SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

sábado, 6 de setembro de 2025

A Arte e o Político: Redistribuição, Sobrevivência e Revolução dos Saberes por Egidio Guerra

 


A relação entre arte e política é um dos eixos centrais do pensamento contemporâneo. Jacques Rancière, Georges Didi-Huberman e Robert Darnton, cada um a seu modo, oferecem perspectivas fundamentais para entendermos essa dinâmica, indo muito além da ideia simplista de que arte política é aquela que representa um conteúdo revolucionário. Eles nos mostram que a política da arte reside menos no o quê e mais no como – como ela reorganiza o sensível, como lida com as imagens do passado e como circula e é recebida no tecido social. 


1. Jacques Rancière: A Redistribuição do Sensível 

Para Jacques Rancière, a política e a arte estão intrinsicamente ligadas porque ambas operam no mesmo registro: o da partilha do sensível (le partage du sensible). O "sensível" é aquilo que é visível e audível em uma comunidade, o que pode ser dito e por quem, o que é considerado digno de ser ouvido ou visto. 

  • A Política como Interrupção: A política verdadeira, para Rancière, não é a gestão dos assuntos de Estado, mas o ato de interromper a ordem estabelecida dessa partilha. É quando aqueles que "não contam" – os sem-voz, os invisíveis – reclamam seu lugar no espaço comum, tornando-se visíveis e audíveis. 

  • A Função da Arte: A arte é profundamente política quando participa dessa redistribuição. Ela não é política por transmitir uma "mensagem" política, mas por modificar os quadros sensíveis da experiência. Uma obra de arte política é aquela que rompe com as formas consagradas de representação, que mistura meios e temas "impróprios" (como a vanguarda histórica), e que, ao fazê-lo, torna perceptível o que antes era invisível e faz ouvir como discurso o que antes era apenas percebido como ruído. 

  • Exemplo Prático: Uma instalação sonora que amplifica os sons de uma favela em um museu de arte clássica não "fala" sobre desigualdade; ela realiza uma redistribuição do sensível ao inserir um som considerado "inferior" ou "barulho" em um espaço consagrado ao "silêncio" e à "cultura elevada". 



2. Georges Didi-Huberman: As Imagens Sobreviventes e a Sintomatologia do Tempo 

Georges Didi-Huberman, historiador da arte e filósofo das imagens, aborda a relação através do tempo e da memória. Sua obra é uma luta contra a anestesia histórica e a favor de uma política da montagem e da sobrevivência das imagens. 

  • Sobrevivência e Fantasma: Inspirado por Aby Warburg e Walter Benjamin, Didi-Huberman vê as imagens como sintomas que sobrevivem ao seu tempo, carregando em si feridas e energias não resolvidas do passado. Elas são "fantasmas" que assombram o presente, pedindo para ser olhadas e reinterpretadas. 

  • A Política da Montagem: A tarefa política do artista ou do historiador é, para Didi-Hubermanmontar essas imagens sobreviventes de maneira a criar novas constelações de sentido. Montar imagens de arquivos diferentes (como fotos de campos de concentração com obras de arte clássicas) não é comparar, mas sim criar um choque que rompe a narrativa linear e homogênea da história. É fazer com que o passado irrompa no presente como uma questão urgente. 

  • Exemplo Prático: O filme "Ases da Morte" (2016), de Bill Morrison, que monta imagens de arquivo deterioradas de um naufrágio, não é apenas um documento histórico. A própria materialidade danificada do filme, suas manchas e rasgões, torna-se um sintoma visual do trauma, exigindo um olhar que lide com a ausência, a perda e a fragilidade da memória. 

3. : A História Cultural e as Revoluções da Recepção 

Robert Darnton, um dos principais expoentes da História Cultural, oferece uma perspectiva ground-level, focada na materialidade e na circulação das obras. Sua pergunta não é "o que a arte significa?", mas "o que a arte faz na sociedade?". 

  • A Circulação das Ideias: Em livros como "O Grande Massacre de Gatos" e "Edição e Sedição", Darnton investiga como livros, panfletos, gravuras e canções populares circulavam no século XVIII, criando uma "esfera pública" alternativa que minou os alicerces do Antigo Regime. A política aqui está no circuito de produção, distribuição e consumo de uma obra. 

  • A Recepção como Ato Político: A arte é política porque é apropriada, interpretada e usada por grupos sociais de formas imprevisíveis. Uma canção obscena sobre a corte real pode ser mais revolucionária do que um tratado filosófico, porque é facilmente memorizada, reproduzida e partilhada, criando um sentimento de comunidade e de resistência através do riso e do escárnio. 

  • Exemplo Prático: As gravuras satíricas de "Les trois ordres" na França pré-revolucionária não eram "arte elevada", mas sua ampla circulação e poder de caricaturar a hierarquia social foram instrumentos cruciais para deslegitimar o poder da nobreza e do clero, tornando-o ridículo aos olhos do povo. 



Conclusão: Diálogos e Fricções 

Embora partam de disciplinas e métodos diferentes (a filosofia para Rancière, a história da arte para Didi-Huberman, a história cultural para Darnton), os três autores tecem uma compreensão profunda e multifacetada do binômio arte-política. 

  • Rancière nos dá a estrutura: a política da arte está em sua capacidade de reconfigurar o mundo sensível. 

  • Didi-Huberman nos dá a profundidade temporal: a política da arte está em sua capacidade de montar sobrevivências e sintomas para dialogar criticamente com a história. 

  • Darnton nos dá a materialidade social: a política da arte está em seus circuitos de circulação e nas formas como é usada e interpretada por seu público. 

Juntos, eles demonstram que a arte não é um reflexo passivo da política, mas um campo de batalha ativo onde sentidos são contestados, memórias são reativadas e comunidades são imaginadas e formadas. A verdadeira força política de uma obra de arte pode, portanto, residir tanto em sua forma disruptiva (Rancière), quanto em sua relação sintomática com o passado (Didi-Huberman), quanto em seu poder de circulação e de criar um riso subversivo nas ruas (Darnton). 

 




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