SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

sábado, 20 de dezembro de 2025

O país onde os jovens são a geração mais afetada pela solidão

 

Pessoas solitárias, afastadas umas das outras

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,33% dos britânicos de 16 a 29 anos relataram sentir solidão "com frequência, sempre ou às vezes", sendo a taxa mais alta entre todas as faixas etárias
    • Author,Luke Mintz
    • Role,BBC News
  • Tempo de leitura: 11 min

Foi numa noite fria de outubro de 2021 que Adam Becket diz ter vivido a sua lembrança mais marcante. Ele tinha 26 anos e havia se mudado para Bristol, na Inglaterra, um ano antes por causa do trabalho, mas tinha dificuldade para fazer amigos.

"Eu não ficava sozinho o tempo todo, mas […] era um pouco estranho", lembra.

Ao voltar para casa naquela noite, as ruas estavam cheias de pessoas fantasiadas de monstros e gatos para as festas de Halloween.

"Eu passei por pessoas chegando à casa de seus amigos, por gente correndo para lojas para comprar cerveja. Todos os pubs estavam lotados. Era como estar em um outro mundo, do qual você não faz parte. E você sente que nunca vai fazer parte dele."

Naquela noite, ele teve a sensação de ser a única pessoa vivendo uma solidão profunda. Mas o fato é que esse sentimento vem se tornando uma característica marcante de sua geração.

As conversas sobre isolamento social costumam se concentrar nos idosos, especialmente na época do Natal. Mas, segundo alguns indicadores, pessoas na faixa dos 20 anos são hoje o grupo mais solitário do Reino Unido.

À esquerda, Adam Becket durante uma caminhada. À direita, Adam Becket de bicicleta em uma colina

Crédito,Adam Becket

Legenda da foto,"Eu não ficava sozinho o tempo todo, mas […] era um pouco estranho", diz Adam, cuja solidão diminuiu depois que passou a participar de grupos de corrida e ciclismo

Segundo uma pesquisa do ONS, órgão oficial de estatísticas do Reino Unido, publicada em novembro, 33% dos britânicos de 16 a 29 anos relataram sentir solidão "com frequência, sempre ou às vezes" — a taxa mais alta entre todas as faixas etárias. Entre pessoas com mais de 70 anos, 17% disseram o mesmo.

Neste ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) analisou diversos estudos publicados em diferentes países e também constatou que jovens adultos e adolescentes relatam os níveis mais elevados de solidão.

Os dados são complexos, e há indícios de que, em alguns países, entre o grupo mais idoso, de pessoas com mais de 85 anos, a solidão aumenta de forma acentuada e pode se igualar à registrada entre jovens de 18 a 30 anos. Ainda assim, analistas afirmam que, na maior parte das pesquisas, os jovens adultos se destacam como um grupo particularmente isolado.

"Os adultos entre 18 e 24 anos são os que se sentem mais solitários, seguidos pelos idosos", afirma a professora Andrea Wigfield, diretora do Centro de Estudos da Solidão da Sheffield Hallam University, no Reino Unido. "É um problema crescente."

Mas por que isso aconteceu? E existe uma solução?

O problema da 'dispersão'

Cada vez mais, especialistas afirmam que o mundo moderno é o principal responsável pelo problema.

Muitos jovens na faixa dos 20 anos vivem em casas compartilhadas nas quais não conhecem bem, ou não gostam, dos colegas de quarto. O trabalho, com frequência, passou a ser feito em casa, e o contato com os amigos muitas vezes ocorre pelas redes sociais.

Nem tudo é desolador. Graças à internet, os jovens adultos têm acesso a amizades no mundo todo. Mas, de modo geral, dizem os especialistas, a imagem de uma vida social intensa entre jovens de 20 e poucos anos, apresentada em séries como Friends, precisa de uma correção urgente.

Cena da série Friends, com os personagens reunidos em um apartamento

Crédito,NBC Universal via Getty Images

Legenda da foto,A série de TV dos anos 1990 Friends mostra jovens na casa dos 20 anos com uma vida social intensa. Na prática, porém, para jovens adultos ouvidos pela BBC, além de acadêmicos, representantes de entidades e médicos, dizem que essa fase costuma ser marcada pela solidão
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"Tendemos a romantizar o início da vida adulta como um período despreocupado, quando, na maioria das vezes, é o período mais miserável da vida das pessoas", afirma o professor Richard Weissbourd, docente de educação na Universidade Harvard, nos EUA.

Em alguns aspectos, o começo da vida adulta sempre foi um período de instabilidade. Os jovens adultos tendem a sair da casa dos pais e se mudar com frequência. Os amigos partem, e os laços familiares se enfraquecem. Esses eventos de transição podem, para algumas pessoas, levar a uma profunda solidão.

"Um grande problema é a dispersão; todo mundo que você conheceu agora vive em um milhão de lugares diferentes", diz a psicóloga clínica Meg Jay, autora do livro The Twenty-Something Treatment (O Tratamento para os 20 e Poucos, em tradução livre).

Esse processo de "dispersão" se mostrou difícil para Adam Becket. Ele tinha uma vida social intensa quando morava em Londres, no início dos 20 anos, mas, após se mudar para Bristol, precisou construir novas amizades do zero.

"Além de não conhecer ninguém, eu também não sabia por onde começar a conhecer pessoas. Você não pode simplesmente se aproximar de alguém e dizer: 'Posso participar dessa diversão?'. É fácil entrar numa espiral de insegurança e autocrítica do tipo 'Eu claramente não sou interessante, nem legal, nem o tipo certo de pessoa'."

As coisas melhoraram quando ele passou a frequentar grupos de corrida e ciclismo e conheceu pessoas com quem teve afinidade — embora diga que sua solidão ainda vai e vem.

Jogando boliche sozinho

Hoje, há também um conjunto de novos fatores e claramente modernos que podem estar agravando o problema.

Em muitas partes do mundo, as pessoas estão se casando e tendo filhos mais tarde (ou nem sequer os têm).

No Reino Unido, a idade média do primeiro casamento hoje é de 31 anos, segundo o ONS. Em 1970, essa média era de 23 anos para homens e 21 para mulheres.

Os jovens adultos tendem a depender mais dos amigos para estabelecer conexões emocionais e, quando essas relações não correspondem às expectativas, a solidão pode surgir.

O professor Weissbourd, da Universidade Harvard, também aponta para uma fragmentação mais ampla das comunidades. Em países ricos, a participação em instituições cívicas, como igrejas, grupos comunitários ou sindicatos, vem diminuindo desde a década de 1970.

Esse fenômeno é conhecido como a tese chamada de "Jogando Boliche Sozinho" (Bowling Alone), nome inspirado em um ensaio famoso publicado em 1995 pelo cientista político Robert Putnam.

No texto, ele observou que mais jovens americanos estavam jogando boliche sozinhos, e não em grupo; um símbolo de um colapso mais amplo das relações sociais.

Pessoas na faixa dos 20 anos, que podem ter deixado a casa da infância, mas ainda não formaram sua própria família, sentem essa perda de comunidade de forma mais aguda, afirma Weissbourd.

"Vivemos em uma sociedade cada vez mais individualista. Acho que a solidão é um sintoma da nossa incapacidade em cuidar uns dos outros."

Imagem em preto e branco de jovens jogando boliche

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Nos anos 1950, jovens americanos jogavam boliche em equipes; nos anos 1990, muitos passaram a jogar sozinhos, segundo ensaio de Robert Putnam

Isso ressoa com o relato de Zeyneb, de 23 anos, que mora sozinha em Cheltenham, no Reino Unido.

Seus sentimentos de solidão atingiram o pico no ano passado, durante o mestrado. Com apenas algumas horas de aula por semana, ela teve dificuldade para criar vínculos significativos com seus colegas. E, com a família morando longe, na Romênia, hoje passa grande parte do tempo sozinha enquanto procura emprego.

"É uma sensação de solidão paralisante quando todo mundo tem suas próprias coisas para fazer."

Ela sente falta do que psicólogos chamam de um "terceiro lugar": um espaço social, como um parque ou uma biblioteca que seja diferente do "primeiro lugar" (casa) ou do "segundo lugar" (trabalho ou universidade).

"Nós realmente não temos esse tipo de espaço para conhecer pessoas", afirma.

O mais próximo disso que ela consegue imaginar é a academia, mas, segundo conta, lá todo mundo praticamente usa fones de ouvido, e poucos fazem contato visual.

O paradoxo das casas compartilhadas nas cidades

Há ainda o aumento do trabalho remoto após a pandemia.

Embora os jovens adultos no Reino Unido trabalhem de casa com menos frequência do que gerações mais velhas — 28% das pessoas de 16 a 29 anos trabalharam em casa pelo menos parte do tempo no primeiro trimestre de 2025, ante 54% das pessoas de 30 a 49 anos, segundo um estudo —, o trabalho remoto pode afetar de forma especialmente dura quem está na faixa dos 20 anos.

"Trabalhar em casa tem sido, na minha opinião, um pesadelo para quem tem vinte e poucos anos", afirma a psicóloga Meg Jay. "É muito difícil fazer amigos quando você não sai de casa."

Nem mesmo a moradia compartilhada resolve sempre o problema.

Há aqui um certo paradoxo, já que jovens adultos são os que têm mais probabilidade de morar com outras pessoas. Na Inglaterra e no País de Gales, que fazem parte do Reino Unido, apenas 5% das pessoas no início dos 20 anos vivem sozinhas, contra 49% entre aquelas com mais de 85 anos, segundo o ONS.

Ainda assim, viver sob o mesmo teto que outras pessoas nem sempre parece tornar os jovens adultos menos solitários.

"Algumas das minhas piores lembranças dos 20 anos foram de ter que morar com pessoas de quem eu não gostava", recorda Jay. "Se eu estava passando por um momento difícil, elas não se importavam, estavam ocupadas demais consigo mesmas."

É claro que isso não acontece em todas as casas compartilhadas, mas, segundo ela, conviver com alguém emocionalmente distante pode deixar as pessoas "ainda mais solitárias" do que se morassem sozinhas.

'Comparar e se desesperar' em smartphones

Tudo isso é agravado pelos smartphones e pelas redes sociais. Neste ano, os britânicos de 18 a 24 anos passaram, em média, seis horas e 20 minutos por dia online, segundo o Ofcom, órgão regulador da mídia no Reino Unido. Um tempo maior do que o registrado por outras faixas etárias adultas.

Alguns poderiam supor que aplicativos como Instagram e Snapchat contribuem para a solidão por estimularem interações online em vez de encontros presenciais, mas os dados não sustentam essa relação de forma clara.

O que é certo, dizem alguns especialistas, é que as redes sociais amplificam sentimentos de solidão já existentes, por causa do que a psicóloga Meg Jay chama de 'comparar e se desesperar'.

"Você fica pensando: 'Todo mundo parece ter melhores amigos e estão todos saltando de paraquedas em Dubai, o que há de errado comigo? E se eu não vi ninguém o fim de semana inteiro?'."

Quatro homens estão em uma fila, olhando para seus smartphones

Crédito,Robert Alexander / Getty Images

Legenda da foto,Os britânicos de 18 a 24 anos passaram, em média, seis horas e 20 minutos por dia online, segundo o Ofcom, órgão regulador da mídia no Reino Unido

Ainda assim, é possível que vieses de relato também estejam influenciando os resultados.

Estudos sobre solidão se baseiam, em sua maioria, em questionários de autorrelato (ou seja, as pessoas são simplesmente perguntadas se se sentem solitárias).

O professor Weissbourd, da Universidade Harvard, afirma que é plausível que jovens adultos, que tendem a ter mais familiaridade com a linguagem da saúde mental e da terapia, sejam mais propensos do que pessoas mais velhas a se descreverem como solitários em questionários.

Ele avalia que esses vieses de relato podem explicar "uma parte" do quebra-cabeça, mas certamente não o quadro completo.

A professora Andrea Wigfield, da Sheffield Hallam University, também considera que o alto nível de solidão entre jovens adultos é um fenômeno real, e não uma miragem estatística.

A 'loteria' da prescrição social

No início, a história de David Gradon era bastante comum. No fim dos seus 20 anos, seus amigos se mudaram de Londres.

"Meu círculo social encolheu muito", lembra, e ele passou a apresentar sintomas de depressão. Foi um conselheiro do NHS, o sistema público de saúde do Reino Unido, quem sugeriu que o problema poderia ser solidão.

Ele tentou conhecer pessoas por aplicativos de namoro (uma ideia "terrível"), e se inscreveu em um clube do esporte tag rugby, mas machucou a perna já no primeiro treino. Cada vez mais desanimado, decidiu organizar uma caminhada em um parque por meio das redes sociais.

Em um dia de outono de 2021, Gradon e 11 desconhecidos se encontraram no parque Hampstead Heath, no norte de Londres.

Ele organizou outras caminhadas e, com o tempo, a iniciativa se transformou em seu trabalho em tempo integral. Hoje, ele comanda o The Great Friendship Project (Projeto da Grande Amizade, em tradução livre), um grupo sem fins lucrativos criado para combater a solidão entre jovens adultos, que promove eventos sociais para pessoas com menos de 35 anos em Londres.

"Todo mundo está no mesmo barco. E isso, na prática, derruba barreiras. Porque você sabe que não vai ser julgado", explica.

Um grupo de pessoas está em um parque, algumas delas vestidas com fantasias de dinossauro

Crédito,The Great Friendship Project

Legenda da foto,O grupo sem fins lucrativos de David Gradon organiza caminhadas em parques e outros eventos para pessoas com menos de 35 anos em Londres

Clubes juvenis financiados por conselhos locais funcionam em todo o país. A maioria é voltada para adolescentes e crianças, mas Laura Cunliffe-Hall, diretora de políticas da entidade beneficente UK Youth, defende a criação de mais clubes para pessoas na faixa dos 20 anos. De acordo com ela, o trabalho com jovens deveria atender a todos até os 25 anos.

Segundo Cunliffe-Hall, o financiamento é o principal obstáculo. Os gastos das autoridades locais com serviços para jovens na Inglaterra caíram 73% entre 2010/11 e 2023/24, de acordo com a entidade YMCA.

Há quem argumente que investir em serviços voltados à amizade pode gerar economia no longo prazo, já que as consequências para a saúde da solidão prolongada podem ser graves.

A professora Wigfield afirma que a solidão crônica está associada a processos inflamatórios e pode aumentar o risco de doenças cardiovasculares e demência na terceira idade.

Nos últimos anos, o sistema público de saúde do Reino Unido (NHS) investiu em social prescribing (prescrição social, em tradução livre), modelo no qual clínicos gerais encaminham pacientes com determinados problemas de saúde mental para serviços oferecidos por entidades beneficentes em suas regiões, como aulas de arte ou jardinagem.

Um estudo recente revelou que mais de um milhão de pessoas (de todas as idades) foram encaminhadas a serviços de prescrição social do NHS em 2023.

Mas Wigfield avalia que a infraestrutura ainda é desigual. "Isso realmente vira uma loteria, dependendo de onde você mora [e] de o clínico geral ter ou não conhecimento dos serviços locais", afirma.

Pessoas caminhando por um parque de Londres

Crédito,The Great Friendship Project

Legenda da foto,Praticamente todos os participantes vão sozinhos, o que faz com que todos estejam "no mesmo barco", afirma David Gradon, do The Great Friendship Project

Olhando para a próxima década, a psicóloga Meg Jay vê sinais de esperança.

Por exemplo, ela acredita que o trabalho remoto "perdeu parte de seu encanto" entre pessoas na faixa de vinte e poucos anos. (Neste ano, várias grandes empresas, entre elas Barclays e WPP, pediram que os funcionários passassem mais tempo no escritório.)

Jay também observa que algumas figuras de grande visibilidade vêm se afastando das redes sociais, embora ressalte que ainda há poucas evidências de uma queda significativa no uso entre jovens adultos.

"Eu adoraria ver uma reação mais forte contra [as redes sociais], mas elas estão literalmente nos nossos bolsos", acrescenta.

Há também quem encontre solução para a solidão em lugares inesperados. Para Zeyneb, o melhor antídoto contra o isolamento social foi adotar uma gata preta chamada Olive.

"Ela é muito carinhosa", diz Zeyneb. "Ela sabe quando eu preciso de um tempo com ela. Sem ela, eu teria me sentido muito mais sozinha."

A Busca do Lar por Egidio Guerra

 



O lar é um lugar que se constrói com memórias. Mas e quando a memória mais antiga é justamente a ausência do alicerce? Minha mãe perdeu a sua mãe aos cinco anos. Seu mundo, então, não foi erguido sobre o tapete aconchegante de um colo permanente, mas sobre o chão irregular e cambiante das feiras em conventos e orfanatos, entre vozes estranhas e a precariedade do dia a dia. Como se dá o que nunca se recebeu? Como se oferece um porto seguro quando a própria âncora esteve sempre à deriva?

Ela me deu o que tinha: a vida, e uma dor profunda que, em vez de cicatriz, tornou-se um órgão sensorial extra. Aprendi, por empatia e por herança inconsciente, a sentir a dor do outro antes mesmo de nomear a minha. A ausência de um centro fixo, de um endereço emocional único, fez com que eu transformasse o mundo no meu lar, e as pessoas que sofressem, na minha família. Em cada organização, setor ou projeto por onde passei, eu não estava apenas trabalhando ou militando; estava, desesperadamente, tentando tecer uma rede de pertencimento. Era um arquiteto de abrigos temporários, construindo para os outros a estrutura que intuía, mas nunca conhecera intimamente.

Nos últimos vinte anos, tenho escrito minha biografia, onde a arte de escritor e cineasta se funde com a matéria bruta da realidade, dos falsos amores, dos sonhos grandiosos e da vida que insiste em ser vivida. Escrevo e reescrevo, filmo e refilmo as mesmas cenas de busca. Alguns capítulos, no entanto, são espectrais: aparecem com a clareza de um dia de sol e, de repente, desmancham-se no ar. Por que minha avó morreu? Esta pergunta simples, sobre uma mulher que nunca conheci, é na verdade a pedra fundamental de um edifício que ruiu antes de ser habitado. É o ponto zero do meu mapa emocional.

A solidão que carrego não é a do vazio, mas a do pleno equivocado. É a solidão de quem está cercado por multidões, por aplausos, por projetos, por corpos, mas nunca pelo calor silencioso de um lar. É a sensação de falar um idioma íntimo para ouvidos que só captam o interesse, a vaidade, o egoísmo disfarçado de afeto. Fui, por tanto tempo, um território em disputa para os outros, que nele plantaram suas bandeiras, extraíram seus recursos e partiram. Eu não tinha noção de um "eu". Minhas necessidades eram um ruído de fundo abafado pelo clamor das necessidades alheias. Lutei por causas, por pessoas, por ideias, menos por mim. Fui uma casa aberta, com todas as portas e janelas escancaradas, onde qualquer um entrava, mas ninguém ficava para cuidar do fogo na lareira.

E hoje, a pergunta que move meus dias: por que luto para dar ao meu filho um lar do tamanho do mundo? Será para compensar, em uma escala cósmica, o que faltou em escala doméstica? Ou será para ensiná-lo, desde o início, que seu lar não é um lugar a ser perdido, mas algo que ele carrega dentro de si, um núcleo de paz que pode ser levado a qualquer parte? A busca se transmuta, mas não cessa.

A psicologia, a literatura, o cinema – sempre foram meus mapas de navegação nesse oceano sem coordenadas fixas. Em Bergman, a angústia das relações familiares; em Tchekhov, o anseio por uma vida diferente; em tantas narrativas, o retrato do que poderia ser um lar. Encontrei diagnósticos, metáforas, espelhos. Mas sempre faltou algo. Falta o irmão de lado, a testemunha silenciosa da mesma história, o co-herdeiro da mesma falta. Sobram ideias, sonhos, lutas – materiais nobres, mas insuficientes para erguer sozinho o que deveria ter sido construído a quatro mãos.

No fim, percebo que busco, e talvez sempre tenha buscado, os valores sentimentais que estruturam um lar. A confiança que dispensa fechaduras. O amor que não exige troca. O silêncio que não é vazio, mas cumplicidade. A presença que é pura, sincera, desinteressada. Na ausência deles, ficamos sofrendo sem respostas precisas, navegando por um mar de perguntas. Transformamo-nos em colecionadores de pessoas, em acumuladores de experiências, na vã esperança de que a quantidade preencha o vazio qualitativo de um abraço que nunca foi dado no momento certo.

Quero encontrar ou apagar a dor? Talvez eu apenas queira, finalmente, dar-lhe um lar. Um lugar dentro de mim onde ela não seja mais um hóspede estranho, mas um fato integrado à paisagem. Para que, a partir desse reconhecimento, eu possa construir não mais um refúgio contra o mundo, mas um verdadeiro porto dentro dele. Um porto com luz acesa, onde meu filho – e talvez, finalmente, eu mesmo – saiba que pode sempre atracar. A busca pelo lar exterior começa, inevitavelmente, pela pacificação daquele interior, ainda em obras, ainda ecoando com os passos da menina de cinco anos que minha mãe foi, e que, de certa forma, nunca deixou de ser.




A surpreendente rotina de sono que era a regra na Idade Média (e por que a abandonamos)

 

Imagem de pessoas dormindo em camas

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Dormir em conjunto significava que as pessoas normalmente tinham alguém com quem falar quando acordavam para a "vigília"
    • Author,Zaria Gorvett
    • Role,BBC Future
  • Tempo de leitura: 14 min

Eram cerca de 11 horas da noite de 13 de abril de 1699, em uma pequena aldeia no norte da Inglaterra. Jane Rowth, com nove anos de idade, piscava os olhos, observando as sombras da noite escura.

Ela e sua mãe haviam acabado de acordar de um curto sono. A mãe de Jane levantou-se e andou até a lareira daquela casa simples, onde começou a fumar seu cachimbo. Foi quando dois homens surgiram na janela. Eles chamaram a sra. Rowth para se aprontar e ir com eles.

Como Jane explicou mais tarde para um tribunal, sua mãe claramente estava esperando os visitantes.

Ela foi com eles sem resistir — mas antes sussurrou para sua filha: "fique deitada e estarei de volta pela manhã".

Talvez a sra. Rowth tivesse alguma tarefa noturna a cumprir. Ou talvez ela estivesse em dificuldades e sabia que encontraria perigos ao sair de casa.

De qualquer forma, a mãe de Jane não conseguiu cumprir sua promessa e nunca mais voltou para casa.

Naquela noite, a sra. Rowth foi brutalmente assassinada e seu corpo foi encontrado dias depois. O crime nunca foi esclarecido.

Cerca de 300 anos depois, no início dos anos 1990, o historiador Roger Ekirch visitou o Escritório de Registros Públicos de Londres — um imponente edifício gótico, com belos arcos de entrada, que abrigou os Arquivos Nacionais do Reino Unido entre 1838 e 2003.

Foi ali que, entre fileiras quase infinitas de documentos e manuscritos antigos, ele encontrou o depoimento de Jane Rowth.

Ekirch estava originalmente pesquisando para escrever um livro sobre a história das horas noturnas e, naquela época, buscava registros do período entre o início da Idade Média e a Revolução Industrial.

Ele havia descoberto que os depoimentos judiciais são muito esclarecedores.

"Eles são uma fonte maravilhosa para historiadores sociais", afirma Ekirch, que é professor da Universidade Estadual da Virgínia, nos Estados Unidos.

"Eles comentam sobre atividades muitas vezes não relacionadas ao crime propriamente dito."

Um dos temas que Ekirch temia ter que abordar em algum capítulo de seu livro sobre os hábitos noturnos seria o sono.

Ele acreditava que o sono fosse não só uma necessidade universal, mas uma constante biológica, e não esperava encontrar nada de novo sobre o tema — até que um ponto estranho do testemunho de Jane Rowth chamou sua atenção.

Ao ler o depoimento, ele encontrou duas palavras que nunca havia visto antes, mas que pareciam retratar um detalhe particularmente intrigante da vida no século 17: "primeiro sono".

"Posso recitar o documento original de cor quase inteiro", afirma Ekirch. Sua euforia com a descoberta ainda pode ser percebida, mesmo décadas depois.

Imagem Sonho dos Magos

Crédito,British Library*

Legenda da foto,Na Idade Média, era absolutamente normal que várias pessoas dormissem juntas

No seu testemunho, Jane descreve como, pouco antes dos homens chegarem à sua casa, ela e sua mãe haviam acordado do primeiro sono da noite. Não havia mais explicações — o sono interrompido era indicado como sendo algo comum e totalmente sem importância.

"Ela se referiu ao caso como se fosse absolutamente normal", afirma Ekirch.

A existência de um primeiro sono indica que havia também um segundo sono — uma noite dividida em duas metades. Era apenas um hábito familiar ou haveria algo mais, além disso?

Prática generalizada

Pelos meses que se seguiram, Ekirch vasculhou os arquivos e encontrou muitas outras referências sobre esse fenômeno misterioso do duplo sono, ou "sono bifásico", como ele viria a denominá-lo.

Alguns relatos eram um tanto banais, como a menção feita pelo tecelão Jon Cokburne, que simplesmente o citou de passagem em um depoimento.

Mas outros eram mais sombrios, como o de Luke Atkinson, de East Riding em Yorkshire, no norte da Inglaterra.

Certa vez, ele cometeu um assassinato no início de uma manhã, entre os dois sonos — e sua esposa declarou que, muitas vezes, ele usava esse intervalo para ir até as casas de outras pessoas com a intenção de realizar atos sinistros.

Quando Ekirch ampliou sua pesquisa, incluindo bancos de dados online de outros registros escritos, logo ficou claro que o fenômeno era mais comum e difundido que ele havia imaginado.

Para começar, o primeiro sono é mencionado em uma das obras mais famosas da literatura medieval, The Canterbury Tales (Os contos da Cantuária, em português), de Geoffrey Chaucer (escritos entre 1387 e 1400). O livro apresenta um concurso de contar histórias entre um grupo de peregrinos.

Existe também uma menção no livro Beware the Cat (Cuidado com o gato, em tradução livre), escrito em 1561 pelo poeta William Baldwin — um livro satírico considerado por alguns o primeiro romance já escrito.

Ele conta a história de um homem que aprende a linguagem de um grupo de gatos sobrenaturais assustadores. Um deles, chamado mouse-slayer (assassino de camundongos, em tradução livre), enfrenta julgamento por promiscuidade.

Mas isso é apenas o começo. Ekirch encontrou referências casuais ao sistema de sono em duas partes em todas as formas escritas que se pode imaginar — centenas de cartas, diários, livros médicos, escritos filosóficos, artigos de jornal e peças de teatro.

A prática aparece até em canções da época, como na balada Old Robin of Portingale: "... e, ao acordar do seu primeiro sono, você precisa tomar uma bebida quente; e, ao acordar do sono seguinte, suas mágoas se acalmarão..."

E o sono bifásico também não era exclusivo da Inglaterra. Ele era amplamente praticado em todo o mundo pré-industrial. Na França, o sono inicial era chamado de "premier somme", enquanto, na Itália, era o "primo sonno".

De fato, Roger Ekirch encontrou evidências do hábito até em locais distantes como a África, sul e sudeste asiático, Austrália, Oriente Médio — e no Brasil.

Um registro colonial do Rio de Janeiro, datado de 1555, descreve que o povo tupinambá costumava comer depois do seu primeiro sono.

Lívio

Crédito,Alamy

Legenda da foto,Como muitos romanos, o historiador Lívio praticava o sono bifásico

Já um registro de Mascate, em Omã, explicava no século 19 que os habitantes locais se recolhiam para seu primeiro sono antes das 22 horas.

E Ekirch começou a suspeitar que esse método, longe de ser uma peculiaridade da Idade Média, poderia ter sido a principal forma de dormir por milênios — um padrão antigo herdado dos nossos ancestrais pré-históricos.

O registro mais antigo encontrado por Ekirch foi do século 8 antes de Cristo, no épico grego A Odisseia, enquanto as indicações mais recentes dessa prática datam do início do século 20, quando, de alguma forma, ela caiu no esquecimento.

Como isso funcionava? Por que as pessoas dormiam em dois turnos? E como algo que um dia foi tão comum acabou sendo completamente esquecido?

Era um momento vago

No século 17, a noite de sono era mais ou menos assim:

Das 21 às 23 horas, as pessoas que tinham condições começavam a recostar-se em colchões forrados com palha ou trapos (os colchões dos ricos poderiam ter enchimento de penas), prontas para dormir por duas horas.

Enquanto isso, nas camadas inferiores da sociedade, as pessoas precisavam acomodar-se sobre plantas espalhadas no solo ou, pior, no chão de terra batida — talvez até sem cobertor.

Naquela época, muitas pessoas dormiam juntas, frequentemente acompanhadas de uma acolhedora variedade de percevejos, pulgas, piolhos, familiares, amigos, servos e — se estivessem viajando — também completos estranhos.

Para minimizar constrangimentos, o sono envolvia uma série de convenções sociais rígidas, como evitar contato físico ou muitos movimentos durante a noite. E havia posições definidas para dormir.

As meninas mais jovens, por exemplo, normalmente deitavam-se em um lado da cama, com as mais velhas mais perto da parede, seguidas pela mãe e pelo pai, depois os filhos meninos — também dispostos por idade — e os que não eram membros da família depois deles.

Duas horas depois, as pessoas começavam a despertar desse sono inicial.

O tempo acordado à noite normalmente começava perto de 23 horas e ia até cerca de uma hora da manhã, dependendo do horário em que as pessoas haviam ido para a cama.

Esse despertar geralmente não era causado por ruídos, nem por outras perturbações à noite. Também não havia alarme para despertar — os despertadores foram inventados apenas em 1787, por um norte-americano que, ironicamente, precisava acordar no horário para vender relógios.

As pessoas acordavam de forma totalmente natural, da mesma forma que faziam pela manhã.

O período acordado era chamado de "vigília" e era um intervalo surpreendentemente útil para realizar tarefas.

"[Os registros] descrevem que as pessoas faziam quase de tudo depois que acordavam do primeiro sono", relata Ekirch.

Pessoas pesquisando no Escritório de Registros Públicos

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,O Escritório de Registros Públicos abrigava milhares de depoimentos criminais da era medieval, que agora são guardados nos Arquivos Nacionais em Kew, a sudoeste de Londres

Sob o fraco brilho da lua, das estrelas, lâmpadas a óleo ou "velas de junco" — uma espécie de vela para residências simples, feita de caules de junco encerados — as pessoas se dedicavam a tarefas comuns, como colocar lenha no fogo, tomar remédios ou urinar (muitas vezes, no próprio fogo).

Para os camponeses, acordar significava voltar ao trabalho mais sério — seja sair para vistoriar os animais de criação ou realizar tarefas domésticas, como remendar roupas, pentear lã ou descascar os juncos a serem queimados.

Ekirch encontrou o relato de um servo que certa vez chegou a preparar um lote de cerveja para seu patrão entre meia-noite e duas horas da manhã, em Westmorland, no noroeste da Inglaterra.

Naturalmente, os criminosos aproveitavam a oportunidade para percorrer as redondezas e causar problemas, como o assassino de Yorkshire. Mas a vigília era também um momento religioso.

Para os cristãos, havia orações elaboradas a serem rezadas, incluindo algumas especificamente recomendadas para esse período.

Um padre chamou a vigília de a hora mais "proveitosa" do dia — depois de digerir o seu jantar e encerrar as tarefas mundanas, "ninguém virá procurar você, exceto Deus".

Já as pessoas com disposição para a filosofia poderiam usar a vigília como um momento de reflexão para pensar sobre a vida e ponderar sobre novas ideias.

No final do século 18, um comerciante londrino chegou a inventar um dispositivo especial para registrar suas percepções noturnas mais ardentes — um "lembrador noturno", que consistia de um bloco de pergaminho fechado com uma abertura horizontal que poderia ser usada como guia para escrever.

Mas, principalmente, a vigília era útil para a socialização — e para o sexo.

Como explica Ekirch em seu livro, At day's close: A history of nighttime (No encerramento do dia: a história das horas noturnas, em tradução livre), as pessoas muitas vezes sentavam-se na cama e apenas conversavam.

E, durante essas estranhas horas de penumbra, as pessoas que dividiam a cama conseguiam compartilhar um nível de informalidade e conversas casuais dificilmente atingido durante o dia.

E, para os casais que conseguissem vencer a logística de compartilhar a cama com outras pessoas, era também um intervalo conveniente para intimidade física.

Depois de um longo dia de trabalho manual, o primeiro sono eliminava sua exaustão e o período seguinte era considerado um excelente momento para conceber sua enorme quantidade de filhos.

Depois que as pessoas ficavam acordadas por duas horas, normalmente elas voltavam para a cama.

Esse segundo período era considerado o sono "da manhã" e poderia durar até amanhecer ou mais. Da mesma forma que acontece hoje, a hora em que as pessoas finalmente acordavam para o dia dependia da hora em que elas foram para a cama à noite.

Adaptação antiga

Segundo Ekirch, existem referências ao sistema de sono em dois períodos espalhadas ao longo de toda a Antiguidade, o que indica que ele já era comum naquela época.

O sistema é mencionado casualmente em obras de escritores ilustres, como o biógrafo grego Plutarco (século 1 depois de Cristo), o viajante grego Pausânias (século 2 depois de Cristo), o historiador romano Lívio e o poeta romano Virgílio.

Posteriormente, a prática foi adotada pelos cristãos, que imediatamente perceberam o potencial da vigília como uma oportunidade para recitar salmos e fazer confissões.

No século 6, São Bento ordenava aos monges que se levantassem à meia-noite para essas atividades e essa ideia acabou por espalhar-se por toda a Europa, gradualmente chegando à população em geral.

Mas os seres humanos não são os únicos animais a descobrir os benefícios de dividir o sono.

Essa prática é amplamente adotada no mundo natural, com muitas espécies repousando em dois ou até mais períodos de sono separados. Isso os ajuda a permanecer ativos nas horas mais benéficas do dia, quando eles têm maior possibilidade de encontrar alimento, sem que eles próprios se tornem o lanche de alguém.

Um exemplo é o lêmure-de-cauda-anelada. Esses icônicos primatas de Madagascar, com seus olhos vermelhos arrepiantes e caudas verticais em preto e branco, mantêm padrões de sono surpreendentemente similares aos dos seres humanos da era pré-industrial. Eles são "catemerais", ou seja, eles ficam acordados durante a noite e o dia.

"Existem muitas variações entre os primatas, em termos da distribuição da sua atividade ao longo do período de 24 horas", afirma David Samson, diretor do laboratório do sono e evolução humana da Universidade de Toronto em Mississauga, no Canadá.

E, se o sono em dois períodos é natural para os lêmures, ele se pergunta: pode ser esta a forma em que nós também evoluímos para dormir?

Roger Ekirch vinha alimentando o mesmo pressentimento havia muito tempo. Mas ele passara décadas sem encontrar nada de concreto que o comprovasse — nem que esclarecesse por que essa prática desapareceu.

Até que, em 1995, Ekirch leu uma reportagem no The New York Times sobre um experimento do sono realizado alguns anos antes.

A pesquisa foi conduzida por Thomas Wehr, cientista do sono do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, e envolveu 15 homens.

Depois de uma semana inicial de observação dos seus padrões de sono normais, eles foram mantidos sem iluminação artificial à noite para reduzir suas horas de "luz do dia" — seja ela natural ou elétrica — das 16 horas habituais para apenas 10.

No restante do tempo, eles foram confinados em um quarto sem luz nem janelas e totalmente imersos na escuridão envolvente. Eles não podiam ouvir música nem se exercitar — e foram induzidos ao repouso e ao sono.

Imagem de pessoas dormindo e anjos voando

Crédito,Alamy

Legenda da foto,O historiador Roger Ekirch se pergunta se hoje as pessoas conseguem se lembrar menos de seus sonhos que os nossos ancestrais porque agora é menos comum acordar no meio da noite

No início do experimento, todos os homens tinham hábitos noturnos normais — eles dormiam em um turno contínuo que durava do final da noite até a manhã. Mas algo incrível aconteceu em seguida.

Depois de quatro semanas de dias com 10 horas, os padrões de sono dos participantes haviam se transformado. Eles não dormiam mais em um único período, mas em duas metades, aproximadamente com a mesma duração. As duas partes eram separadas por um período de uma a três horas que eles passavam acordados.

Medições do hormônio do sono — a melatonina — demonstraram que seus ritmos circadianos também haviam se ajustado, o que demonstra que seu sono foi alterado em nível biológico.

Wehr havia reinventado o sono bifásico. "Depois do meu casamento e do nascimento dos meus filhos, [ler sobre o experimento] foi provavelmente o momento mais emocionante da minha vida", relembra Ekirch.

Quando ele escreveu para Wehr explicando a extraordinária coincidência entre o estudo científico e a sua pesquisa histórica, "acho que posso afirmar que ele ficou tão radiante quanto eu", afirma.

Mais recentemente, uma pesquisa de David Samson, o diretor do laboratório do sono da Universidade de Toronto, confirmou essas descobertas — mas com uma fascinante reviravolta.

Em 2015, Samson recrutou voluntários locais da remota comunidade de Manadena, no nordeste de Madagascar, para um estudo em conjunto com colaboradores de diversas outras universidades.

O local é um grande vilarejo ao lado de um parque nacional. Não há infraestrutura elétrica, de forma que as noites locais são quase tão escuras quanto eram milênios atrás.

Pediu-se aos participantes, em sua maioria, agricultores, que usassem um "actímetro" — um sofisticado dispositivo sensor de atividade que pode ser usado para rastrear ciclos de sono — por 10 dias, para verificar seus padrões de sono.

"Descobrimos que nas pessoas havia um período de atividade logo após a meia-noite até cerca de 1h a 1h30 da manhã", afirma Samson, "a atividade era reduzida em seguida até dormirem e permanecerem inativos, até acordarem, às seis horas, o que normalmente coincide com o nascer do sol".

Ou seja, o sono bifásico nunca desapareceu completamente — ele sobrevive até hoje nos bolsões mais distantes do mundo.

Nova pressão social

Coletivamente, essa pesquisa também forneceu a Ekirch a explicação que ele desejava sobre o motivo que levou a maior parte da humanidade a abandonar o sistema de dois períodos de sono a partir do início do século 19.

Como ocorreu com outras mudanças recentes do nosso comportamento, como a dependência do relógio, a resposta estava na Revolução Industrial.

Ilustração de um quarto de elite, com cama de madeira com quatro pilares e cortinas

Crédito,Alamy

Legenda da foto,No século 17, as elites ricas normalmente dormiam em camas de madeira com quatro pilares e cortinas, para aquecer as pessoas e afastar os olhares curiosos dos visitantes

"A iluminação artificial tornou-se mais presente e sua potência aumentou — primeiro, foi [a iluminação] a gás, introduzida pela primeira vez em Londres", explica Ekirch, "e depois, claro, a iluminação elétrica, mais para o final do século. Além de alterar o ritmo circadiano das pessoas, a iluminação artificial também permitiu naturalmente que as pessoas ficassem acordadas até mais tarde."

Mas, embora as pessoas não fossem mais para a cama às 21 horas, elas ainda precisavam acordar no mesmo horário pela manhã — o que prejudicava o seu repouso. Ekirch acredita que isso tornou seu sono mais profundo, porque era reduzido.

Além de alterar os ritmos circadianos da população, a iluminação artificial prolongou o primeiro sono e reduziu o segundo.

"E consegui rastrear [essas alterações], quase a cada década, ao longo do século 19", afirma Ekirch.

Curiosamente, o estudo de Samson em Madagascar envolveu uma segunda parte — na qual a metade dos participantes recebeu luzes artificiais por uma semana, para ver se elas causavam alguma diferença.

E, neste caso, os pesquisadores concluíram que não havia impacto sobre os seus padrões de sono segmentados.

Mas eles indicam que uma semana pode não oferecer tempo suficiente para que as luzes artificiais causem mudanças importantes — de forma que o mistério continua.

Mesmo que a iluminação artificial não seja a única causa, no final do século 20, a divisão entre dois períodos de sono havia desaparecido por completo. A Revolução Industrial não havia mudado apenas a nossa tecnologia, mas também a nossa biologia.

Nova ansiedade

Um efeito colateral importante da mudança dos hábitos de sono de grande parte da humanidade foi uma mudança de comportamento. Por um lado, começamos rapidamente a ridicularizar as pessoas que dormem demais e desenvolvemos preocupação com a relação entre acordar cedo e a produtividade.

Mas, para Ekirch, "o aspecto mais gratificante de tudo isso são as pessoas que sofrem de insônia no meio da noite".

Ele explica que nossos padrões de sono agora estão tão alterados que ficar acordado no meio da noite pode nos causar pânico.

"Não quero diminuir a importância disso — eu mesmo, na verdade, sofro de distúrbios do sono e tomo medicamentos para isso."

Mas, quando as pessoas aprendem que esse padrão pode ter sido totalmente normal por milênios, ele percebe que isso reduz um pouco a ansiedade.

Mas, antes que a pesquisa de Ekirch gere uma derivação da dieta paleolítica e as pessoas comecem a jogar suas lâmpadas fora — ou, pior, dividam artificialmente seu sono em dois com despertadores —, ele se empenha em ressaltar que o abandono do sistema de sono em dois períodos não significa que a qualidade do nosso sono hoje em dia seja inferior.

Apesar das notícias quase constantes sobre a grande incidência de distúrbios do sono, Ekirch já argumentou que, em alguns aspectos, o século 21 é a era de ouro do sono — um período em que a maioria de nós não precisa mais se preocupar em ser assassinado na cama, congelar até a morte ou remover piolhos, podendo dormir sem dores, sem a ameaça de incêndios e sem estranhos deitados ao nosso lado.

Em resumo, o sono em um único período pode não ser "natural", da mesma forma que belos colchões ergonômicos e a higiene moderna também não o são.

"Ou seja, não existe retorno porque as condições mudaram", afirma Ekirch.

Nós podemos estar perdendo a oportunidade de ter conversas confidenciais na cama no meio da noite, sonhos psicodélicos e revelações filosóficas noturnas — mas, pelo menos, não acordamos cobertos de picadas irritantes.

Esta reportagem foi publicada originalmente em 29 de janeiro de 2022.

** A imagem do Sonho dos Magos foi usada com permissão da Biblioteca Britânica. Ela faz parte do seu Catálogo de Manuscritos Iluminados.