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segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Ivan Jablonka: “O patriarcado nos envenena tanto quanto às mulheres”


 ÁLEX VICENTE

06 DEC 2020 - 17:04 BRST


Ivan Jablonka (Paris, 1973) é um macho beta. “Desde pequeno me sentia incomodado com o modelo de virilidade obrigatório”, diz ele na sala de jantar de sua casa em Paris, no oitavo andar de um edifício antigo no bairro de Belleville. “Eu gostava de coisas de meninas: desenhos animados de meninas, a poesia, as confidências. Aos 16 ou 17 anos, comecei a ser alvo de insultos homofóbicos, apesar de me achar bastante heterossexual”, diz o historiador e sociólogo francês, cuja mulher e as três filhas estão no cômodo ao lado. No final de 2017, o acontecimento do MeToo foi o cataclismo feliz que intensificou as epifanias de ordem privada que ele havia experimentado nas últimas décadas. “Uma série de evoluções afetivas e intelectuais me fez tomar consciência de algo para o qual não tinha palavras: que existiam mil maneiras diferentes de ser um homem”, acrescenta.



O resultado dessa reflexão é Des Hommes Justes: Du Patriarcat Aux Nouvelles Masculinités (homens justos: do patriarcado à novas masculinidades), ensaio sobre a história da dominação patriarcal em que se propõe reinventar a noção de hombridade “para reconciliá-la com os direitos das mulheres e a ambição democrática de nossa sociedade”, afirma o autor, que festeja a recente multiplicação de ensaios sobre a chamada nova masculinidade, oposta ao ideal de virilidade, força e vigor que tem imperado há séculos. Teorizado nos círculos universitários anglo-saxões desde os anos 80, esse contramodelo é tema de incontáveis ensaios à luz do caso Weinstein e seus corolários, sempre sob a suspeita de certo oportunismo. No caso de Jablonka, entretanto, a reflexão vem de longe. A origem deste novo ensaio se encontra em Laëtitia Ou o Fim dos Homens, a bem-sucedida crônica do assassinato e esquartejamento de uma adolescente de 18 anos ocorrido em 2011.


Nas páginas do livro, Jablonka o descrevia como um estudo sobre “o espectro das masculinidades descarriladas do século XXI, tiranias de machos, paternidades deformadas, o patriarcado que nunca morre”. Era um volume sobre “as corrupções viris” que o fez sentir, pela primeira vez, vergonha do próprio gênero. “O subtítulo do livro deixava claro: era uma primeira tentativa de reflexão sobre o masculino, sobre uma masculinidade patológica e perversa. Diante desse modelo criminoso, o que podemos fazer? Eu quis lhe dar uma continuação mais positiva e luminosa”, afirma o autor, que considera afortunada a suposta crise da masculinidade, porque permitirá “quebrar o monólito” e refundar um modelo caduco. “Uma vez diagnosticado o fim dos homens, podemos fazê-los renascer com traços de homens justos. Ainda não se deve jogar os homens no lixo. Há esperança de mudança.”


Se alguém se refere aos tons utópicos de suas ideias, tanto na vida como no livro, Jablonka não leva a mal. “Precisamos de utopias neste mundo triste, realista. As grandes mudanças do século passado surgiram das utopias. As do século 21, como o combate às mudanças climáticas, a reforma do capitalismo e a justiça de gênero, também são assim”, responde. “Os homens justos ainda não existem, porque a estrutura social nos aprisiona. O patriarcado envenena a todos nós, aos homens tanto quanto às mulheres”, acrescenta o autor, que em seu livro propõe uma “redistribuição de gênero “, similar àquela realizada com a riqueza.


Des Hommes Justes é também um tratado sobre a noção de “contramasculinidade”, um contrapoder que permita lutar contra a hipertrofia do masculino. “A experiência do homem branco heterossexual não é universal, não representa a humanidade inteira. O homem deve se colocar no lugar que lhe pertence e ceder espaço e poder aos outros.”


No percurso histórico que Jablonka propõe sobressai uma “ultraminoria” de homens que lutaram pela igualdade. O restante preferiu ficar de fora de um debate residual, mas existente. “Prudência, indiferença, cegueira, desdém, misoginia, medo de trair a ordem do gênero?”, questiona o autor. Com notáveis exceções, como Condorcet na França ou John Stuart Mill na Inglaterra, poucos tomaram partido desta causa. Karl Marx não era proletário, William Garrison não foi escravo e André Gide não trabalhou à força nas plantations congolesas, o que não os impediu de se envolverem na luta de classes, no abolicionismo e no desmantelamento do regime colonial. “Na questão dos direitos das mulheres, a maioria se contentou com o status quo”, observa Jablonka, que faz um chamado por um “4 de agosto de 1789” da igualdade, a data em que a Assembleia Constituinte aboliu o sistema feudal na França. Um aceno à Revolução Francesa que lhe rendeu críticas quando o livro foi publicado na França, onde os revolucionários acabaram guilhotinando Olympe de Gouges e traindo as demais mulheres que aspiravam beneficiar-se do fim dos privilégios.


Outro ataque pontual consistiu em tratá-lo como um desses aliados que se colocam sob os holofotes da mídia até acabar eclipsando as próprias mulheres que queriam defender. Jablonka se defende opondo-se à “biologização do feminismo”. “Trata-se de um pensamento crítico que busca maximizar os direitos das mulheres em um contexto de violência e discriminação. Nada impede que um homem assuma esse combate. O ridículo seria se eu me apresentasse como um herói do feminismo, mas não é o caso: só quero contribuir para redefinir a masculinidade. No mais, sou contra o debate sobre a apropriação: você pode ser egiptólogo sem ter conhecido Cleópatra”, rebate o autor. “O maior risco que os homens correm é ficar calados, desvincular-se do caminho em que a história avança. Hoje a modernidade política é personificada pelas mulheres e os homens estão ficando para trás. Elas não se parecem mais com suas mães. Nós, por outro lado, continuamos nos parecendo com nossos avós.”


Masculinidade dissidente


Um dos aspectos mais interessantes do ensaio é a genealogia histórica que ele propõe para essa masculinidade dissidente. Jablonka se incumbe de buscar modelos alternativos aos hegemônicos e os encontra “nos sub-homens”. No “judeu, no negro e no homossexual”. No homem sem qualificação viril e no homem sofredor. Na cultura ashkenazi anterior à fundação de Israel, que permitia projetar-se na masculinidade “como intelectual e fracote, não como atleta nem como macho”. Nos homens frágeis da Bíblia, no Abraão estéril e no Isaac cego. Nos judeus da era romana, que preferiam filosofar a lutar. Nos primeiros cristãos, que herdaram “aquela fraqueza desejada”, um sinal distintivo que os separava da brutalidade de Roma. E assim por diante até chegar aos trabalhadores sem classe do século XX ou mesmo Charlie Chaplin, seu modelo absoluto: o homem desvirilizado, sem trabalho nem dinheiro, em guerra aberta com a masculinidade dos poderosos. “Nessa atitude há um potencial feminista”, suspeita o escritor.


Toda obsessão costuma esconder uma ferida. Jablonka vem de uma família tradicional, onde o pai trabalhava e a mãe cuidava da casa. “Ao mesmo tempo, essa configuração à moda antiga se via perturbada pelo fato de que meu pai era um órfão do Holocausto, uma figura de fragilidade e vulnerabilidade masculina”, diz ele. “Continuo vivendo entre duas masculinidades: sou branco, burguês e heterossexual, mas também um homem angustiado, um intelectual e um judeu, o que me conecta com modelos masculinos degradados. Quando eu era adolescente, isso me fazia sofrer. Agora acho que foi uma sorte.”


De repente, Jablonka se levanta e vai até a sacada para apontar, entre as vielas que circundam seu modesto edifício, o lugar preciso onde seus avós, judeus poloneses exterminados em Auschswitz, foram presos durante a guerra. Não o diz no livro, embora também não seja necessário: a chave que dá acesso a esta nova masculinidade poderia ser a capacidade de compreender a opressão e a exclusão dos outros porque foi vivida na carne.


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