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terça-feira, 8 de julho de 2025

Como o Super-Homem nasceu como um rebelde 'socialista violento' e virou o herói americano padrão.

 

Como o Super-Homem nasceu como um rebelde 'socialista violento' e virou o herói americano padrão

Primeiro quadrinho mostra Super-Homem carregando carro

Crédito,Alamy

Legenda da foto,Primeiro quadrinho do Super-Homem foi publicado em 1938
    • Author,Nicholas Barber
    • Role,BBC Future

O novo filme Superman, dirigido por James Gunn, chega aos cinemas brasileiros na quinta-feira (10/7). Mas, desde que os primeiros trailers foram divulgados, fãs de super-heróis têm debatido se o homem de aço interpretado por David Corenswet é fiel ao dos quadrinhos.

Ele está sério demais? "Desconstruído" demais? Ainda deveria usar aquela sunga vermelha por cima da meia-calça azul?

Por trás desses debates, existe um consenso de que alguns elementos do Super-Homem são inegociáveis: ele precisa ser mais rápido que uma bala e mais forte que uma locomotiva. Tem que vir do planeta Krypton e viver em uma cidade chamada Metrópolis. E, claro, se apaixonar por Lois Lane.

Além disso, o Super-Homem tem que ser nobre, íntegro e, talvez, até um pouco careta.

Enquanto personagens como Batman e Wolverine são populares porque quebram as regras, o Super-Homem tem que ser o cara certinho, que cumpre a lei, o típico "bom moço" americano.

Mas nem sempre foi assim.

As primeiras histórias do Super-Homem foram escritas por Jerry Siegel, desenhadas por Joe Shuster e publicadas em 1938 pela revista Action Comics, da DC (ou National Allied, como a empresa era chamada na época). E, naquela versão, ele era um personagem bem mais indisciplinado e, em alguns aspectos, mais moderno que o atual.

Ele era um "Super-Homem truculento que não fazia prisioneiros, que criava sua própria lei e a impunha no soco, que intimidava inimigos com um sorriso maligno e um olhar sombrio", escreve Mark Waid, escritor de quadrinhos e historiador, na introdução de uma coletânea das primeiras edições da Action Comics.

"Ele não era um superpolicial. Ele era um superanarquista."

Se esse Super-Homem rebelde e briguento fosse apresentado hoje, seria celebrado como um dos mais subversivos super-heróis.

"Eu não fazia ideia de que o personagem era assim até eu começar a escrever meu livro", disse Paul S Hirsch, autor de Pulp Empire: A Secret History of Comic Book Imperialism (Império Pulp: a história secreta do imperialismo nos quadrinhos, na tradução livre para o português).

"Fiquei surpreendido quando eu vi aquilo. Ele era, basicamente, um socialista violento."

Ator David Corenswet usando terno preto e gravata borboleta vermelha durante lançamento do filme

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,David Corenswet interpreta o Super-Homem no novo filme Superman que estreia dia 10 de julho no Brasil

As primeiras edições da Action Comics confirmam essa leitura. Quando há algo errado acontecendo, o Super-Homem arromba portas, pendura suspeitos pela janela e ainda faz piadas: "Viu como é fácil esmagar seu relógio com a palma da minha mão? Posso fazer o mesmo com o seu pescoço."

Algumas das pessoas agredidas por esse "fora-da-lei barulhento" são bandidos armados com pistolas, mas geralmente eles são menos glamorosos que um vilão de filme — um agressor doméstico, um superintendente de orfanato cruel com as crianças — e, principalmente, ricos que não precisam roubar bancos.

Tem o dono da mina que economiza em medidas de segurança, o magnata da construção que sabota seus concorrentes, o político que compra um jornal para transformá-lo em máquina de propaganda.

Ou seja, em vez de ser um típico herói americano fantasiado, o Superman de 1938 era um revolucionário de esquerda.

Como Superman surgiu a partir das experiências de seus criadores

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"Eu simplesmente amo essas edições antigas", disse à BBC Matthew K Manning, escritor de Superman: The Ultimate Guide (Super-Homem: O Guia Definitivo, em tradução livre).

"São claramente o trabalho de jovens frustrados com as injustiças do mundo, e com razão. É importante ter em mente que eram dois homens judeus chegando à vida adulta pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial. Havia muita raiva. E, de repente, eles tinham esse personagem que poderia dar voz às suas preocupações e responsabilizar os corruptos."

Siegel e Shuster foram colegas de escola em Cleveland, Ohio, nos EUA. Tendo crescido durante a Grande Depressão, eles definiram o Super-Homem na primeira edição da Action Comics como "um campeão dos oprimidos, jurado a dedicar sua existência para ajudar os necessitados".

"Nós éramos jovens e, se quiséssemos ir ao cinema, tínhamos que vender garrafas de leite, então sentíamos que estávamos bem lá embaixo e podíamos ter empatia pelas pessoas", disse Siegel em Superman: a história completa, escrita por Les Daniels.

"O Superman surgiu dos nossos sentimentos sobre a vida. E é por isso que, quando víamos tantos quadrinhos semelhantes surgindo, nós sentíamos que estavam imitando o formato do Superman, mas algo não estava lá, que era esse sentimento tremendo de compaixão que Joe e eu tínhamos pelos oprimidos."

Não que Siegel e Shuster fossem os únicos profissionais de quadrinhos com essa visão liberal. "A indústria de livros em quadrinhos foi fundada majoritariamente por pessoas impedidas de trabalhar em campos mais 'legítimos' porque eram judeus, imigrantes, pessoas não brancas, mulheres", explica Hirsch à BBC.

"Era um gueto criativo onde várias pessoas muito talentosas acabavam porque não conseguiam um emprego em publicidade na Madison Avenue (em Nova York), e não podiam escrever para a Life Maganize", continua.

"Muitas dessas pessoas eram radicais — ou pelo menos não convencionais — e a DC foi fundada por homens que se encaixavam muito bem nesse perfil: eram imigrantes recentes e tinham simpatias de esquerda por terem crescido na cidade de Nova York naquela época."

Homem segurando uma foto do Superman. Ao lado dele, outro homem usa uma fantasia do Superman

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Superman passou por diversas mudanças ao longo do tempo, mas continua fazendo fãs no mundo todo

Ainda assim, poucos personagens de quadrinhos eram tão militantes quanto o Super-Homem.

Em uma das primeiras edições, ele demole uma sequência de cortiços para forçar as autoridades a construir melhores moradias (uma estratégia arriscada, diga-se de passagem). Em outra, ele enfrenta a indústria do jogo porque ela está levando viciados à falência.

Ele também declara guerra a todos que ele considera responsáveis por mortes no trânsito. Nessa edição, ele aterroriza motoristas imprudentes, sequestra o prefeito da cidade que não aplicou as leis de trânsito, destrói o estoque de um revendedor de carros usados e uma fábrica onde carros defeituosos são montados.

"É porque você usa metais e peças inferiores para obter lucros maiores a custo de vidas humanas", ele avisa ao proprietário.

As campanhas de protesto do Super-Homem eram estritamente legais? Não, mas elas eram divertidas, audaciosamente políticas e turbulentas — e, quase 90 anos depois, se mantêm como um fascinante relato do cotidiano dos Estados Unidos da década de 1930.

Rapidamente, porém, o Super-Homem voltou sua atenção para cientistas loucos e monstros gigantes — e para longe das massas menos privilegiadas de Metrópolis.

Após algumas poucas edições, seus "oponentes eram maiores que a vida, e embora isso rendesse quadrinhos emocionantes, seus dias de cruzadas sociais se tornaram coisa do passado", escreve Mark Waid.

Quadrinho do Super-Homem mostra mulheres o beijando

Crédito,Alamy

Legenda da foto,As histórias do Super-Homem foram se tornando menos sociais e mais focada no relacionamento amoroso e na luta contra vilões fantásticos

Por que ele se tornou um super-herói transformado

Qual foi a criptonita que minou a consciência social do Super-Homem?

Hirsch argumenta que foi um composto de dois elementos. Um deles foi a "pasteurização" que acontece quando as vendas de qualquer propriedade comercial disparam.

"O Super-Homem se torna incrivelmente popular a partir do momento em que eles recebem os números de venda da primeira edição", explica.

"Então, eles rapidamente percebem o que têm em mãos e não querem colocar isso em risco. Jack Liebowitz, presidente da DC, vê que eles podem vender fronhas e pijamas do Super-Homem, mas se o Super-Homem estiver por aí jogando pessoas da janela e ameaçando enrolar barras de ferro em torno do pescoço delas, isso não vai funcionar."

Ao lado daquela história familiar de uma grande estrela se vendendo, "a coisa que encerra a fase radical do Super-Homem é o início da guerra", diz Hirsch.

"Todas as pessoas imigrantes e não brancas que estavam trabalhando nessa indústria queriam ser vistas como patriotas. E isso faz sentido. Era o que você tinha que fazer para se encaixar. E, de forma ainda mais prática, era o que você tinha que fazer para conseguir sua cota de papel [para imprimir as revistas]. Se você estivesse fazendo coisas que incomodassem o governo em 1941, talvez não recebesse o papel."

Outro fator, mais pessoal, foi que Siegel e Shuster perderam o controle de sua criação. A piora da visão de Shuster o forçou a deixar outros artistas a assumirem os desenhos, e o alistamento de Siegel no exército em 1943 reduziu o tempo que ele tinha para trabalhar nos roteiros.

Mas o pior ainda estava por vir.

Tendo vendido os direitos do Superman por US$ 130 em 1938, eles foram tratados pela DC como empregados, em vez de inovadores reverenciados, e, em 1947, eles tentaram — mas falharam — reaver esses direitos na justiça.

Olhando para trás, é até irônico que aquelas primeiras histórias tão divertidas falassem de ricos exploradores se dando mal. Siegel e Shuster bem que precisavam de um defensor dos oprimidos ao lado deles.

David Corenswet como o Superman no novo filme de James Gunn

Crédito,Alamy

Legenda da foto,David Corenswet como o Superman no novo filme de James Gunn

Ainda assim, depois da Segunda Guerra Mundial, o Super-Homem não era o tipo de super-herói que enfrentaria um editor dissimulado. "O Super-Homem evoluiu constantemente com o tempo, o que não significa que foi sempre para melhor", diz Manning.

"Durante a era de McCarthy dos anos 1950, quando os pais estavam ativamente queimando gibis e o Congresso culpava os quadrinhos pela delinquência juvenil, editoras foram forçadas a autorregular seu conteúdo sob o selo da Comics Code Authority. Esse selo apareceria na capa de cada quadrinho aprovado, marcando-o como 'seguro' para crianças", explica.

"Embora já tivesse suavizado um pouco, o Super-Homem se tornou mais uma figura paterna durante esse período, não mais interessado em vilões do mundo real. Em vez disso, ele focou principalmente em alienígenas, seres de outras dimensões, e em frustrar a mais recente tentativa de Lois Lane de descobrir sua identidade secreta."

A evolução do Super-Homem não parou por aí. Em algumas épocas, ele foi um pilar de virtude educadamente conservador, imitado pelos seus companheiros super-heróis da DC como o "grande escoteiro azul", enquanto em outras, segundo Manning, ele "recuperou parte de sua essência original... Como um vigilante com um olhar para a justiça social".

E quanto ao novo filme?

Nós não sabemos ainda que Super-Homem teremos, então políticos corruptos e magnatas da construção devem ficar de olho no céu. É um pássaro! É um avião! É o Superanarquista!"

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