anjos, outros que ela era vista pelos discípulos quando subiu aos céus", diz ele.

"O detalhe, para o fiel, pode não fazer diferença. Afinal, ele vê na assunção a esperança de vida eterna para todos e ponto. Para os teólogos, contudo, isso é importante", diz Moraes.

O que está claro no entendimento católico é a diferença entre a subida de Jesus aos céus e a subida de Maria. Conforme explica De Tommaso, é por isso que se diz "ascensão", no caso de Jesus — este teria subido por sua própria conta. De Maria, o termo é "assunção", porque "ela é levada".

"Por isso a Igreja no primeiro milênio representava a dormição em imagens em que Maria está deitada. Em torno dela estão os apóstolos. E sua alma, como criança envolta em um pano, está no colo do filho que desceu em glória rodeado por anjos para buscar a mãe", descreve De Tommaso.

Protestantes

Os cristãos protestantes têm mais divergências com os católicos sobre as questões envolvendo Maria.

O ponto de partida dessa impossibilidade de conciliação é a premissa de que, para esses segmentos cristãos, tudo precisa ser embasado pela Bíblia.

"No universo protestante a autoridade última é concedida às escrituras sagradas, enquanto na Igreja Católica Romana esta detém a autoridade última. Os dogmas, neste sentido, são ou pronunciamentos do próprio papa, quando fala da cátedra de Pedro, ou quando há uma manifestação do papa juntamente com o colégio de bispos, num concílio ecumênico", contextualiza à BBC News Brasil o teólogo e pastor luterano Valdir Steuernagel, autor do livro Um Olhar Sobre Maria, Serva do Senhor.

"No caso do dogma sobre Maria se pode perceber que há vários dogmas que se referem a ela e que foram sendo desenvolvidos no decorrer dos séculos", observa ele.

Steuernagel também acredita que no Brasil, por conta da formação católica da nação construída pela colonização portuguesa, historicamente foi consolidada uma visão dos protestantes como "oposição", de "contraditório".

"Estabeleceu-se assim [o cristianismo não católico] com uma postura e linguagem fortemente crítica a esse catolicismo e, como tal, acabou relegando o papel de Maria a uma 'escondida' personagem em nosso alfabeto bíblico", reconhece ele, lembrando que os evangélicos costumam considerar os católicos "mariólatras".

Para o pastor, essa leitura está mudando.

"A minha percepção é de que quanto mais vamos nos encontrando num Brasil menos católico e mais evangélico, tanto mais liberdade a tradição evangélica, à qual pertenço, terá para mergulhar nas Escrituras e então perceber o papel dessa Maria que se qualifica como serva do Senhor e de quem tanto se pode aprender e que tanto nos ajuda a moldar o seguimento a Jesus", avalia ele.

Imagem com várias pessoas e no centro Maria deitada

Crédito,Domínio Público

Legenda da foto,Ícone do século 13 representa a dormição de Maria

O teólogo Moraes vê esse papel de Maria, embasado por dogmas dentro do catolicismo, como se ela fosse vista como um meio-termo entre um santo e o próprio Deus.

"Ela tem um local de destaque incomum, acima de um santo normal. É vinculada diretamente com a Santíssima Trindade, alguém que não é inserida diretamente na Trindade [o entendimento de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo], mas alguém que orbita essa Trindade de maneira especial, afinal porque é mãe de Deus", analisa ele.

O professor acredita que aí esteja o ponto de difícil entendimento entre protestantes e católicos.

"Os protestantes reconhecem o valor da Maria histórica, mãe de Jesus, mulher escolhida para trazer ao mundo o Messias. Mas aí dar a ela um grau de adoração, uma função que a Bíblia não atribui, isso já é ir longe demais", compara.

"A 'mariolatria' dos católicos é algo que sempre incomodou os protestantes", diz Moraes.

O teólogo Araujo discorda dessa visão protestante. "Definitivamente, Maria não pleiteia ser a quarta pessoa da Santíssima Trindade. Definitivamente", diz o teólogo. "A Igreja leva isso muito a sério."

Ele comenta que há uma cobrança do Vaticano para que a devoção mariana seja feita "com os pés no chão".

Segundo ele, o que ocorre é chamado de hiperdulia, que seria uma veneração especial a Mãe de Jesus.

Dulia, que vem do termo grego para o verbo honrar, é a denominação teológica para a devoção que os católicos nutrem pelos santos.