SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Israel pode estar a caminho de sofrer ostracismo como a África do Sul durante o apartheid?

 

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, olha para baixo enquanto fala no palco

Crédito,Reuters

    • Author,Paul Adams
    • Role,Correspondente de diplomacia da BBC em Jerusalém

À medida que a guerra em Gaza continua, o isolamento internacional de Israel parece se intensificar.

O país estaria se aproximando de um "momento África do Sul"? Quando a combinação de pressão política e boicotes econômicos, esportivos e culturais levou o governo sul-africano a abandonar o apartheid, sistema de segregação racial institucionalizado na África do Sul entre 1948 e 1994.

Ou o governo de direita do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, conseguirá atravessar a tempestade diplomática, mantendo Israel livre para perseguir seus objetivos em Gaza e na Cisjordânia ocupada sem prejudicar permanentemente sua posição internacional?

Dois ex-primeiros-ministros, Ehud Barak e Ehud Olmert, acusaram Netanyahu de transformar Israel em um pária internacional.

Por causa de um mandado emitido pelo Tribunal Penal Internacional, o número de países para os quais Netanyahu pode viajar sem risco de prisão caiu drasticamente.

Ainda na ONU, uma comissão de inquérito da organização apontou nesta semana que Israel cometeu genocídio contra palestinos em Gaza no atual conflito. O relatório aponta que quatro dos cinco atos genocidas definidos pelo direito internacional — matar membros de um grupo, causar graves danos físicos e mentais, impor deliberadamente condições calculadas para destruir o grupo e impedir nascimentos — foram cometidos desde o início da guerra com o Hamas em 2023.

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Desde o ataque do Hamas ao sul de Israel em 7 de outubro de 2023, que matou cerca de 1,2 mil pessoas e deixou 251 reféns, ao menos 64,9 mil pessoas morreram em ataques israelenses em Gaza, segundo o Ministério da Saúde do território. Mais de 90% das casas foram danificadas ou destruídas, e os sistemas de saúde, água, saneamento e higiene entraram em colapso.

A comissão da ONU cita declarações de líderes israelenses e o padrão de conduta das forças como evidência de intenção genocida. O Ministério das Relações Exteriores de Israel rejeitou o documento, chamando-o de "distorcido e falso", e acusou os especialistas da comissão de servirem como "representantes do Hamas" e de confiar em "falsidades já desmascaradas".

Países do Golfo, reagindo com indignação ao ataque israelense da última terça-feira (09/09) contra líderes do Hamas no Catar, têm se reunido em Doha para discutir uma resposta unificada. Alguns desses países pedem que nações com relações diplomáticas com Israel reconsiderem essa posição.

Com imagens de fome surgindo em Gaza durante o verão e o Exército israelense prestes a invadir — e possivelmente destruir — a Cidade de Gaza, crescem os sinais de insatisfação de governos europeus que vão além de meras declarações.

O próprio Netanyahu admitiu na segunda-feira (15/09) que Israel enfrenta "uma espécie de" isolamento econômico no cenário mundial.

Em conferência do Ministério das Finanças em Jerusalém, Netanyahu culpou a publicidade negativa no exterior e disse que Israel precisa investir em "operações de influência" em meios de comunicação tradicionais e redes sociais para contrabalançar o problema.

Torre na Cidade de Gaza desaba após ser atingida por míssil israelense

Crédito,Reuters

Legenda da foto,O Exército israelense mantém a ofensiva em Gaza apesar da condenação internacional

No início do mês, a Bélgica anunciou uma série de sanções, incluindo a proibição de importações provenientes de assentamentos judeus ilegais na Cisjordânia, a revisão de políticas de compras junto a empresas israelenses e restrições a serviços consulares para belgas que vivem nos assentamentos.

O país também declarou como persona non grata dois ministros do governo israelense de linha dura, Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, além de colonos judeus acusados de praticar violência contra palestinos na Cisjordânia.

Outros países, como Reino Unido e França, já haviam adotado medidas semelhantes. Sanções contra violentos colonos israelenses impostas pelo governo de Joe Biden no ano passado foram, no entanto, suspensas no primeiro dia de Donald Trump de volta à Casa Branca.

Uma semana após a decisão da Bélgica, a Espanha anunciou suas próprias medidas, transformando em lei um embargo de armas que já existia de fato, impondo uma proibição parcial de importações, barrando a entrada em território espanhol de qualquer pessoa envolvida em genocídio ou crimes de guerra em Gaza, e proibindo que navios e aeronaves com destino a Israel transportando armas atracassem em portos espanhóis ou entrassem em seu espaço aéreo.

O ministro das Relações Exteriores de Israel, Gideon Saar, acusou a Espanha de adotar políticas antissemitas e sugeriu que o país sofreria mais do que Israel com a proibição do comércio de armas.

Parlamentares israelenses Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich durante audiência no Knesset.

Crédito,EPA

Legenda da foto,Alguns países tentaram atingir parlamentares israelenses de extrema-direita Itamar Ben-Gvir (à esq.) e Bezalel Smotrich

Mas há outros sinais preocupantes para Israel.

Em agosto, o fundo soberano da Noruega, avaliado em US$ 2 trilhões (cerca de R$ 10,8 trilhões), anunciou que começaria a desinvestir em empresas listadas em Israel. Até meados do mês, 23 companhias haviam sido retiradas do rol de investimentos, e o ministro das Finanças, Jens Stoltenberg, disse que outras poderiam seguir o mesmo caminho.

Enquanto isso, a União Europeia, maior parceira comercial de Israel, planeja sancionar ministros de extrema-direita e suspender parcialmente elementos comerciais do acordo de associação com o país.

Em discurso sobre o Estado da União em 10/09, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, afirmou que os eventos em Gaza "abalaram a consciência do mundo".

Um dia depois, 314 ex-diplomatas e autoridades europeias escreveram a von der Leyen e à chefe da política externa da UE, Kaja Kallas, pedindo medidas mais duras, incluindo a suspensão total do acordo de associação com Israel.

Entre a década de 1960 e o fim do apartheid na África do Sul, uma característica das sanções impostas ao país africano foi a adoção de boicotes culturais e esportivos na década de 1990.

Há indícios de que algo semelhante começa a ocorrer com Israel.

O concurso de música Eurovision Song Contest (tradicional festival europeu da canção) pode não parecer um evento relevante nesse contexto, mas Israel tem longa e destacada participação na competição, vencendo quatro vezes desde 1973.

Para Israel, participar simboliza a aceitação do Estado judeu pela comunidade internacional.

No entanto, Irlanda, Espanha, Holanda e Eslovênia afirmaram ou indicaram que se vão se retirar do evento em 2026 caso Israel seja autorizado a competir. A decisão final está prevista para dezembro deste ano.

Eden Golan representa Israel e segura a bandeira do país no palco do Eurovision Song Contest em 2024

Crédito,EPA

Legenda da foto,Israel participa regularmente do Eurovision desde a década de 1970, mas alguns países ameaçaram boicotar a competição no próximo ano

Em Hollywood, uma carta que pede boicote a produtoras, festivais e emissoras israelenses "implicados em genocídio e apartheid contra o povo palestino" reuniu mais de 4 mil assinaturas em uma semana, incluindo nomes vencedores do Oscar como Emma Stone e Javier Bardem.

Tzvika Gottlieb, CEO da Associação Israelense de Produtores de Cinema e TV, classificou a petição como "profundamente equivocada". "Ao nos atacar — os criadores que dão voz a narrativas diversas e promovem o diálogo —, esses signatários estão prejudicando sua própria causa e tentando nos silenciar", disse Gottlieb.

Há também o esporte. A prova de ciclismo Vuelta a España foi repetidamente interrompida por grupos que protestavam contra a presença da equipe Israel-Premier Tech, o que resultou em um encerramento prematuro e conturbado no sábado (13/09) e no cancelamento da cerimônia do pódio.

O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, descreveu os protestos como motivo de "orgulho", mas políticos da oposição afirmaram que as ações do governo causaram constrangimento internacional.

Também na Espanha, sete enxadristas israelenses desistiram de um torneio após serem informados de que não poderiam competir com sua bandeira.

A resposta do governo israelense ao que a mídia já chamou de "tsunami diplomático" tem sido, em geral, desafiadora.

Netanyahu acusou a Espanha de "ameaça genocida flagrante" depois que o primeiro-ministro espanhol afirmou que seu país, sem bombas nucleares, porta-aviões ou grandes reservas de petróleo, não poderia impedir sozinho a ofensiva de Israel em Gaza.

Após o anúncio das sanções da Bélgica, o ministro das Relações Exteriores israelense, Gideon Saar, escreveu na rede social X que era "lamentável que, mesmo quando Israel enfrenta uma ameaça existencial, que é de interesse vital da Europa, existam aqueles que não conseguem resistir à sua obsessão anti-Israel".

Na segunda-feira (15/09), Netanyahu afirmou que Israel deve reduzir a dependência de suas indústrias do comércio com outros países, incluindo armas e produtos de defesa.

"Podemos nos ver bloqueados não apenas em pesquisa e desenvolvimento, mas também na produção industrial propriamente dita", disse. "Precisamos começar a desenvolver nossa capacidade de confiar mais em nós mesmos."

Espectadores com bandeiras palestinas acompanham percurso de corrida de ciclismo enquanto atleta da equipe Israel Premier Tech passa.

Crédito,Reuters

Legenda da foto,A Vuelta, uma das principais competições anuais de ciclismo, foi repetidamente interrompida por protestos pró-Palestina

Entre aqueles que representaram Israel no exterior, há grande apreensão.

Jeremy Issacharoff, embaixador de Israel na Alemanha de 2017 a 2021, disse à BBC que não conseguia se lembrar de um momento em que a imagem internacional de Israel estivesse tão "abalada", mas afirmou que algumas medidas eram "altamente questionáveis" por atingirem todos os israelenses.

"Em vez de apontar as políticas do governo, isso está alienando muitos israelenses moderados do meio-termo", disse.

Segundo Issacharoff, algumas ações, como o reconhecimento do Estado da Palestina, podem ser contraproducentes, pois "dão munição a pessoas como Smotrich e Ben-Gvir e ainda reforçam o argumento deles para anexar [a Cisjordânia]".

Apesar de seus receios, o ex-embaixador israelense não acredita que o isolamento diplomático de Israel seja irreversível.

"Não estamos em um momento sul-africano, mas estamos em um possível preâmbulo para um momento sul-africano", afirmou.

Outros consideram que mudanças mais profundas são necessárias para deter o avanço de Israel rumo ao status de pária.

"Precisamos recuperar nosso lugar na comunidade internacional", disse à BBC o ex-diplomata israelense Ilan Baruch. "É preciso voltar a agir com racionalidade."

Baruch, que foi embaixador israelense na África do Sul uma década após o fim do apartheid, renunciou ao serviço diplomático em 2011, afirmando não conseguir mais defender a ocupação israelense nos territórios palestinos. Desde que se aposentou, tornou-se crítico vocal do governo e defensor da solução de dois Estados.

Ele considera necessárias as sanções recentes, afirmando: "Foi assim que a África do Sul foi colocada de joelhos".

Secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, e o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, visitam o Muro das Lamentações.

Crédito,Reuters

Legenda da foto,Israel mantém o apoio dos EUA, cujo secretário de Estado, Marco Rubio, está em visita nesta semana

Baruch acrescentou: "Eu diria que qualquer pressão assertiva sobre Israel, de forma que os europeus acreditam estar ao seu alcance, deve ser bem-vinda."

Se necessário, afirmou, isso incluiria mudanças nos regimes de visto e boicotes culturais, acrescentando: "Estou preparado para a dor."

Mas, apesar das manifestações de indignação e das discussões sobre pressão, alguns observadores experientes duvidam que Israel esteja à beira de um precipício diplomático.

"Aqueles dispostos a seguir pelo caminho da Espanha ainda são exceção", disse Daniel Levy, ex-negociador de paz israelense.

Levy afirmou que esforços para adotar ações coletivas dentro da União Europeia — como suspender elementos do acordo de associação ou, como alguns sugeriram, excluir Israel do programa de pesquisa e inovação Horizon, da União Europeia — provavelmente não terão apoio suficiente, com Alemanha, Itália e Hungria entre os países resistentes a tais medidas.

Israel ainda mantém o apoio firme dos EUA, com o secretário de Estado, Marco Rubio, afirmando que a "relação com Israel continuará forte" ao embarcar para visita oficial.

Levy considera que o isolamento internacional de Israel é "irreversível", mas ainda assim afirma que o apoio contínuo da administração Trump impede que o país tenha chegado ao ponto de não poder alterar os rumos do conflito em Gaza.

"Netanyahu está ficando sem caminhos", disse Levy. "Mas ainda não chegamos ao fim da estrada."

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