SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

domingo, 7 de dezembro de 2025

Os tesouros da maior biblioteca de mentiras do mundo

 

Sala de Constantino, uma das quatro Estâncias de Rafael no Palácio do Vaticano

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Pintura de Rafael no Palácio do Vaticano retrata a Doação de Constantino, um dos documentos falsos mais famosos.
    • Author,Dalia Ventura
    • Role,BBC News Mundo

"Conte-me uma mentira", pedi a Earle Havens assim que começamos nossa conversa.

Ele ficou incomodado, mas não porque se sentisse insultado. Afinal, ele é um reconhecido especialista em falácias.

Não só ele dá aulas sobre o tema na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, como também, na qualidade de curador de livros e manuscritos raros do Centro Stern para a História do Livro da universidade, ele supervisiona a Bibliotheca Fictiva de Falsificações Literárias e Históricas.

A biblioteca é uma extensa, excêntrica e excepcional coleção de enganos, falsificações e fraudes escritas que acompanharam nossa história cultural, desde relatos mentirosos de viagens da Grécia Antiga até extraterrestres maias inventados nos anos 1960.

A razão do desconforto de Havens não era por pedir que ele me contasse mentiras, mas sim por pedir apenas uma: "É como me perguntar qual é o meu filho favorito!".

Mas, claro, não era só uma, era uma para começar.

Que tal a dos olhos de testemunhas da queda de Troia?

"Ah, sim, essa é muito antiga, de Dictis Cretense e Dares Frígio."

Capa e primeira página de Historia belli Troiana, aparentemente a primeira edição conjunta dos supostos relatos de testemunhas oculares da queda de Troia, comprovadamente não anteriores ao século 4 ou 5 d.C. - ou seja, bem depois do acontecimento

Crédito,Bibliotheca Fictiva

Legenda da foto,Historia belli Troiana, conjunto dos supostos relatos de testemunhas oculares da queda de Troia, são do século 4 ou 5 d.C. - ou seja, bem depois do conflito que teria acontecido 1200 anos antes de Cristo

"O problema era que, por muito tempo, tudo o que se sabia sobre a batalha com Troia era o que Homero contava, e as pessoas queriam saber mais sobre como foi e o que aconteceu com aquelas pessoas que de repente desapareciam do poema.

"Houve coisas que Homero omitiu. Então, existe esse desejo, esse impulso humano de preencher as lacunas."

Isso é algo, acrescenta Havens, que também foi feito para preencher vazios deixados na Bíblia, "em particular com o Novo Testamento".

Coisas que a Bíblia não dizia

Pule Whatsapp! e continue lendo
BBC Brasil no WhatsAp
No WhatsApp

Agora você pode receber as notícias da BBC News Brasil no seu celular.

Clique para se inscrever

Fim do Whatsapp!

Uma das coisas que o Novo Testamento não conta é como era Jesus Cristo fisicamente.

"Na Idade Média, decidiram remediar isso criando uma carta falsa de um cônsul romano, governador da Judeia, Públio Lêntulo, ao Senado de Roma, descrevendo Jesus."

"É de estatura alta, mas sem excesso; garboso; (...) seus cabelos são da cor de avelã madura e lisos, ou seja, retos, quase até as orelhas, mas a partir destas um pouco encaracolados, (...) e soltos partidos ao meio da cabeça, segundo o costume dos nazarenos."

"A testa é plana e muito serena, sem a menor ruga no rosto, agraciada por um agradável rubor. Em seu nariz e boca não há imperfeição alguma."

"Tem a barba cheia, mas não longa, (...) os olhos cinzentos...".

Havens lembra que foi "dessa descrição em uma falsificação medieval que provêm incontáveis representações de Jesus, e há mais de 250 manuscritos medievais e renascentistas que possuem cópias manuscritas dessa carta".

Outra dessas lacunas tem a ver com o dia de descanso, comenta o especialista.

"Como se explica que, quando os apóstolos, que eram judeus, se converteram ao cristianismo, de repente o dia de descanso não era o sábado, mas o domingo?

"Pois com uma carta que Jesus decidiu enviar do céu... brilhante!"

Página com texto da "carta celestial" e imagem de Jesus Cristo

Crédito,Bibliotheca Fictiva

Legenda da foto,Uma cópia da carta celestial, "escrita por Nosso Bendito Senhor e Salvador Jesus Cristo (...) Transmitida da Cidade Santa por um judeu convertido" e "assinada pelo Anjo Gabriel"

"Ele a colocou debaixo de uma rocha com uma pequena inscrição que essencialmente dizia: Levante-me."

"Todos os que passavam por esta rocha na Terra Santa tentavam levantá-la em vão, até que um menino livre de pecado conseguiu."

A celestial carta claramente diz: Deves terminar a tua labuta todos os sábados à tarde, às 6 em ponto, hora em que se fazem as preparações para o dia de descanso.

Havens conta que "é, além disso, a primeira corrente de carta que conheço na história do mundo, pois diz que quem a reproduzir será abençoado e livre de tempestades e doenças, mas quem a destruir será condenado e atormentado por demônios".

Entusiasmado, ele já nos havia contado três dos milhares de exemplos que guarda em sua memória.

"Adoro falar sobre este assunto, porque posso falar sobre algo que aconteceu há 3.000 anos ou há 400 anos, e posso falar sobre algo que aconteceu ontem."

Com a Bibliotheca Fictiva, "confirmamos que estivemos marinando em falsidades desde a origem da cultura. Isso não é apenas um resultado distópico da tecnologia."

A Universidade Johns Hopkins adquiriu a coleção em 2011 e, naquela época, "o termo 'notícias falsas' nem sequer era conhecido, e tive que explicar ao decano das bibliotecas por que precisávamos gastar uma enorme quantidade de dinheiro em um monte de coisas falsas".

Os porquês

Convencer a universidade a investir em várias centenas de manuscritos, cartas, poemas, iluminuras, documentos, anotações que afirmavam ser o que não eram foi um desafio.

"A principal coisa que eu disse, e mantenho hoje, foi que somos uma instituição de pesquisa que busca a verdade, e a melhor maneira de entender o que é [a verdade] não é apenas olhando para coisas que são absolutamente reais, mas também compreendendo aquelas que não são: como as pessoas as concebem, como essas ideias são absorvidas pela cultura, como podem até moldar nossas ideias, nossas expectativas, gerar preconceitos e nos guiar em nossas vidas.

"Também salientei que todos nós temos nossos preconceitos; ninguém é completamente objetivo. Então, por que não ter uma coleção de pesquisa que nos ensine sobre tudo isso e com a qual possamos ensinar?"

Imagem de personagens medievais com flores

Crédito,Bibliotheca Fictiva/Jstor

Legenda da foto,A Sibila Tiburtina e o imperador Augusto em uma das obras do "falsificador espanhol", que no século 19 pintava sobre folhas de velino ou pergaminho de livros medievais autênticos

Os donos da peculiar biblioteca eram Arthur e Janet Freeman, que vinham colecionando mentiras fascinantes desde 1961, quando Arthur estudava teatro elisabetano e se deparou com John Payne Collier, um escritor e pesquisador do século 19.

Collier era uma combinação venenosa de duas coisas: um respeitado erudito e editor de William Shakespeare e um prolífico e descarado falsificador literário.

Desde então, e durante 50 anos, os Freeman se dedicaram a adicionar fraudes à sua coleção, mas chegou o momento em que quiseram que pertencesse a uma biblioteca de pesquisa.

Até então, já tinham joias como poesia supostamente escrita por Martinho Lutero, que não se destacou precisamente por ser poeta, e relatos da Papisa Joana, uma mulher muito culta do século 9 que, disfarçada de homem, foi eleita Papa, apenas para ser descoberta quando deu à luz repentinamente no meio de uma procissão em Roma.

Esse mito só foi firmemente desacreditado no século 17.

Entre as falsificações, destaca Havens, "o documento mais famoso é provavelmente a Doação de Constantino, no qual o imperador Constantino (285-337 d.C.) doava vastos territórios do Império Romano ao Papa Silvestre 1º."

"No Palácio do Vaticano, conserva-se um afresco que a representa como um fato real."

O documento "foi usado para justificar as guerras nas quais César Bórgia e outros tentaram se apoderar de partes da Romanha na Itália, e para engrandecer a riqueza e o poder do Papa."

No entanto, não havia sido criado no século 3, mas sim no 8.

Isso só foi demonstrado no século 15, quando "um brilhante erudito chamado Lorenzo Valla desacreditou totalmente o texto por muitos motivos, mas sobretudo porque utilizava palavras que não existiam na época em que afirmava ter sido escrito".

E aqui, algo a destacar: a biblioteca não guarda apenas falsidades, mas também os escritos daqueles que as revelaram como tais.

Esse foi outro dos argumentos de que Havens se valeu para convencer a universidade: "Eu disse ao decano que podíamos aprender muito com a forma como as pessoas demoliram coisas falsas."

O que ele aprendeu?

O método mentiroso

Para Havens, a Bibliotheca Fictiva é "um registro de uma erudição fabulosa": não só aqueles que refutaram as mentiras, mas também muitos dos falsificadores eram pessoas "inteligentes, criativas e até engenhosas".

Panfleto antigo

Crédito,Bibliotheca Fictiva

Legenda da foto,Um exemplar de 1610 de um panfleto anticatólico sobre uma suposta conspiração jesuíta contra o rei Jaime 1º, no qual William Henry Ireland, um falsificador de documentos e obras de William Shakespeare, fez anotações "assinadas" pelo famoso bardo

"À medida que se estuda esta coleção, percebe-se que certos aspectos se repetem, como se os mentirosos aprendessem uns com os outros", diz.

"Um, por exemplo, é a economia."

"Se você vai criar uma mentira, a primeira coisa é gerar interesse e inspirar uma suspensão voluntária da descrença por parte do leitor. Não é necessário que ele acredite que é verdade, você só precisa fazê-lo crer que é possível, nem sequer provável, apenas possível", diz Havens.

"E você não deve dar às pessoas muita informação, porque se acidentalmente der demais, você pode se enforcar com sua própria corda."

"Outro truque é encontrar outra voz ou outra figura que ateste sua afirmação, e incluí-los em sua obra falsa.

"Assim, você vai notando padrões, e também distintas categorias de falácias e notícias falsas", assinala o especialista.

Uma dessas categorias é a que Havens chama de "mitologia patriótica".

"Vimos um pouco disso em todo o mundo e ao longo da história."

Um exemplo ocorreu no Renascimento, quando os italianos eram os reis, mas, com o ressurgimento da cultura greco-romana, havia algo que os incomodava: o fato de terem chegado muito depois dos gregos.

"Existia a ideia de que a cultura mais antiga era a mais sofisticada, influente e com mais autoridade."

O frade dominicano Giovanni Nanni, vulgo Annius de Viterbo (1437-1502), "decidiu 'descobrir' uma série de textos antigos" que corrigiam a história.

Suas fraudes foram numerosas, variadas e, em alguns casos, extremamente elaboradas, assinala a Universidade de Oxford.

Em uma ocasião, organizou uma escavação arqueológica na qual desenterrou, para espanto dos presentes, uma fantástica coleção de estátuas mitológicas, cada peça colocada com esmero para alcançar um efeito dramático.

Tudo para "demonstrar que os italianos possuíam a linhagem mais antiga, e não 'os gregos mentirosos, que se achavam inventores de tudo'", conta Havens.

Páginas da saga

Crédito,Bibliotheca Fictiva

Legenda da foto,Não apenas os italianos: esta saga medieval apócrifa narra a história inventada de Hjálmar e Hramer, criada por Lucas Halpap e usada pelo pseudohistoriador Carl Lund para conectar os suecos aos antigos gregos

Sua obra mais importante, o Antiquitatum Variarum, publicada pela primeira vez em 1498, e com grande sucesso editorial nos séculos 16 e 17, contém o que ele afirmava serem textos de autores gregos e latinos... nenhum autêntico.

No entanto, a obra "teve uma enorme influência no pensamento dos europeus entre 1498 e aproximadamente 1750" (Walter Stephens, 1979), e "perverteu as primeiras histórias de todos os países da Europa" (Anthony Grafton, 1990).

Do claro ao escuro

Desde que Johns Hopkins adquiriu a Bibliotheca Fictiva, "com quase 2.000 objetos, fizemos centenas de adições adicionais, tornando-a uma 'biblioteca viva'", conta Havens.

Há desde mentiras leves, como a de um romance que talvez você conheça, cujo título completo é:

"A vida e incríveis aventuras de Robinson Crusoé, de York, marinheiro, que viveu vinte e oito anos completamente sozinho numa ilha desabitada nas costas da América, perto da foz do grande rio Orinoco; tendo sido levado à costa após um naufrágio, no qual todos os homens morreram, menos ele. Com uma explicação de como, no final, ele foi incomumente libertado por piratas. Escrito por ele mesmo."Essas últimas 4 palavras geraram um debate sobre se a obra deveria fazer parte da biblioteca, pois é obra do escritor Daniel Defoe.

Para Havens, "não passou de uma afetação literária".

Com as histórias do Barão de Munchausen, em contraste, não houve discussão, pois são baseadas em uma pessoa real, e suas ridículas aventuras foram apresentadas como se fossem autobiográficas em vez de uma obra de ficção de Rudolph Erich Raspe.

Mas ainda estamos nos tons de branco, e quando se trata de mentiras há toda uma gama de cinzas, até chegar a algumas perigosamente escuras.

"Existem alguns enganos muito perniciosos", diz.

"Provavelmente o mais difícil de tratar é o Protocolos dos Sábios de Sião, essencialmente um documento de teoria da conspiração profundamente antissemita que afirmava que os judeus estavam tentando dominar o mundo."

"Foi usado pelos nazistas para justificar o genocídio e continua sendo muito relevante hoje em dia", afirma.

"Esse é um exemplo de um engano horrível, realmente maligno em todos os sentidos."

Desde que Johns Hopkins adquiriu a coleção, Havens e outros professores têm usado seus milhares de exemplos para ensinar aos estudantes sobre alfabetização midiática e desinformação.

Eles ajudam a aprender a detectar pistas e a ser mais cético e mais crítico com tudo o que se cruza em seu caminho, mesmo que venha de uma fonte aparentemente confiável.

Mostram que, além de se perguntar se uma mensagem é verdadeira, também vale a pena refletir sobre por que ela chegou às suas redes sociais, o que ela quer incentivar, explorar, reforçar em você, a quem interessa que você consuma essa informação.

"Recentemente, publicamos um catálogo pela Quaritch em Londres e, além disso, todos os títulos estão disponíveis online, então esta é possivelmente a coleção mais documentada e acessível do mundo."

"É absolutamente relevante."

'El Patronato': os reformatórios onde a ditadura Franco internou mulheres para impor valores católicos ultraconservadores

 

Mariona jovem em uma foto em preto e branco. Cabelos longos e escuros, olha para a câmera sorrindo.
Legenda da foto,Mariona jovem em uma foto em preto e branco
    • Author,Linda Pressly
    • Role,Outlook, BBC World Service
    • Author,Esperanza Escribano
    • Role,Outlook, BBC World Service

Aviso – este artigo contém detalhes que alguns leitores podem achar perturbadores.

Marina Freixa sempre desconfiou que havia algo obscuro e não dito na própria família.

Sua mãe cresceu sob a ditadura espanhola, que durou décadas e terminou em 1975, mas pouco falava sobre a infância.

Tudo mudou em uma noite de Natal, há dez anos, quando Marina tinha cerca de 20 anos.

Naquela noite de inverno, sentados à mesa, com uma nuvem de fumaça de cigarro pairando no ar e taças de vinho vazias, a mãe de Marina, Mariona Roca Tort, começou a contar.

Marina Freixa (à direita) e a mãe, Mariona, sentadas à mesa, com um grande vão de janela ao fundo.

Crédito,Els Buits (documentary film)

Legenda da foto,Há alguns anos, Mariona (à esquerda) contou a verdade sobre a adolescência a Marina e aos primos

"Meus pais me denunciaram às autoridades", disse Mariona. "Eles me mandaram para um reformatório quando eu tinha 17 anos."

Esses reformatórios eram instituições que detinham meninas e jovens que se recusavam a seguir os valores católicos do regime franquista: mães solteiras, garotas com namorado, lésbicas. Meninas que haviam sofrido abuso sexual eram presas, como se fossem culpadas pelo próprio abuso. Órfãs e meninas abandonadas também podiam acabar atrás dos muros de um convento.

Marina e as primas ficaram atônitas.

Elas não conseguiam compreender que os avós tivessem decidido internar a própria filha.

Mariona lembra pouco do momento em que contou a história às jovens de sua família e atribui as lacunas ao "tratamento" psiquiátrico imposto no reformatório.

Marina, porém, não esqueceu as revelações. Anos depois, transformou o relato da mãe em documentário.

Mariona é uma sobrevivente do Patronato de Protección a la Mujer (Patronato de Proteção à Mulher, em tradução livre), órgão que, sob a ditadura de Francisco Franco, supervisionou uma rede nacional de instituições residenciais administradas por entidades religiosas. Não há dados precisos sobre quantas instituições participaram nem sobre o número de garotas afetadas.

No dia 20 de novembro completou-se 50 anos da morte de Franco. Desde então, a Espanha avançou nos direitos das mulheres, mas as sobreviventes do Patronato ainda aguardam respostas e agora cobram uma investigação.

Foto em preto e branco de Mariona jovem, com cabelos escuros, olhando para baixo.

Crédito,Family handout

Legenda da foto,Na adolescência, Mariona conheceu pessoas que resistiam à ditadura espanhola
Pule Whatsapp! e continue lendo
BBC Brasil no WhatsAp
No WhatsApp

Agora você pode receber as notícias da BBC News Brasil no seu celular.

Clique para se inscrever

Fim do Whatsapp!

Mariona, a mais velha de nove irmãos, descreve os pais como direitistas e ultracatólicos. Eles eram tão conservadores que não a deixavam usar calças.

Mas, em 1968, ao completar 16 anos, um mundo novo se abriu para ela.

Mariona dava aulas particulares a crianças durante o dia e, à noite, cursava cursos preparatórios para entrar na universidade.

Foi ali que, segundo conta, conheceu pessoas que nunca tinha visto: sindicalistas, esquerdistas e ativistas antifranquistas. Era o ano dos protestos globais contra o autoritarismo e a guerra do Vietnã, marcados por demandas de direitos civis. O espírito de rebeldia era contagioso.

Franco estava no poder havia três décadas. Os partidos políticos eram proibidos, a censura era ampla e os jovens ansiavam por mudança. Logo, Mariona passou a acompanhar os novos amigos em "incursões": alguns bloqueavam ruas, lançavam coquetéis molotov, distribuíam panfletos e se dispersavam quando a polícia chegava.

Em 1º de maio de 1969, uma amiga de Mariona foi presa em uma manifestação em Barcelona. Havia o risco de que a detida entregasse outros nomes à polícia, e Mariona não pôde voltar para casa caso a procurassem. Naquela noite, dormiu no apartamento de uma colega ativista.

Quando voltou para casa no dia seguinte, Mariona se encontrou em uma situação difícil.

Os pais estavam furiosos e passaram a controlar muito mais sua vida.

"Para eles, foi um escândalo, uma mancha na família", afirma. "Depois disso, não me deixavam sair de casa."

No fim daquele verão, Mariona decidiu ir embora e viajou para Menorca (ilha ao leste da Espanha) com amigas da universidade, deixando um bilhete aos pais.

Eles a denunciaram imediatamente às autoridades como menor fugitiva e, quando Mariona estava prestes a embarcar de volta para Barcelona, foi presa.

Foto em preto e branco de Barcelona em 1969, com uma rua, um ônibus passando, várias pessoas atravessando e, ao fundo, a estátua de Colombo.

Crédito,Alamy

Legenda da foto,A fuga de Mariona de Barcelona em 1969 durou pouco

No porto de Barcelona, foi recebida pelos pais.

Eles não a levaram para casa. Em vez disso, a conduziram a um convento. Mariona não recebeu explicação; só lembra da fúria dos pais.

Dias depois, voou para Madri com o pai. Lá, foi levada diretamente a outro convento, parte do sistema do Patronato, ligado ao Ministério da Justiça espanhol.

Ela e as demais internas foram classificadas e separadas em grupos.

Mariona conta que acabou no primeiro andar, reservado às "rebeldes, as consideradas mulheres de má vida".

O Patronato tinha poder para deter qualquer mulher com menos de 25 anos que não se enquadrasse nas normas. Não eram criminosas, mas jovens consideradas necessitadas de "reeducação". Mariona, porém, nunca soube as histórias das outras internas com quem conviveu.

"Não nos deixavam falar. É incrível", diz. "E você se pergunta: como conseguiam?"

As internas só podiam trocar cumprimentos básicos, um mecanismo de controle e uma forma de impedir que as meninas "más" influenciassem as demais.

"O que você não podia era conhecer de verdade outra garota", afirma Mariona. "Porque então nos separavam: mandavam uma de nós para outro dormitório ou até para outra instituição."

As internas só podiam trocar cumprimentos básicos, um mecanismo de controle e uma forma de impedir que as meninas "más" influenciassem as demais.

"O que você não podia era conhecer de verdade outra garota", afirma Mariona. "Porque então nos separavam: mandavam uma de nós para outro dormitório ou até para outra instituição."

Ela estima que havia cerca de cem internas no convento. Dormiam vinte internas por quarto, com uma freira na extremidade e a porta trancada com chave.

A rotina diária era exaustiva: orações, missa, limpeza do convento e, depois, horas em um ateliê costurando roupas para comerciantes locais. Enquanto as meninas costuravam, uma freira lia em voz alta para impedir qualquer conversa.

"Havia doutrinação", lembra Mariona. "Para que você entendesse que tinha se comportado muito mal. E, quando percebesse isso, pediria perdão e se confessaria."

Mariona nunca se confessou.

Diário de Mariona aberto na página de 13 de julho.

Crédito,Marina Freixa

Legenda da foto,No diário, Mariona escreveu: "Meu pai diz que devo escolher entre ter uma vida em família ou sair de casa para sempre"

Depois de cerca de quatro meses, permitiram que ela voltasse a Barcelona para o Natal, mas não podia sair sozinha.

Mariona não lembra como, mas de alguma forma conseguiu fugir. A liberdade, no entanto, durou pouco. Em poucas horas, foi colocada à força em um carro com o pai e um tio e levada de volta a Madri.

"Chegamos ao convento ao anoitecer", lembra. "Eu me recusei a entrar. Me arrastaram escada acima e me sedaram para que entrasse."

Dentro do convento, advertiram as outras jovens para que não falassem com ela, a garota rebelde que tinha ousado fugir. Sentiu-se muito sozinha e, por fim, começou a recusar comida.

A perda drástica de peso levou à internação em uma clínica psiquiátrica. Ali, diz ter recebido duas sessões de eletrochoque, seguidas do que chamavam de "terapia de coma insulínico".

Mariona afirma que recebia injeções de insulina para induzir uma hipoglicemia profunda, um estado semelhante ao coma causado por baixo nível de açúcar no sangue. Acreditava-se que isso poderia reduzir sintomas psicóticos ou esquizofrênicos e, de algum modo, "reiniciar" o cérebro do paciente.

Era uma "terapia" que já deixava de ser usada em muitos países por um motivo simples: podia ser fatal.

Mariona recebia uma injeção de insulina pela manhã. Depois, era tirada do coma e obrigada a comer. Começou a se deteriorar mentalmente.

"Ficava mais confusa a cada dia. Passei a dizer coisas como: 'Causei sofrimento aos meus pais'", conta.

"Entrei num processo de submissão e aceitação."

Ela acredita que o "tratamento" intravenoso forçado com insulina danificou sua memória de forma irreversível.

Com a suspeita de que aquilo estava causando lapsos, começou a escrever um diário. Mais de cinco décadas depois, o caderno de 1971, já amarelado, serviria de base para o documentário feito por Marina sobre a experiência da mãe.

Os médicos acreditavam que o "tratamento" ajudaria Mariona a ganhar peso, mas isso não acontecia. Um dia, o psiquiatra decidiu que seria melhor amarrá-la à cama até que comesse.

O desespero de Mariona se tornou tão intenso que, segundo conta, pensou em tirar a própria vida. O psiquiatra então fixou uma meta de 40 kg. Se atingisse esse peso, prometeram que teria alta da clínica.

Mariona jovem em foto em preto e branco. Ela está em uma estrada cercada por árvores e sorri.

Crédito,Mariona Roca Tort

Legenda da foto,Quando Mariona saiu do Patronato, nunca mais voltou a viver com os pais

Mariona conseguiu. Em 1972, depois de recuperar um pouco as forças, voltou a Barcelona.

Aos 20 anos, Mariona prometeu que não voltaria a viver com os pais.

Eram os últimos anos da ditadura de Franco, que terminaria com sua morte, em 1975.

Mariona passou por vários empregos até construir uma carreira como diretora de TV. Teve filhos, mas a relação com os pais permaneceu distante.

Em algum momento, Mariona perguntou à mãe por que haviam mandado ela para o Patronato. A resposta foi apenas: "Nos equivocamos."

O pai de Mariona tem hoje mais de 90 anos.

"Nós também sofremos muito", disse ele quando a filha perguntou sobre a decisão da família de interná-la em Madri.

Para Marina, conhecer a história da mãe tornou a relação com o avô mais difícil.

"Não posso me obrigar a gostar de alguém que causou tanta dor, que tratou tão mal minha mãe."

O curta documental que Marina produziu sobre a experiência da mãe no Patronato se chama Els Buits — que em catalão significa "os vazios" —, referência às lacunas na memória de Mariona. O filme ganhou prêmios na Espanha e foi indicado a um Prêmio Goya.

Marina Freixa (à direita) e a mãe, Mariona, em uma rua. Ambas vestem roupas escuras, têm cabelo curto e olham para a câmera.

Crédito,Esperanza Escribano

Legenda da foto,Mariona e Marina percorrem cidades exibindo o documentário que, segundo Marina, mostra que as instituições faziam parte de forma "sistemática" da história da Espanha

Cinquenta anos após a morte de Franco, o filme ajudou a impulsionar a reivindicação por reconhecimento legal das mulheres internadas como vítimas da ditadura espanhola.

O ministro da Memória Democrática, Ángel Víctor Torres, afirmou que o governo está disposto a analisar o caso das sobreviventes do Patronato.

Enquanto isso, Marina e Mariona percorrem cidades exibindo o filme em sessões comunitárias.

"As mulheres vêm e contam suas histórias; é como se uma porta para o desconhecido se abrisse, e isso é muito poderoso", diz Marina. "Muita gente pensa que o que aconteceu em sua própria casa foi um caso isolado. Nós tentamos mostrar que essa história não é individual, foi sistemática."

A mãe de Marina, Mariona, ainda duvida às vezes de sua memória.

Mas, acrescenta, "ver tudo refletido no filme dá um peso de verdade à história".