O que me angustia nas pessoas que usam a inteligência artificial para escrever é que a gente pode escrever tanta coisa, de tantos jeitos. E experimentar. Inclusive, pode colocar nossos medos no texto quando não sabemos por onde começar. O que me angustia ainda mais é que essas ferramentas estão roubando até essas boas angústias que só quem escreve pode viver diante de um texto. A angústia de ainda não saber como seguir. E, ainda assim, seguir. Adoro textos angustiados. A literatura contemporânea que mais me comove vem cheia de “sujeiras” nos textos. Sujeiras humanas. Ou vestígios. Uma escritora latina começa sua história sobre aborto dizendo que o seu namorado ficaria muito feliz com a notícia do filho que ela descobriu carregar na barriga. Depois diz que não, que está mentindo para nós, leitores; que ela nem conhece direito o rapaz, um “lance” que tiveram quando ficou bêbada e transou com o primeiro homem que a desejou. Algo assim, sujo e bom. Esse interlocutor — nós — conversando com a autora é uma sujeira riquíssima para o texto. Então, como é que se começa um texto difícil? Adoro pensar que a primeira palavra do texto difícil pode ser a própria palavra “difícil”. Ou: “Que difícil escrever sobre esse assunto...”, e o assunto vai surgindo por outra via, que para mim é ainda mais forte, mais próxima do leitor, da instabilidade, da incerteza, da insegurança. Mais humano. Coisa que uma inteligência artificial não consegue alcançar. Sinto que a literatura contemporânea está entrando por uma porta restrita aos humanos. É aqui que a gente vai conseguir vencer o medo de perder para as máquinas, num lugar que só nós, pessoas em carne viva, conseguiremos entrar. Mas esse não é o único jeito de sair da trava do medo. Escrever pouco, quando não se tem muito a dizer, também é um jeito; escrever só uma frase, só uma palavra... E olhar a palavra, ver para onde ela quer ir; e seguir por outro caminho, mudar de assunto quando o assunto vira outro. ... Veja: escrever, ao contrário do que algumas pessoas ainda pensam, não é o mesmo que pensar na história. “ eu tenho uma ideia para um livro”, e eu digo rápido: “Então comece a escrever”. Pois ter uma ideia para um livro ou para um texto é diferente de escrever um livro ou um texto. A escrita exige o trabalho da escrita. Que envolve o pensamento, é claro. Mas pensar é diferente de escrever. Escrever uma história é outra história. Quando a gente escreve, é a palavra — sem misticismo ou magia — que dá o rumo da história. “A palavra escrita tem vida própria”, os autores e autoras sempre dizem. Não duvide. Porque a palavra tem forma própria, tem desenho próprio no papel, é outra imagem da que imaginamos na cabeça; ao escrever a palavra, a gente trabalha o corpo para que ela passe a existir no papel, a gente desenha as letras da palavra; e neste momento, a gente pensa em outras coisas, coisas que nascem desse ato de escrever. Aqui acontece a magia, que não é magia. É trabalho. Quero dizer que, quando escrevo a palavra “barco” no papel, me dá vontade de escrever outras palavras. Eu penso nos remos do barco. Tenho essa imagem na cabeça há um tempo, de um barco sem remos. Começo a acreditar que eu sou esse barco. Ou quero ser. Já tentei escrever alguns poemas com essa imagem, mas ainda não saiu. Já falei desse barco em duas turmas de escrita de poesia. Já escrevi algumas prosas com essa imagem. Agora estou escrevendo de novo essa imagem. Ou seja, já saiu, sim. O barco que eu escrevo é um barco diferente do que você vê. De repente o seu barco não é de madeira crua como o meu. É de madeira pintada de branco. Ou nem de madeira ele é. É de metal, tem motor. Essas são as imagens da palavra escrita. Eu escrevo “barco” e você desenha o barco na sua cabeça. ... O que me angustia no uso excessivo das inteligências artificiais para a escrita é que a pessoa deixa de viver essa experiência toda, essa experimentação prazerosa da palavra escrita, em troca de um texto correto, frio, sem sujeiras, sem angústias, sem prazer... ... Escreva sobre seus medos quando estiver com medo de escrever. ... Escrever com medo vai te ajudar a escrever mais. Escreva também suas alegrias. Mas vá devagar. A alegria, às vezes, nos engana. |
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