SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Sagrada porque humana. Urgente porque agora. Por Egidio Guerra



Em um mundo que se apresenta como invivível, precário, insustentável, incerto, caótico e por vezes aparentemente irreversível, ergue-se a figura do idealista. Não como um sonhador distante, mas como um ser de ação multifacetado: educador, escritor, executivo, cineasta. Sua vida não é uma carreira, mas um tecido denso de missões entrelaçadas, todas convergindo para um único propósito sagrado: resgatar a ética, a sensibilidade e a justiça social dos escombros da indiferença. 

Sua jornada é um ato contínuo de despertar. Enquanto educador, ele luta para resgatar a missão do saber na universidade e na escola, transformando-as de fábricas de certificados em santuários do pensar crítico e criativo. Sua sala de aula é um laboratório de humanidade, onde se aprende não apenas a interpretar textos, mas a ler o rosto do outro, a decifrar a dor silenciosa. Como escritor, ele brande a palavra como ferramenta de escavação da alma, praticando uma estética da verdade que não embeleza, mas revela. Cada narrativa, cada ensaio, é um convite a voltar a olhar, compreender, sentir e escutar – a vida alheia e a nossa própria, em seu duplo empobrecimento, material e espiritual. 

No mundo corporativo, como executivo, ele se move com a coragem de quem insere ética e justiça social na política das organizações. Rejeita a lógica desumana do lucro a qualquer custo, provando que sustentabilidade e solidariedade podem ser alicerces de um empreendimento viável. E, através das lentes do cineasta, ele captura não imagens, mas pulsações. Seus filmes são espelhos e janelas: refletem nossa cegueira e nos abrem para horizontes de compaixão, plantando as sementes do amanhã agora, com a própria vida. 

Esta vida de ideias e sonhos não é, porém, vivida em uma torre de marfim. É uma luta diária pela sobrevivência, equilibrando-se no fio da navalha entre o dever público e o privado. É o cansaço que não o impede de cuidar dos pais que envelhecem, de ler uma história para o filho ao final do dia. É a fé, não dogmática, mas visceral – fé em Deus e no amor puro e sincero – que irriga sua resistência, lembrando-o de que a verdadeira revolução começa no microcosmo do lar, no gesto cotidiano de cuidado. 

A história nos oferece faróis que iluminam este caminho multifacetado. Figuras como Maha Ghosananda, o "Gandhi do Camboja", que foi monge budista, educador da paz e líder político, plantando a semente do perdão em um solo arrasado pela guerra. Como Chinua Achebe, escritor, professor e crítico social, que usou a literatura para descolonizar mentes e reescrever a narrativa de um continente. Como Lina Bo Bardi, arquiteta, editora, curadora e educadora, que sonhou e construiu espaços de democracia e encontro. Como Ken Loach, cineasta militante, cuja obra é um longo e sensível panfleto em defesa da dignidade dos invisíveis. Eles, em seus múltiplos papéis, lideraram, educaram, empreenderam, escreveram, filmaram, sonharam e amaram. Eles não esperaram por condições ideais; criaram novos caminhos e resgataram fragmentos de liberdade, igualdade e solidariedade a partir do caos que os cercava. 

A vida do idealista é, portanto, um verbo no presente contínuo. É educar escrevendo, liderar filmando, empreender amando. É uma recusa radical à fragmentação do ser e ao empobrecimento do espírito. Ele sabe que o mundo insustentável só será transformado por aqueles que ousam sustentar, em si mesmos, a integridade entre o pensar, o dizer e o agir. Sua batalha mais íntima e mais épica é reconectar o que o mundo separou: o conhecimento à compaixão, o poder à justiça, a arte à vida, o trabalho ao amor. 

No fim, sua biografia não será um currículo, mas um testemunho. A prova frágil e inquebrantável de que, mesmo no inverno mais rigoroso, há aqueles que, com as mãos calejadas pela lida diária e o coração aquecido por um sonho teimoso, continuam a plantar. Não para si, mas para um amanhã que já começam a colher em cada olhar que despertam, em cada injustiça que denunciam, em cada gesto de puro e sincero amor que oferecem. Essa é a sua missão. Sagrada porque humana. Urgente porque agora. 

 

 

The Magic Faraway Tree | Official Teaser Trailer


 

E S T H E R | Official Cinematic Trailer (4K)


 

Constelações Benjaminianas: Entre a Nostalgia do Lar e o Invivível do Mundo por Egidio Guerra.




A imagem da constelação proposta por Walter Benjamin há um século, em Origem do drama trágico alemão, permanece um farol crítico para pensarmos a História não como um fluxo contínuo e progressivo, mas como um campo de choques, lampejos e pausas dialéticas. Nessa concepção, passado e presente não se sucedem linearmente, mas se justapõem em configurações momentâneas — constelações — que, quando iluminadas pelo pensador, revelam verdades soterradas e abrem possibilidades de sentido. Essa noção, que irradiou do campo da estética para o cinema, a arquitetura e a curadoria, serve hoje como antídoto contra narrativas totalizantes, especialmente em mundos em crise. Ela nos convida a uma montagem crítica dos fragmentos, na tentativa de evitar ou, paradoxalmente, provocar colapsos necessários nas formas consagradas de apresentar ideias. 



Mas qual é o impulso que move essa busca? Talvez uma profunda nostalgia — não no sentido do mero saudosismo, mas como uma força ambígua que tensiona enraizamento e errância. A nostalgia benjaminiana é a saudade de um lar que talvez nunca tenha existido, uma busca por hospitalidade no cosmos, por uma ordem e uma beleza que nos faça sentir, enfim, "em casa". Essa experiência do lar, contudo, é sempre precária, construída na fratura. 



Podemos rastrear essa dialética em cenas fundadoras. No "retorno impossível" de Ulisses a Ítaca, Homero nos apresenta a imagem literal e radical do enraizamento: o leito nupcial do herói, escavado no tronco de uma oliveira viva, ainda ligado às suas raízes. É a metáfora materializada da identidade como fixidez, da fidelidade que resiste ao tempo. A nostalgia aqui é pelo ponto fixo, pela origem orgânica e imóvel. No polo oposto, Virgílio narra a errância de Eneias, cujo destino é fundar uma nova pátria longe de Troia. Sua jornada culmina não apenas na conquista de um território, mas na exigência de "falar a língua do outro". Nesse gesto, a identidade se desloca do solo para a língua, que se torna o critério primordial de pertencimento e negociação com o mundo. 


É nesse intervalo entre língua-mátria e terra-estrangeira que Hannah Arendt viveu seu exílio. Para ela, a língua alemã materna tornou-se a "verdadeira pátria", um espaço de "raízes aéreas" — conceito que ressoa profundamente com a constelação benjaminiana. São raízes desterritorializadas, que flutuam no ar do pensamento e da criação, permitindo uma invenção permanente de si e do mundo. O lar, assim, não é um lugar geográfico, mas uma configuração linguística e afetiva que se constela no presente a partir dos fragmentos de um passado perdido. 




Contudo, Benjamin nos alertaria que nem tudo são flores e nostalgia. A constelação também deve iluminar o inviável e o invivível. A distinção entre o que é vivível e o que é invivível estabelece o fundamento urgente para uma prática renovada do cuidado. Ao constelarmos os dilemas do nosso tempo — o encarceramento em massa, os deslocamentos forçados, a toxicidade ambiental, as pandemias — vemos como certas formas de sobrevivência se tornam insustentáveis. Interpretar nossa vida e o mundo, ler os sinais de colapso imanentes à nossa realidade, torna-se o conhecimento mais crucial. A constelação crítica não anseia apenas por um lar, mas diagnostica as casas que se tornaram prisões, os territórios que se tornaram zonas de morte. 





Interpretar esse objeto é praticar a arqueologia constelar benjaminiana. É perceber como a leitura do passado (o tratado obscuro, a sofística) só faz sentido quando iluminada por questões do presente (a relação entre filosofia e linguagem, a crítica à doxografia). A revolução interpretativa proposta não está em descobrir uma "verdade" oculta, mas em reconfigurar a relação entre os elementos — Górgias, a sofística, a linguagem, o ser — numa nova imagem de pensamento. A constelação revela que a filosofia, desde sempre, foi uma disputa pela linguagem, e que recuperar a força da sofística é recuperar uma potência crítica adormecida. 



Portanto, a nostalgia benjaminiana pela ordem e beleza de um lar cósmico é inseparável da errância crítica que desmonta as falsas casas consensuais. Sentimo-nos em casa apenas quando, no lampejo de uma constelação, reconhecemos no passado os fragmentos de um futuro por vir, e assumimos a responsabilidade de, através da interpretação e do cuidado, tornar o mundo mais vivível. O leito de Ulisses está enraizado, mas a fala de Eneias é errante; as raízes aéreas de Arendt flutuam no exílio; o tratado obscuro de Górgias espera, no passado, sua reativação futura. Constelar é esse ato de hospitalidade para com os fragmentos da história, na esperança de, entre colapsos, construir abrigos temporários de sentido em um cosmos permanentemente desarrumado.