SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Cartografia Social, Crítica e Participativa: A Ciência, Técnica e Arte de Mapear Poderes e Resistências como Educação e Cidadania por Egidio Guerra


A cartografia, tradicionalmente entendida como a ciência e técnica de fazer mapas, foi durante séculos um instrumento de poder hegemônico. Estados, impérios e corporações utilizaram-na para delimitar fronteiras, registrar propriedades, extrair recursos e impor uma visão única e oficial do mundo. No entanto, a partir da segunda metade do século XX, emerge uma contracorrente potente: a cartografia social, crítica e participativa. Esta não é apenas uma subárea da geografia, mas um campo transdisciplinar que se revela simultaneamente como ciência (investiga relações socioespaciais), técnica (oferece metodologias de produção) e arte (expressa subjetividades e narrativas visuais). Seu entendimento mais profundo é iluminado pelos princípios da semiótica – a ciência dos signos e significados – que nos permite decifrar o mapa como um artefato carregado de intencionalidade


O Estatuto Semiótico do Mapa: Muito Além da Representação

Sob a ótica semiótica, um mapa nunca é uma representação neutra ou objetiva da realidade. Ele é um signo complexo, um texto que constrói e comunica uma visão de mundo. Seu estatuto é o de uma narrativa visual codificada.

  • Forma (Expressão): A forma do mapa – suas cores, símbolos, escalas, hierarquias visuais e o que é incluído ou excluído – não é arbitrária. Ela é um sistema de signos que reflete e reforça relações de poder. Um rio pode ser representado como uma linha azul (recurso hídrico) ou como uma entidade sagrada (o que demandaria símbolos completamente diferentes). A escolha da forma é, em si, um ato político.

  • Função (Conteúdo): A função clássica do mapa hegemônico é de instrução social e de controle. Ele instrui onde se pode ou não passar, o que pertence a quem, e qual visão do território é considerada "verdadeira". A cartografia crítica inverte essa lógica. Sua função é questionar, desnaturalizar e contrapor. Ela se torna um instrumento para instruir sobre direitos, memórias apagadas, conflitos socioambientais e usos tradicionais do território, funcionando como uma "arma" na luta por reconhecimento e justiça espacial.


Desconstruindo e Aprofundando os Conceitos Espaciais

A cartografia crítica opera ressignificando os conceitos fundamentais da geografia:

  • Espaço: Deixa de ser um palco geométrico e abstrato e passa a ser entendido como uma produção social, resultado de relações históricas, econômicas e culturais.

  • Território: Transcende a simples porção delimitada de terra. É o espaço apropriado por relações de poder. É onde se exerce domínio, mas também onde se inscrevem identidades e resistências. Mapear um território tradicional é afirmar a existência de um grupo.

  • Lugar: É a experiência vivida, o espaço afetivo e cultural carregado de significado. Mapas participativos buscam capturar essa subjetividade, mostrando não apenas onde algo está, mas o que aquele local significa para a comunidade (locais sagrados, de memória, de sociabilidade).

  • Região: A região crítica não é uma simples divisão homogênea. É uma construção dinâmica que evidencia processos comuns, como a "Região Amazônica" mapeada por povos indígenas, que destaca bacias hidrográficas e ciclos ecológicos, contrapondo-se à divisão política em estados.

  • Paisagem: Deixa de ser apenas uma vista panorâmica e se torna um documento que registra as marcas da intervenção humana (conflitos, cultivos, degradação, preservação). Mapear a paisagem é contar a história dessa interação.

Importância em Áreas-Chave

  • Educação: A cartografia participativa é uma pedagogia libertadora. Ao mapear seu próprio bairro, estudantes desenvolvem consciência crítica sobre seu lugar no mundo, entendem desigualdades (como a falta de equipamentos públicos) e deixam de ser receptores passivos de conhecimento para se tornarem produtores ativos. É uma educação geográfica emancipatória.

  • Mudanças Climáticas: Comunidades tradicionais são as primeiras a sentir os impactos das alterações no clima. Mapas que registram mudanças nos cursos de rios, áreas de alagamento, desaparecimento de espécies ou locais de risco tornam-se provas visuais cruciais. Eles dão materialidade local a um fenômeno global, orientando políticas de adaptação e mitigação baseadas no conhecimento local.

  • Inovação em Políticas Públicas: Governos estão usando a cartografia social para criar políticas mais precisas e eficazes. Ao invés de impor soluções de cima para baixo, utilizam mapas participativos para identificar vulnerabilidades, recursos subutilizados e demandas reais das comunidades, resultando em programas de habitação, saneamento e gestão de recursos naturais muito mais adequados ao território vivido.

Casos Emblemáticos: Mapas que Mudaram Vidas

1.O Contra-Mapa de Kalimantan (Indonésia), anos 1990

Este é um dos exemplos mais paradigmáticos. Comunidades Dayak, apoiadas por ONGs, criaram um "contra-mapa" de suas terras em Kalimantan (Bornéu Indonésio) para se opor aos mapas oficiais do governo, que concediam vastas áreas para madeireiras e plantations de palma. O mapa deles não usava coordenadas precisas, mas sim elementos da paisagem como rios, montanhas e árvores sagradas para demarcar seus territórios de uso coletivo. Impacto: O mapa tornou-se uma ferramenta jurídica e política poderosa. Foi usado em negociações para expor a ilegitimidade das concessões, recuperar terras e, crucialmente, forçar o reconhecimento oficial de que o conhecimento tradicional é válido para a gestão territorial. Ele deslocou o estatuto de verdade do mapa técnico-estatal para o mapa cultural-comunitário.

2. Mapas dos Quilombos (Brasil)
Comunidades quilombolas no Brasil utilizaram a cartografia participativa para mapear seus territórios tradicionais, essencial para o processo de titulação garantido pela Constituição. Esses mapas registram não só a localização das casas, mas as roças, os cemitérios, os locais de ritual e os caminhos ancestrais. Impacto: Eles foram fundamentais para comprovar a ocupação tradicional perante o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e na Justiça, combatendo grilagem e garantindo a posse da terra, which is a condição fundamental para sua sobrevivência física e cultural.

3. Green Map System (Global)
Iniciado em Nova York, é um sistema global que oferece ícones padronizados para comunidades mapearem sites sustentáveis, culturais e naturais, bem como locais de degradação ambiental. Impacto: Empodera cidadãos comuns a diagnosticar e promover a sustentabilidade local, influenciando o planejamento urbano, o turismo consciente e a educação ambiental em centenas de cidades ao redor do mundo.

Em conclusão, a cartografia social, crítica e participativa desvela o mapa como um campo de batalha semiótico. Ao contestar a forma e ressignificar a função dos mapas hegemônicos, ela altera radicalmente seu estatuto: de instrumento de controle para ferramenta de libertação. Ela prova que mapear não é apenas representar o mundo, mas é um ato profundo de intervenção nele, capaz de defender territórios, preservar culturas, enfrentar crises climáticas e, acima de tudo, reescrever narrativas de poder.

Em conclusão, a cartografia social, crítica e participativa desvela o mapa como um campo de batalha semiótico. Ao contestar a forma e ressignificar a função dos mapas hegemônicos, ela altera radicalmente seu estatuto: de instrumento de controle para ferramenta de libertação. Ela prova que mapear não é apenas representar o mundo, mas é um ato profundo de intervenção nele, capaz de defender territórios, preservar culturas, enfrentar crises climáticas e, acima de tudo, reescrever narrativas de poder.


A Cartografia como Ferramenta de Justiça Espacial Multidimensional

O poder transformador dessa cartografia se manifesta concretamente em sua contribuição para diversas dimensões da justiça espacial:

  • Justiça Processual: A cartografia participativa é a justiça processual em ação. Ela garante que os grupos tradicionalmente excluídos tenham voz e participação direta nos processos de decisão sobre seus territórios. O ato de mapear coletivamente é um processo democrático onde a comunidade define a agenda, os símbolos e a narrativa, contrariando a exclusão característica dos processos técnicos tradicionais, decididos de cima para baixo.

  • Justiça de Reconhecimento: Esta é talvez sua contribuição mais evidente. Ao colocar no papel lugares sagrados, nomes tradicionais, histórias de luta e modos de vida, a cartografia social reconhece publicamente a existência, a cultura e a identidade de um grupo. É um ato de contrapor a "violência cartográfica" do Estado, que frequentemente apaga essas existências, com um ato de autoafirmação e visibilização. O mapa torna-se um certificado de existência.

  • Justiça Distributiva: O reconhecimento cartográfico é frequentemente o primeiro passo crucial para exigir justiça distributiva. Mapas de territórios quilombolas ou indígenas, ao provarem o uso tradicional da terra, são instrumentos fundamentais na luta pela redistribuição desse bem – a terra – de volta para suas comunidades originárias. Eles expõem a injustiça na distribuição de recursos e servem como prova técnica e jurídica para repará-la.

  • Justiça Cognitiva: Boaventura de Sousa Santos fala da necessidade de valorizar "saberes não científicos" que foram suprimidos pela monocultura do conhecimento científico moderno. A cartografia crítica pratica a justiça cognitiva ao validar e equiparar o saber tradicional, local e empírico ao saber técnico-científico hegemônico. O mapa de Kalimantan, que usa rios e árvores como marcos, é tão ou mais válido e preciso para aquela realidade do que um mapa geodésico imposto de fora. Ele quebra a hierarquia de saberes.

  • Justiça Cosmopolita: Estes mapas conectam a luta local a redes globais de solidariedade. A causa de uma comunidade na Amazônia, mapeada e publicada online, pode ganhar o apoio de ativistas e organizações internacionais, criando uma cidadania global em torno de questões comuns, como direitos humanos e ambientais. A cartografia facilita uma "comunidade imaginada" cosmopolita que pressiona por justiça além das fronteiras do Estado-nação.


Ciência das Massas e Cosmovisão: A Contribuição de Harley e Peluzo

A cartografia crítica materializa a proposta do historiador da cartografia 
que via os mapas não como espelhos da realidade, mas como textos culturais que refletem e reproduzem as relações de poder e os valores de sua época. Harley desnaturalizou o mapa, mostrando seu "estatuto" como construção ideológica. A cartografia participativa leva essa crítica adiante, usando as mesmas ferramentas de poder para fins emancipatórios.

No Brasil, a professora Gisele dos Anjos Santos avança nessa ideia, propondo a cartografia como uma "ciência das massas". Isso significa tirar a técnica cartográfica do monopólio de especialistas e dos aparelhos de Estado e entregá-la às massas, ao povo, como instrumento de luta e autoconhecimento. Não se trata de fazer um mapa "pior" ou "menos preciso", mas de produzir um mapa com outra precisão: a precisão da experiência vivida, da memória coletiva e da cosmovisão.

É aqui que o conceito de cosmovisão se torna central. O mapa deixa de ser um simples registro planimétrico para se tornar a expressão visual de um modo de ver e estar no mundo. Para povos indígenas, por exemplo, mapear é representar uma relação profundamente espiritual e de reciprocidade com a terra, e não uma relação de propriedade. Incluir a cosmovisão no processo cartográfico é permitir que o mapa expresse não apenas onde as coisas estão, mas o que elas significam dentro de um sistema cultural completo. É uma ciência que incorpora a arte, o mito, a história e a espiritualidade, tornando-se, verdadeiramente, uma ciência humana e das massas.

Dessa forma, a cartografia social, crítica e participativa cumpre um papel revolucionário: ela desmistifica a técnica, distribui poder cognitivo, e permite que a visão de mundo dos oprimidos e marginalizados se materialize em um potentíssimo instrumento de luta por justiça, reconhecimento e transformação social.

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