A história oficial, frequentemente escrita pelos vencedores, gosta de narrativas lineares e de grandes homens em monumentos de bronze. Mas a verdadeira força motriz da transformação humana vem de baixo, das margens, dos excluídos: dos jovens que se recusam a herdar um mundo falido, dos escravizados que ousam sonhar com a liberdade, das mulheres que demandam uma voz, da comunidade LGBTQIA+ que exige o simples direito ao amor. Suas armas não são apenas as barricadas, mas a criatividade desesperada, a arte subversiva e um amor tão profundo pela ideia de humanidade que se torna irresistivelmente rebelde.
Foi o amor por uma ideia de igualdade – ainda que não totalmente alcançada – que alimentou a Revolução Francesa. Lá, as massas famintas, excluídas dos privilégios do Antigo Regime, tomaram as ruas. Sua rebeldia não foi um mero ato de destruição, mas um ato criativo de fundação: inventaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Voltaire, com sua sardônica e afiada criatividade literária, preparou o terreno, usando o humor como arma para demolir os alicerces podres da intolerância religiosa e do poder absoluto. Ele foi o intelectual cuja rebeldia com palavras antecedeu a rebeldia com ações.
No Haiti, a rebeldia realizou o impossível. Escravizados, tratados como mercadoria, não apenas se revoltaram contra o poderio colonial francês, mas fundaram a primeira república negra das Américas. Sua luta foi uma fusão explosiva de desespero e criatividade estratégica, unindo táticas de guerrilha a uma profunda fé e amor por sua própria cultura e liberdade. Eles literalmente reinventaram o mundo, provando que as correntes podiam ser quebradas.
Já no século XX, as Revoluções Russa e Cubana, com todos os seus complexos legados, foram inicialmente alimentadas pela rebeldia de camponeses, operários e intelectuais contra ordens sociais profundamente injustas. Artistas como o dramaturgo Bertolt Brecht entenderam perfeitamente esse poder. Sua obra é um monumento à criatividade a serviço dos oprimidos. Ao romper a "quarta parede" do teatro, ele forçava o público a sair de sua passividade, a pensar criticamente e a se rebelar contra a naturalização da exploração. Brecht sabia que a arte não deve apenas espelhar o mundo, mas ajudar a transformá-lo.
O filósofo Walter Benjamin oferece uma das metáforas mais poderosas para entender esse processo: o "Anjo da História". Ele imagina um anjo sendo empurrado para o futuro pelas tempestades do "progresso", mas com o rosto voltado para o passado. O que ele vê não é uma cadeia de eventos gloriosos, mas uma contínua e imensa pilha de ruínas, catástrofes e escombros deixados por essa mesma noção de progresso. O anjo, aterrorizado, gostaria de parar para juntar os pedaços e ressuscitar os mortos, mas a tempestade é demasiado forte. Essa tempestade é o que nós chamamos de História. Os rebeldes, os criativos, os que amam são aqueles que, momentaneamente, conseguem frear o anjo. Eles são os que se recusam a ver as vítimas como meros escombros do progresso e, com amor e criatividade, tentam reparar o mundo (Tikkun olam, na tradição judaica).
Quais as possibilidades reais de enfrentarmos os poderosos, o capital, as máquinas de guerra e a política do ódio hoje?
As possibilidades são reais, mas desafiadoras. O capital hoje é mais fluido e global do que nunca. As máquinas de guerra são high-tech e o ódio é amplificado algoritmicamente pelas redes sociais, criando câmaras de eco que fragmentam a sociedade. No entanto, as mesmas ferramentas podem ser subvertidas. A criatividade é crucial para hackear esse sistema: usar a arte viral, a música, o meme como arma de crítica massiva, como fazem coletivos artísticos pelo mundo.
A rebeldia deve ser inteligente e organizada. Não se enfrenta um tanque com uma pedra, mas sim com greves gerais, com boicotes organizados ao consumo, com a criação de redes de apoio mútuo que by passam as lógicas do capital. A economia solidária e as cooperativas são atos de criatividade e rebeldia econômica.
E, finalmente, o amor. Soa ingênuo, mas é a força mais radical. É o amor pela comunidade, pela diferença, pela democracia verdadeira e pela justiça que impede que o movimento se torne apenas um espelho do ódio que combate. É o que sustenta a resistência a longo prazo.
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