A literatura já antevia essas mecânicas. Em Noventa e Três, Victor Hugo explora os dilemas éticos da Revolução Francesa, mostrando como o fanatismo ideológico – mesmo em nome de uma causa nobre como a liberdade – pode levar a atos terríveis. O personagem Cimourdain, com sua rigidez moral absoluta, personifica como a crença cega em um ideal futuro justifica a crueldade no presente. O lema "fazer o mal para fazer o bem" torna-se a justificação para a guilhotina e o terror.
No ensaio O Grupo e o Mal, Contardo Calligaris investiga precisamente como indivíduos comuns são capazes de cometer atrocidades quando inseridos em um grupo. A identidade coletiva oferece um escudo à consciência individual: a responsabilidade é diluída, a crítica é silenciada pelo consenso, e o ato cruel torna-se um ritual de pertença. O indivíduo deixa de ser "João" para se tornar um "soldado", um "militante", um "justiceiro", "um nazista" abdicando de sua moral pessoal em prol da do grupo.
Esta lógica foi levada ao seu extremo mais horrível no Holocausto. O genocídio industrializado de judeus, ciganos, homossexuais e outros não foi apenas um ato de ódio, mas um projeto burocrático e tecnocrático meticuloso. Tal como na parábola kafkiana, onde o indivíduo é esmagado por um sistema incompreensível e opressivo (O Processo), as vítimas do nazismo foram perseguidas por uma máquina estatal impessoal, onde cada funcionário – contabilizando bens, elaborando leis racistas, conduzindo comboios – era uma engrenagem necessária para o extermínio. Essa frieza tecnocrática ecoa hoje quando executivos de grandes bancos ou corporações, em nome do lucro e do acionista, tomam decisões que levam à miséria, ao desemprego em massa ou a desastres ambientais, vendo não pessoas, mas números numa planilha.
Os mesmos mecanismos de desumanização estão presentes nos pogroms (perseguições violentas apoiadas pelo Estado), no genocídio em Ruanda – onde o ódio racial foi incendiado por propaganda nos média, transformando vizinhos em carrascos –, e no conflito na Palestina, onde ciclos intermináveis de violência e ocupação são justificados por narrativas políticas e religiosas que negam a humanidade do "outro". O crime organizado, especialmente o narcotráfico, opera sob a mesma lógica: a busca pelo poder e dinheiro a qualquer custo, onde a vida humana é uma moeda de troca e a lealdade ao grupo justifica a barbárie contra os "inimigos".
Superando a Engrenagem: Caminhos para o Século XXI
Perceber que o mal não é um monstro externo, mas uma potencialidade humana que floresce em condições sociais específicas, é o primeiro passo para combatê-lo. A superação desses desafios exige uma resposta multifacetada e constante:
- Educação para a Empatia e o Pensamento Crítico: A arma mais poderosa contra a desumanização é a educação que humaniza. Um ensino que privilegie a história, a filosofia, a literatura e as artes é fundamental para desenvolver a capacidade de se colocar no lugar do outro e questionar narrativas únicas e simplistas. Ensinar sobre o Holocausto, Ruanda e outros genocídios não é para cultivar a culpa, mas a vigilância. 
- Ética como Fundamento: É preciso resgatar uma ética que coloque a dignidade humana acima de qualquer ideologia, lucro ou poder. Isso deve ser cultivado nas famílias, nas escolas e, crucialmente, nas empresas. A responsabilidade social corporativa não pode ser um mero marketing, mas um pilar da governança. 
- Fortaleza das Instituições Democráticas e do Estado de Direito: A democracia, com sua separação de poderes, imprensa livre e eleições livres, é o sistema mais capaz de impedir a concentração de poder que leva ao abuso. Leis internacionais robustas e tribunais como o Tribunal Penal Internacional são essenciais para combater a impunidade e responsabilizar até os mais poderosos. 
- Memória e Verdade: Uma sociedade que esquece seu passado sombrio está condenada a repeti-lo. Museus, memoriais e comissões da verdade são antídotos vitais contra a negação e a revisionismo histórico. 
- Cultura de Paz e Diálogo: É necessário fomentar espaços de diálogo intercultural e inter-religioso, onde as diferenças não sejam vistas como ameaças, mas como fontes de riqueza. A paz não é apenas a ausência de guerra, mas a presença da justiça e do respeito. 
O século XXI, com seus profundos desafios de desigualdade, mudança climática e polarização, é um terreno fértil para discursos de ódio e soluções violentas. Cabe a nós, coletivamente, escolher um caminho diferente. Não é um caminho fácil ou ingênuo, mas uma luta diária para fortalecer os laços que nos unem como humanidade e para vigiar constantemente contra a sedutora e perversa atração de encontrar um inimigo para culpar por todos os nossos males. A lição final é que o mal banal triunfa quando bons homens e mulheres nada fazem; a esperança reside na coragem de sempre fazer alguma coisa. É hora dos bobos da corte de Shakespeare revelar nas almas vis , o que há de podre nas cortes e a produção sistemática do mal e mentiras como arma de guerras.
 
 
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