SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

O Furacão dos Oprimidos: Como a Rebeldia, a Criatividade e o Amor Teceram a História por Egidio Guerra



A história oficial, frequentemente escrita pelos vencedores, gosta de narrativas lineares e de grandes homens em monumentos de bronze. Mas a verdadeira força motriz da transformação humana vem de baixo, das margens, dos excluídos: dos jovens que se recusam a herdar um mundo falido, dos escravizados que ousam sonhar com a liberdade, das mulheres que demandam uma voz, da comunidade LGBTQIA+ que exige o simples direito ao amor. Suas armas não são apenas as barricadas, mas a criatividade desesperada, a arte subversiva e um amor tão profundo pela ideia de humanidade que se torna irresistivelmente rebelde. 



Foi o amor por uma ideia de igualdade – ainda que não totalmente alcançada – que alimentou a Revolução Francesa. Lá, as massas famintas, excluídas dos privilégios do Antigo Regime, tomaram as ruas. Sua rebeldia não foi um mero ato de destruição, mas um ato criativo de fundação: inventaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Voltaire, com sua sardônica e afiada criatividade literária, preparou o terreno, usando o humor como arma para demolir os alicerces podres da intolerância religiosa e do poder absoluto. Ele foi o intelectual cuja rebeldia com palavras antecedeu a rebeldia com ações. 


No Haiti, a rebeldia realizou o impossível. Escravizados, tratados como mercadoria, não apenas se revoltaram contra o poderio colonial francês, mas fundaram a primeira república negra das Américas. Sua luta foi uma fusão explosiva de desespero e criatividade estratégica, unindo táticas de guerrilha a uma profunda fé e amor por sua própria cultura e liberdade. Eles literalmente reinventaram o mundo, provando que as correntes podiam ser quebradas. 


Já no século XX, as Revoluções Russa e Cubana, com todos os seus complexos legados, foram inicialmente alimentadas pela rebeldia de camponeses, operários e intelectuais contra ordens sociais profundamente injustas. Artistas como o dramaturgo Bertolt Brecht entenderam perfeitamente esse poder. Sua obra é um monumento à criatividade a serviço dos oprimidos. Ao romper a "quarta parede" do teatro, ele forçava o público a sair de sua passividade, a pensar criticamente e a se rebelar contra a naturalização da exploração. Brecht sabia que a arte não deve apenas espelhar o mundo, mas ajudar a transformá-lo. 

O filósofo Walter Benjamin oferece uma das metáforas mais poderosas para entender esse processo: o "Anjo da História". Ele imagina um anjo sendo empurrado para o futuro pelas tempestades do "progresso", mas com o rosto voltado para o passado. O que ele vê não é uma cadeia de eventos gloriosos, mas uma contínua e imensa pilha de ruínas, catástrofes e escombros deixados por essa mesma noção de progresso. O anjo, aterrorizado, gostaria de parar para juntar os pedaços e ressuscitar os mortos, mas a tempestade é demasiado forte. Essa tempestade é o que nós chamamos de História. Os rebeldes, os criativos, os que amam são aqueles que, momentaneamente, conseguem frear o anjo. Eles são os que se recusam a ver as vítimas como meros escombros do progresso e, com amor e criatividade, tentam reparar o mundo (Tikkun olam, na tradição judaica). 


E hoje? O furacão dos oprimidos continua a soprar. No 
Chile, foram jovens e estudantes que, com uma rebeldia incansável e uma criatividade de protesto que virou performance global, sacudiram o país e colocaram na pauta a luta por uma educação digna, culminando em um processo constitucional. No Nepal, jovens estão na vanguarda de uma luta por mudanças políticas e econômicas, desafiando estruturas de casta e poder profundamente enraizadas. 

Quais as possibilidades reais de enfrentarmos os poderosos, o capital, as máquinas de guerra e a política do ódio hoje? 


As possibilidades são reais, mas desafiadoras. O capital hoje é mais fluido e global do que nunca. As máquinas de guerra são high-tech e o ódio é amplificado algoritmicamente pelas redes sociais, criando câmaras de eco que fragmentam a sociedade. No entanto, as mesmas ferramentas podem ser subvertidas. A criatividade é crucial para hackear esse sistema: usar a arte viral, a música, o meme como arma de crítica massiva, como fazem coletivos artísticos pelo mundo. 


A rebeldia deve ser inteligente e organizada. Não se enfrenta um tanque com uma pedra, mas sim com greves gerais, com boicotes organizados ao consumo, com a criação de redes de apoio mútuo que by passam as lógicas do capital. A economia solidária e as cooperativas são atos de criatividade e rebeldia econômica. 

E, finalmente, o amor. Soa ingênuo, mas é a força mais radical. É o amor pela comunidade, pela diferença, pela democracia verdadeira e pela justiça que impede que o movimento se torne apenas um espelho do ódio que combate. É o que sustenta a resistência a longo prazo.



Como escreveu o poeta Ferreira Gullar
, "a luta muda a luta". O amor é o que garante que, ao mudar a luta, não nos percamos de nós mesmos. Enfrentar o ódio requer uma política do encontro. Enfrentar as máquinas de guerra requer desobediência civil massiva e desinvestimento. Enfrentar o capital requer a construção de alternativas concretas. A história, com seu cortejo de horrores e triunfos breves, nos mostra que as mudanças mais profundas nunca vieram de cima para baixo. Vieram do furacão daqueles que, olhando para as ruínas do passado, se juntaram com rebeldia, criatividade e amor para, finalmente, construir algo novo. A possibilidade real reside em nossa capacidade de nos organizarmos, de sermos mais criativos que o opressor e, acima de tudo, de nunca deixarmos de acreditar que um outro mundo não apenas é necessário, mas é possível. 





Nenhum comentário:

Postar um comentário