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quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Como fim da 2ª Guerra Mundial dividiu a colônia japonesa no Brasil

 

Ministro das Relações Exteriores do Japão, Mamoru Shigemitsu, assina a rendição do Japão na Segunda Guerra.

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Ministro das Relações Exteriores do Japão, Mamoru Shigemitsu, assina a rendição do Japão na Segunda Guerra
    • Author,Luiz Antônio Araujo
    • Role,De Porto Alegre para a BBC News Brasil

Baía de Tóquio, 2 de setembro de 1945: de fraque, cartola e bengala, o ministro das Relações Exteriores do Japão, Mamoru Shigemitsu, percorre o convés do encouraçado norte-americano Missouri como se carregasse o Monte Fuji nas costas e o Monte Kita na alma.

Ao final do caminho, há uma mesa diante da qual o general Douglas MacArthur, supremo comandante das Forças Aliadas, aguarda de pé, em uniforme de campanha, a assinatura da ata de rendição do Japão na Segunda Guerra Mundial.

"Assinar a declaração de rendição era, para um homem público, o fim de tudo, para um soldado ou marinheiro virtual suicídio", escreverá Shigemitsu anos mais tarde.

A prótese que o ministro carrega desde que perdeu a perna direita num atentado, há 13 anos, torna a marcha ainda mais dolorosa.

MacArthur providenciou para que nenhuma cadeira fosse colocada à disposição da delegação japonesa.

Não é o único requinte de malícia dos vitoriosos: trazida do Museu da Academia Naval dos Estados Unidos em Annapolis, Maryland, especialmente para a cerimônia, está uma das bandeiras da esquadra com a qual o comodoro Matthew Perry obrigou, no século XIX, os shoguns de Tóquio a abrir o mercado japonês a produtos americanos.

O combalido Shigemitsu é obrigado a ouvir em pé um pronunciamento de MacArthur e a firmar a capitulação curvando-se diante do general.

Ao término da solenidade, cioso do protocolo, o diplomata estende a mão ao comandante norte-americano, que se recusa a apertá-la.

Migrantes se negam a reprisar encenação do Missouri

São Paulo, 19 de julho de 1946: no Palácio dos Campos Elíseos, sede do governo paulista, o interventor federal José Carlos de Macedo Soares e o embaixador da Suécia, Ragnar Kumlin, discorrem durante horas sobre a rendição do Japão a mais de 600 migrantes japoneses e descendentes.

Dez meses após o fim das hostilidades no Pacífico, a colônia japonesa no Brasil permanece em pé de guerra, desta vez interna.

De um lado estão os kachigumi, que não admitem a derrota – e têm apoio ou simpatia de 80% da comunidade –, e, de outro, os makegumi, que aceitam a vitória aliada.

Sociedades secretas, entre as quais se destaca a Liga do Caminho dos Súditos (Shindo Renmei), recorrem à intimidação e ao assassinato contra os adversários.

Jornal de junho de 1945 anuncia que Brasil declarou guerra ao Japão.

Crédito,Arquivo Gustavo Taniguti

Legenda da foto,Situação do Japão na Segunda Guerra Mundial dividiu a comunidade japonesa no Brasil

Os presentes nos Campos Elíseos escutam em silêncio quando o embaixador sueco chama de "notícias fantásticas" a crença na vitória japonesa e não esboçam reação quando o interventor acusa membros da comunidade de praticar "atos de terrorismo" contra patrícios e brasileiros.

Ao final, Macedo Soares conclama os convidados a assinar a ata da reunião, enquanto fotógrafos se preparam para registrar a cena.

Serenamente, um homem calvo ergue a mão e declara que não assinará nenhum documento que mencione a rendição do Japão.

Ergue-se em seguida a voz de Sachiko, única cidadã japonesa presente, que diz: "Nós, japoneses, não acreditamos na derrota do Japão".

A mulher insiste que, se o interventor deseja acabar com as disputas e o terror na comunidade, deve "comunicar a vitória do Japão" e suspender a "propaganda falsa da derrota".

Ansioso por encarnar MacArthur, Macedo Soares não previu que os migrantes recusariam o papel de Shigemitsu.

"Afronta à nação", diz diário do PCB

Os jornais da capital não perdoam o interventor.

"O que se passou nos Campos Elíseos transcende as raias da tolerância, da paciência e da boa vontade", proclama A Gazeta.

"Afronta à nação o compromisso de Macedo Soares com os fascistas japoneses", vocifera a Tribuna Popular, órgão paulista do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Abaixo da manchete, o diário comunista estampa a foto de Shigemitsu no Missouri, com a legenda taxativa: "Eis aí o fato que o 'Shindo Remei' e o clerical-fascista Macedo Soares, que ligou sua sorte à (...) japonesa ignoram: a rendição incondicional dos militaristas nipônicos".

Integrantes do Shindo Renmei.

Crédito,Arquivo Gustavo Taniguti

Legenda da foto,Shindo Renmei era uma sociedade secreta que operava no Brasil
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Desde o início do século, o Brasil recebeu cerca de meio milhão de migrantes do Japão, que uniam o profundo apego à terra natal à mais completa ausência de laços com o país adotivo.

Movia-os, sobretudo, o desejo de prosperar e voltar para casa.

Ao desembarcar, enfrentaram preconceitos sintetizados na expressão Perigo Amarelo, usada desde o século XIX em favor do veto à migração de povos da Ásia.

"Os asiáticos nunca se aculturam – esta (a proibição da entrada de asiáticos) é uma decisão que visa ao impedimento do ingresso de moléculas perniciosas segundo a lei da eugenia e da economia", disse o então presidente da Academia Nacional de Medicina, Miguel Couto, em apoio a um projeto de lei em discussão na Câmara dos Deputados.

Nos anos 1930, acompanhando uma tendência mundial, o Brasil iniciou uma campanha de nacionalização, que se converteu em política oficial sob a ditadura do Estado Novo e em ataques aos chamados "súditos do Eixo" durante a guerra.

"O presidente Getúlio Vargas adotou as primeiras restrições à entrada de migrantes em 1934", explica Gustavo Taniguti, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).

"Com o Estado Novo começa a dita política de nacionalização, com a proibição de uso não apenas de idiomas estrangeiros, mas também indígenas, sendo permitido somente o português."

Nacionalização linguística e cultural

Com jornais, rádios e escolas em língua estrangeira tornados ilegais, a colônia japonesa foi seriamente afetada já no final dos anos 1930, afirma Taniguti.

Quando o Brasil declarou guerra ao Eixo, em 1942, o sentimento antinipônico cresceu entre a população, diz o pesquisador.

Em 1943, o governo federal decidiu expropriar e evacuar toda a população de origem japonesa do município de Santos (SP), considerado zona de guerra.

Cerca de 1,5 mil homens, mulheres e crianças residentes no município foram forçados a se transferir para campos de concentração no interior.

O internamento de cidadãos do Eixo pelo Brasil teve apoio explícito dos Estados Unidos, que haviam implementado a mesma medida, afirma Priscila Perazzo, professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS).

"O Brasil não monta campos de concentração porque quer, mas sim por pressão dos Estados Unidos", diz a doutora em História pela USP.

"Como o Brasil assume o alinhamento com os Estados Unidos, há uma série de coisas que o país tem de fazer para dizer que está ao lado dos Aliados, e uma delas é reprimir esses estrangeiros, os chamados 'súditos do Eixo'."

Citando a filósofa alemã Hannah Arendt, Priscila afirma que o regime dos campos comporta três espaços: limbo, purgatório e inferno (em referência à terminologia cristã para o destino dos pecadores após a morte).

"O limbo é o internamento de civis, adotado pela primeira vez pelos britânicos durante a Guerra dos Bôeres, em 1899, na África do Sul. O purgatório são os campos de trabalho existentes em distintos países na primeira metade do século XX. Já o inferno é a Solução Final dos nazistas", diz a pesquisadora.

Um programa radiofônico intitulado Este é o nosso inimigo, produzido em 1943 pelo Estado Novo, foi um entre muitos a apresentar os japoneses sob uma luz infame.

Na peça, um ator lia declarações atribuídas a porta-vozes do Império do Japão: "Chegará o dia em que faremos do universo inteiro o nosso domínio. Chamaremos o nosso poder aos quatro pontos cardeais e cobriremos os oito cantos do mundo com um único teto".

Em seguida, o locutor comentava: "Não, isto não é um trecho de um conto de fadas ou parte de uma página cômica de jornal. Os japoneses de que falamos no programa de hoje existem. E não há nada de cômico a respeito deles".

Quando o Brasil entra na guerra, os japoneses já vinham sofrendo havia anos as consequências do cerceamento a sua cultura e seus laços comunitários, sustenta Taniguti.

"A combinação de repressão, isolamento e ausência de contato com o Japão acabou favorecendo manifestações de extremismo entre grupos de migrantes", afirma.

Se antes da rendição japoneses eram suspeitos de espionagem e quinta-colunismo, depois de 1945 ganharam a pecha de fanáticos e terroristas.

Uma descoberta casual e com graves consequências

O estopim foi um episódio ocorrido em Tupã (SP), em 1º de janeiro de 1946.

Ao averiguar uma denúncia sobre culto à bandeira japonesa em uma chácara, a Força Pública deteve e submeteu a maus tratos sete migrantes.

O interrogatório policial revelou que os detidos não davam crédito à notícia da rendição do Japão.

Sacramentada no Pacífico, a paz não havia chegado ao Rio do Peixe.

Instaurado a partir do incidente de Tupã, o inquérito político e criminal contra a Shindo Renmei tornou-se o maior desse tipo no país.

Foram presas cerca de 2 mil pessoas e indiciados 30 integrantes da colônia, enquanto outros 80 tiveram decretada a expulsão do país (que acaba não sendo realizada) e 180 foram enviados ao Instituto Correcional da Ilha de Anchieta.

O escândalo da Shindo Renmei coincidiu com o auge da onda antinipônica no Brasil.

Na Constituinte de 1946, uma emenda que vetava o ingresso de japoneses no Brasil foi posta em votação pouco mais de um mês depois da reunião nos Campos Elíseos.

O apoio à medida foi dos eugenistas reunidos em torno do deputado Miguel Couto Filho, autor do texto, à bancada do PCB.

Com 99 votos favoráveis e 99 contrários, coube ao presidente da assembleia, o mineiro Fernando Melo Viana, proferir o voto de Minerva em favor dos últimos e sepultar a ideia.

Folha da Manhã de abril de 1955 noticia caso em Santo André.

Crédito,Arquivo Gustavo Taniguti

Legenda da foto,Violência na comunidade japonesa foi noticiada por jornais da época

Fim do sonho do retorno à pátria

Se a fixação dos migrantes em solo brasileiro parecia incerta no pós-guerra, a destruição do Japão ao final do conflito sepultou o longamente acalentado sonho de retorno.

"A relação com o país de origem, marcada pela lealdade ao império e pelo forte nacionalismo, torna compreensível o descrédito na derrota do Japão", afirma Kelly Yshida, doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

O abandono da estratégia de migração temporária provocou traumas, explica a historiadora.

"A impossibilidade de retorno reforçou a necessidade de adaptação, o que ia contra o desejo de uma parcela dos migrantes", lembra Kelly.

Um dos exemplos de que as velhas feridas foram aplacadas, mas não extintas foi o surgimento do chamado Pelotão de Voluntários das Cerejeiras (Sakuragumi Teishintai em 1953, em Londrina (PR).

Autodenominado paramilitar e voluntário, o grupo prometia a quem nele ingressasse o repatriamento, ou seja, o retorno imediato ao Japão em troca de dinheiro e bens.

"O Pelotão propunha um caminho insólito para a volta ao Japão: o alistamento voluntário ao lado dos Estados Unidos e da Organização das Nações Unidas (ONU) na Guerra da Coreia (1950-1953)", explica Taniguti.

Depois da desmobilização, os combatentes seguiriam para a terra natal, desocupada em 1952 pelos Aliados.

Em janeiro de 1954, o grupo instalou centenas de migrantes em uma chácara em Santo André (SP), supostamente escolhida pela proximidade com porto de Santos, onde esperavam embarcar.

A Força Pública paulista invadiu a propriedade por duas vezes, em janeiro e dezembro de 1954, espancando residentes e prendendo 23 líderes na última incursão.

Foto antiga de manifestantes marchando.

Crédito,Arquivo Gustavo Taniguti

Legenda da foto,Pelotão de Voluntários das Cerejeiras prometia a quem nele ingressasse o retorno imediato ao Japão em troca de dinheiro e bens

Uma nova visão sobre a migração

Nos jornais da época, a chácara foi apelidada de "Canudos em miniatura", enquanto se discutia se seus ocupantes eram "comunistas, vigaristas ou remanescentes da Shindo Renmei".

O episódio encerrou-se em 1955, com a prisão de líderes envolvidos na depredação do consulado japonês em São Paulo e a dispersão do grupo.

Com o restabelecimento de relações entre Japão e Brasil, em 1952, casos como o do Pelotão dos Voluntários das Cerejeiras tornaram-se igualmente constrangedores para o governo e os porta-vozes da comunidade japonesa.

As comemorações do 400º aniversário de São Paulo, em 1954, e do centenário da migração japonesa, em 1958, permitiram envolver a violenta história do Estado brasileiro e suas minorias em uma nova roupagem.

"Na festa dos 400 anos, cria-se uma imagem da cidade de São Paulo como acolhedora, moderna, urbana, que recebia povos de várias origens e lugares do mundo", explica Taniguti.

O sociólogo adverte que o caso dos migrantes japoneses entre os anos 1930 e 1950 situa-se no entrechoque entre dois nacionalismos: o japonês e o brasileiro.

"Episódios como o da Shindo Renmei exigem que façamos um exercício de localizar, ao longo de 20 a 25 anos, a forma como a nacionalidade brasileira foi pinçada em diferentes regimes políticos."

Cassações após 1964

O choque permaneceria ainda latente por muitos anos, como mostra o fato de que, durante a ditadura militar, pelo menos dois parlamentares de origem japonesa – o deputado federal Yukishige Tamura (Arena, governista) e o estadual Paulo Nakandakare (MDB, oposicionista), ambos por São Paulo – foram cassados com base, entre outras suspeitas, de terem pertencido à Shindo Renmei.

Mesmo na atualidade, lembra Kelly Yshida, o preconceito e o racismo antinipônico e antiasiático persistem, como mostrou a narrativa acusatória contra chineses durante a pandemia do novo coronavírus.

A pesquisadora acrescenta: "O século XXI trouxe também novos debates. Exemplar é o questionamento do estereótipo dos japoneses como 'minoria modelo', que difere do Perigo Amarelo do século passado. Trata-se de uma concepção problemática, entre outros motivos, por reforçar a ideia de hierarquização entre diferentes populações e culturas".

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