SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

domingo, 7 de setembro de 2025

Por Uma Educação de Arquitetos de si mesmo e de suas sociedades por Egidio Guerra

 




A educação de uma pessoa sã, capaz de transformar a si mesma e à sociedade, não é um processo de preenchimento de informações, mas sim de despertar de ferramentas críticas. George Orwell é um arquétipo perfeito desse intelectual. Sim, é quase certo que *1984* não existiria sem sua experiência na Guerra Civil Espanhola, narrada em Lutando na Catalunha. Foi lá que ele testemunhou em primeira mão a violência do totalitarismo, não como uma abstração, mas como uma prática concreta: a perseguição stalinista aos anarquistas e trotskistas do POUM, da qual ele mesmo foi vítima. Ele viu como a linguagem era torcida para servir ao poder ("pacificação", "eliminação de elementos contra-revolucionários"), como a história era reescrita em tempo real e como a lealdade ideológica superava a verdade factual. Essa vivência radicalizou sua compreensão do mecanismo do poder. Ele não teorizou de um gabinete; ele sofreu a política e, ao narrar esse sofrimento, transformou-o em uma arma universal contra a opressão. 

Orwell nos ensina que o pensamento independente nasce do confronto com a realidade crua, da recusa em aceitar as narrativas oficiais e da coragem de contar a própria história. Seu método era a clareza brutal e a honestidade intelectual, usando a arte do romance e do ensaio como veículo. 


Mas como sustentar esse pensamento hoje, quando os mecanismos de controle são mais insidiosos do que os canhões de *1984*? É aqui que Michel Foucault se torna essencial. Se Orwell nos mostrou o que o poder faz, Foucault nos mostrou como ele funciona. Sua "arqueologia dos saberes" e sua crítica às clínicas e ao sistema penal são ferramentas para desmontar os "falsos discursos de saberes e poderes" que você menciona. 

Foucault demonstrou que a loucura, a criminalidade e até a sanidade não são categorias naturais, mas construídas por sistemas de conhecimento (médico, jurídico, penal) que, ao defini-las, também exercem controle sobre elas. A ciência, a tecnologia e a educação podem facilmente se tornar essas "disciplinas" que produzem mentes em série, normalizadas e dóceis. O verdadeiro papel da educação, portanto, não é transmitir um saber morto, mas ensinar a questionar as próprias condições de produção desse saber. Quem se beneficia com essa "verdade"? Que estruturas de poder ela sustenta? A educação foucaultiana é uma educação para a desobediência epistemológica. 

É exatamente esse o poder revolucionário da arte, da ficção científica em particular. Ela opera nesse espaço de questionamento radical. Frank Herbert, em Duna, não nos dá respostas; ele nos dá um espelho distorcido do nosso mundo. A frase "aquele que pode destruir uma coisa tem o controle real sobre ela" é um manifesto de liberdade intelectual. Significa que o verdadeiro poder não está em possuir ou usar, mas na capacidade de negar, de recusar o jogo imposto. É a arma última do crítico e do revolucionário: o poder de dizer "não". 


William Gibson, em Neuromancer, fez o mesmo para a era digital nascente. Ele previu um mundo onde a tecnologia não liberta, mas amplifica as velhas lutas de poder, corporativismo e alienação. O "ciberespaço" não é um paraíso tecnológico; é uma nova fronteira de conflito. Ao fazer isso, a arte destrona os poderosos ao se recusar a aceitar sua narrativa otimista e não-crítica sobre o progresso. Ela expõe as ferramentas de aprisionamento – sejam as redes sociais que commoditizam a atenção e a identidade, ou a inteligência artificial que pode codificar e amplificar vieses e desigualdades existentes. 

Portanto, salvar o pensamento crítico de Orwell e a desconstrução foucaultiana no século XXI requer uma educação que: 


  1. Valorize a Experiência e a Narrativa Pessoal: Como Orwell, deve colocar a experiência vivida em choque com a narrativa dominante. 

  1. Ensine Arqueologia dos Saberes: Como Foucault, deve ensinar a desnaturalizar conceitos, perguntando "por que isso é considerado verdade?" e "que interesse isso serve?". 

  1. Adote a Arte como Ferramenta Crítica: Usar obras como Duna e Neuromancer não como entretenimento, mas como laboratórios para entender as consequências humanas da tecnologia, do poder e da ambição. 

  1. Promova a Capacidade de Destruição Criativa: Ensinar que questionar, criticar e até "destruir" ideias falidas e estruturas opressivas é um ato de criação de algo novo e mais são. 


O verdadeiro papel da educação é produzir não técnicos especializados, mas 
arquitetos de si mesmos e de sua sociedade. É formar indivíduos que, armados com o ceticismo de Orwell, as ferramentas de Foucault e a imaginação radical de Herbert e Gibson, possam não apenas navegar no mundo, mas questioná-lo, desmontá-lo e reimaginá-lo. É a produção em série de mentes que não pensam que é o maior perigo para qualquer sociedade, e a educação crítica, arte independente e o pensamento radical são o antídoto vital. 





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