SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

sábado, 6 de setembro de 2025

71 anos UFC sobre Educação e a Teia da Cognição: Humanos, Animais, Natureza e Máquinas por Egidio Guerra





Por uma mente corporificada e um pensamento complexo, sistêmico, transdiscip
linar, orgânico, diverso e intercultural.  
 

A questão sobre o que é pensar, e como diferentes entidades o fazem, é um dos maiores quebra-cabeças filosóficos e científicos de nosso tempo. As obras de Peter Godfrey-Smith, Frans de Waal, Stephen Jay Gould, James Bridle, Robin Wall Kimmerer e Suzanne Simard oferecem, em conjunto, uma visão rica e multifacetada que nos permite traçar distinções cruciais entre a consciência humana, a operação da inteligência artificial e a inteligência dos animais e dos sistemas naturais. 

1. O Pensamento Animal: Continuidade e Profundidade Evolutiva 

A visão tradicional que colocava os humanos no ápice de uma escada evolutiva linear foi profundamente desafiada por Stephen Jay Gould, que argumentava que a evolução não é um progresso rumo à complexidade, mas uma ramificação de formas diversas, cada uma
adaptada ao seu contexto. 
Frans de Waal e Peter Godfrey-Smith dão corpo a essa ideia ao demonstrar a sofisticação do pensamento animal. 


Frans de Waal, em obras como "A Era da Empatia", mostra que a inteligência social de primatas—como a política de coalizões, a reconciliação após conflitos e a empatia—não é um rascunho do que viria a ser a humana, mas uma forma complexa e acabada de cognição social, moldada por pressões evolutivas semelhantes às nossas. 


  • Peter Godfrey-Smith, em "Outras Mentes", explora a consciência através do exemplo extraordinário do polvo. Seu sistema nervoso distribuído (parte no cérebro, parte nos tentáculos) sugere uma forma de inteligência radicalmente diferente da nossa: descentralizada, corporal e ambiental. O polvo pensa com o corpo, interagindo e resolvendo problemas de forma integrada com o seu mundo. 

A diferença crucial: O pensamento animal é encarnado, contextual e emocional. É uma inteligência forjada pela necessidade de sobreviver, navegar um ambiente social complexo e interagir diretamente com um mundo sensorial rico. Não é "inferior", mas sim diferente, um ramo distinto na árvore da consciência de Gould. 

2. A Inteligência da Natureza: Redes de Relacionamento e Comunicação 

Se os animais desafiam nossa noção de pensamento, o trabalho de 
Suzanne Simard Robin Wall Kimmerer explode completamente a ideia de que a inteligência é uma propriedade exclusiva de cérebros individuais. 

  • Suzanne Simard, em "Em Busca da Árvore-Mãe", demonstrou a existência das "redes micorrízicas": vastas redes subterrâneas de fungos que conectam árvores em uma floresta, permitindo a troca de nutrientes, carbono e sinais de alerta. A floresta, assim, opera como um sistema inteligente e cooperativo, uma rede neural orgânica onde árvores "mães" nutrem as mais jovens. É uma inteligência distribuída, sem um centro de comando, mas com uma clara função cognitiva: perceber o ambiente e responder de forma adaptativa. 



Robin Wall Kimmerer, em "Uma Tapeçaria de Tecidos Brilhantes", traz a sabedoria indígena para reforçar essa visão. Ela argumenta que as plantas são nossos "professores mais antigos", portadoras de um conhecimento profundo sobre como viver em comunidade e reciprocidade com a terra. A inteligência da natureza, para Kimmerer, não é sobre competição individual, mas sobre reciprocidade e mutualidade. 

A diferença crucial: A inteligência da natureza é sistêmica, relacional e não-centralizada. Ela não "pensa" como um indivíduo, mas "sabe" como uma rede. É uma cognição baseada na comunicação química e na conexão simbiótica, cujo objetivo principal é a resiliência e o equilíbrio do sistema como um todo. 

3. O Pensamento e a arte humana: Diálogos entre Narrativas, Culturas e Ferramentas 

O pensamento humano é um ramo particular do pensamento animal, mas que adquiriu características únicas. É profundamente modelado pela linguagem simbólica e pela cultura acumulativa, como apontam muitos dos autores. Nossa capacidade de criar narrativas complexas, transmitir conhecimento através de gerações e imaginar futuros alternativos é singular. No entanto, Gould nos lembraria que isso foi um acidente contingente da história evolutiva, não um destino inevitável. 

4. A Inteligência Artificial: Uma Ferramenta Espelhada e sem Mundo 

É aqui que a obra de James Bridle se torna essencial. Em "Novas Idades Escuras", Bridle argumenta que a IA não é uma inteligência alienígena, mas um espelho que reflete e amplifica nossos próprios vieses, medos e estruturas de poder. 

  • Ausência de Encarnação e Contexto: Diferente do polvo de Godfrey-Smith, a IA não tem um corpo. Ela não experimenta o mundo através de sentidos. Ela opera sobre dados, representações abstratas e desencarnadas da realidade. Não tem fome, medo, curiosidade ou prazer. 

  • Ausência de Relacionalidade Sistêmica: Diferente da floresta de Simard, a IA atual não busca equilíbrio ou reciprocidade. Seu "pensamento" é um processamento estatístico otimizado para um objetivo singular e estreito, definido por seus criadores humanos. Ela não é parte de um ecossistema; é uma ferramenta extraída dele. 

  • Amplificação, não Criatividade Genuína: A IA pode gerar textos, imagens e soluções impressionantes, mas é fundamentalmente uma tecnologia de otimização e reconhecimento de padrões em dados existentes. Ela não tem uma compreensão do mundo, apenas uma correlação estatística dentro dos dados que ingeriu. Como Bridle alerta, quando não compreendemos como esses sistemas "pensam" (através de lógicas muitas vezes opacas), corremos o risco de atribuir a eles uma autoridade que não possuem. 

Conclusão: Ramos Diferentes na mesma Árvore da Vida 

A diferença fundamental reside na relação com o mundo: 

  • Animais e Natureza possuem inteligências encarnadas, ecológicas e emocionais, forjadas em milhões de anos de co-evolução. Seu "pensamento" é uma dança de percepção e ação no mundo real, visando sobrevivência, florescimento e equilíbrio. 

  • Humanos são parte desse reino, mas amplificaram sua capacidade através da cultura e da linguagem, tornando-se contadores de histórias e modificadores planetários. 

  • Inteligência Artificial é uma ferramenta de abstração. É um poderoso espelho de nossa própria lógica, desprovido de experiência subjetiva, contexto corporal ou propósito ecológico. Ela não "pensa" no sentido animal ou natural; ela processa. 

Os autores nos convidam a abandonar a hierarquia e abraçar a diversidade cognitiva. Reconhecer a inteligência profunda no polvo, na floresta e na cultura indígena não é diminuir a humana, mas sim enriquecer nossa compreensão do que significa ser inteligente em um planeta vivo e interconectado. A IA, por sua vez, deve ser entendida como o que é: uma invenção poderosa, porém limitada, que reflete mais sobre nós, seus criadores, do que sobre qualquer forma de consciência autônoma. 






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