SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

'Reformas sempre geram resistência', diz 'guru da desigualdade' sobre taxar super-ricos no Brasil


Eeconomista Branko Milanovic fotografado da cintura para cima, com os braços cruzados e ligeiramente virado de perfil. Ele veste um paletó marrom, camisa branca e usa óculos redondos, enquanto olha para a câmera com um leve sorriso

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Em entrevista à BBC News Brasil, Branko Milanovic diz que Brasil foi o país da América Latina que mais reduziu desigualdade nos últimos 20 anos
    • Author, Thais Carrança
    • Role,Da BBC News Brasil em São Paulo

O Brasil é um dos países da América Latina que mais reduziram sua desigualdade nos últimos 20 anos, período em que a região como um todo foi na contramão do mundo ao mitigar sua disparidade de renda, diz o economista sérvio-americano Branko Milanovic, um dos maiores especialistas em desigualdade do mundo.

Ele afirma que a proposta de taxar os super-ricos em discussão no Congresso pode reduzir ainda mais a desigualdade brasileira, ainda que seja preciso avaliar se a mudança poderá suscitar fuga de capital para o exterior.

"Não há qualquer dúvida de que a reforma [do Imposto de Renda] reduziria a desigualdade", diz Milanovic, em entrevista à BBC News Brasil.

"O argumento, eu suponho, do outro lado, é que é preciso considerar se isso realmente teria um efeito positivo na economia — o que eu acho que teria —, ou se os ricos esconderiam seu dinheiro, se eles colocariam o dinheiro no exterior e coisas assim", pondera.

"Muitas vezes isso foi usado como uma ameaça, mas na realidade isso não se concretizou porque essas pessoas ainda ganham mais dinheiro no Brasil do que colocando o dinheiro em outro lugar", diz o professor da City University of New York (Cuny), que foi economista-chefe do departamento de pesquisa do Banco Mundial por quase 20 anos.

A reforma do IR prevê a ampliação da faixa de isenção do imposto para R$ 5 mil, uma promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O projeto prevê ainda um desconto parcial para rendimentos entre R$ 5 mil e R$ 7,35 mil.

Para compensar a perda de arrecadação com o aumento da isenção, o governo propõe tributar progressivamente quem ganha mais de R$ 600 mil por ano em até 10%, alíquota máxima aplicada a rendas anuais a partir de R$ 1,2 milhão; e taxar na fonte em 10% lucros e dividendos distribuídos por empresas a seus acionistas acima de R$ 50 mil mensais, inclusive dividendos enviados para o exterior.

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A proposta teve urgência aprovada e agora pode ser votada diretamente no plenário da Câmara, mas a votação foi adiada enquanto os deputados aceleraram a tramitação da proposta de emenda à Constituição (PEC) que pretende blindar parlamentares de processos criminais, conhecida como "PEC da Blindagem", posteriormente derrubada pelo Senado.

Em livro lançado recentemente no Brasil — Visões da desigualdade: Da Revolução Francesa até o fim da Guerra Fria (Todavia, 2025) — Branko Milanovic discute por que durante anos, no período da Guerra Fria, a desigualdade desapareceu como tema dos estudos econômicos.

O economista faz isso ao traçar uma história do pensamento ocidental sobre a desigualdade, através das obras de seis autores clássicos: François Quesnay, Adam Smith, David Ricardo, Karl Marx, Vilfredo Pareto e Simon Kuznets. Para cada um deles, faz uma pergunta hipotética: "O que seu trabalho revela sobre a distribuição de renda como ela existe em sua época, e como e por que ela pode mudar?"

Milanovic explica a importância dessa análise histórica: "Primeiro, é importante porque são autores canônicos. Em segundo lugar, porque vemos como a visão da desigualdade está sendo moldada pelas condições da época de cada um deles."

"E terceiro, é importante para nós agora para que percebamos que realmente esquecemos completamente dois aspectos importantes da desigualdade. Um é a estrutura de classes, e o segundo é o surgimento da elite", considera o economista.

À BBC News Brasil, Milanovic antecipou ainda o debate de seu novo livro, que deverá ser lançado nos Estados Unidos em novembro, The Great Global Transformation: National Market Liberalism in a Multipolar World ("A Grande Transformação Global: Liberalismo de Mercado Nacional em um Mundo Multipolar", em tradução livre, que será lançado no Brasil pela Todavia em 2026).

Nele, o economista discute como a ascensão da Ásia nas últimas décadas — principalmente da China, mas também de países como Índia, Indonésia e Vietnã — redesenhou o topo de renda global, levando a uma crescente insatisfação das classes médias de países desenvolvidos, que resultou na eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e em instabilidades diversas na Europa.

O especialista explica também porque considera Trump um "neoliberal otimista" e, ao mesmo tempo, um mercantilista na política externa.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Seu livro Visões da Desigualdade foi publicado recentemente no Brasil. Então, para começar, gostaria de lhe fazer a mesma pergunta hipotética que você fez aos seis autores clássicos: o que seu livro revela sobre a distribuição de renda em nosso tempo e como e por que ela pode mudar?

Branko Milanovic - Basicamente, quando você analisa esses autores com a perspectiva de observar ou interpretar como eles pensavam sobre desigualdade de renda, você tem que fazer um pouco da sua própria interpretação porque autores (que vieram) antes de [Vilfredo] Pareto — o que significa [François] Quesnay, [Adam] Smith, [David] Ricardo e [Karl] Marx — não tinham realmente o que consideramos desigualdade de renda como seu foco principal.

Então o que se aprende é que, para eles, a distribuição de renda se resumia essencialmente a distribuição entre classes.

Portanto, seja você um proprietário de terras, capitalista ou trabalhador, determinar sua posição na distribuição de renda e estudar a distribuição de renda entre indivíduos significava estudar quanto da produção ou renda total iria de fato para os proprietários de terras, quanto para os capitalistas, quanto para os trabalhadores.

Era um estudo muito orientado por classes, o que eu acho que desapareceu hoje em dia, em parte por causa da influência política de que não devemos estudar classes, em parte por causa da mudança na estrutura da economia neoclássica.

Então, quando chegamos a Pareto, há a introdução da desigualdade interpessoal, ela substitui a desigualdade entre classes.

Mas, para Pareto, o que aparece é uma elite no topo. Como você sabe, na verdade, os economistas não estudavam as elites até recentemente.

E então, finalmente, temos [Simon] Kuznets. Para quem as desigualdades eram o resultado da divergência de renda e produtividade entre agricultura e manufatura, entre áreas rurais e áreas urbanas. Então essa seria, em poucas palavras, a história dos seis autores.

Capa da edição brasileira do livro "Visões da desigualdade: Da Revolução Francesa até o fim da Guerra Fria", de Branko Milanovic. A capa é vermelha, com o título e nome do autor escritos em preto, ocupando boa parte da capa

Crédito,Divulgação/Todavia

BBC News Brasil - E por que isso é importante?

Milanovic - Primeiro, é importante porque obviamente eles são autores canônicos.

Em segundo lugar, é importante porque você vê como a visão da desigualdade está sendo moldada pelas condições da época para cada um deles.

E terceiro, é importante para nós agora para que percebamos que realmente esquecemos completamente de dois aspectos importantes da desigualdade.

Um é a estrutura de classes da desigualdade, e o segundo é o surgimento da elite.

BBC News Brasil - E qual é a implicação de esquecermos esses dois aspectos importantes?

Milanovic - A implicação é que devemos perceber que a economia neoclássica, que prevaleceu da década de 1970 até provavelmente 2010, realmente ignorou, em grande medida, as questões da desigualdade de renda.

Como menciono no livro, isso se aplica menos à América Latina [Milanovic menciona no livro os economistas estruturalistas latino-americanos, como Celso Furtado, e outros autores do terceiro mundo, como o egípcio Samir Amin, como exceções à regra de ignorar a concentração de renda durante a Guerra Fria].

Isso porque a ignorância sobre essa questão nos países capitalistas se deveu essencialmente, em primeiro lugar, à Guerra Fria, quando houve uma tentativa dos EUA de afirmar que não havia classes no país.

O segundo elemento foi o financiamento da pesquisa por pessoas muito ricas. E pessoas ricas obviamente não gostam de pesquisas sobre desigualdade.

E a terceira razão foi a mudança na economia neoclássica, onde na verdade não se estudava mais classes, mas o que é chamado de "agentes", e agentes são, por definição, iguais. Alguns têm mais capital, alguns menos, mas é irrelevante.

Então, por essas três razões, não estudávamos, e a implicação é que deveríamos analisar por que os estudos sobre distribuição de renda foram deixados de lado. É essencialmente porque as pessoas não queriam estudar, por razões políticas, as elites e a estrutura de classes.

O presidente John F. Kennedy dos Estados Unidos e o primeiro-ministro Nikita Khrushchev da União Soviética, durante a Cúpula de Viena, realizada em 4 de junho de 1961, em Viena, Áustria. A foto é em preto e branco, ambos os líderes vestem terno e gravata e estão sorrindo

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Na Guerra Fria, debate sobre classes foi cerceado tanto nos EUA, como na área de influência da União Soviética no Leste Europeu, diz Milanovic

BBC News Brasil - E por que foi diferente na América Latina?

Milanovic - A América Latina foi uma exceção, em primeiro lugar, porque a desigualdade é tão óbvia na região. Então as pessoas estudaram isso por muitos anos. Na verdade, há cerca de 100 anos de história de estudos da desigualdade de renda na América Latina, incluindo o Brasil.

Em segundo lugar, porque as pressões da Guerra Fria para afirmar que não se tratava de uma sociedade baseada em classes eram muito menores. As pressões da Guerra Fria eram mais fortes nos países do Leste Europeu, que tinham que afirmar que tinham abolido sua estrutura de classes.

E, nos EUA, isso ocorreu em meio à luta com a União Soviética na Guerra Fria.

BBC News Brasil - Então, trazendo a conversa para o Brasil. O país está atualmente debatendo sua reforma do Imposto de Renda mais significativa em décadas, que deve isentar ou reduzir impostos para 90% da população e aumentá-los para os mais ricos. Como o senhor vê essa reforma e como ela posiciona o Brasil no debate global sobre desigualdade?

Milanovic - O que foi interessante na América Latina — por que a América Latina foi diferente [das demais regiões] nos últimos 20, 25 anos — é que, se você observar os dados de pesquisas domiciliares, todos os países registraram um declínio significativo na desigualdade.

O Brasil é ainda mais impressionante na redução da desigualdade, mas isso também é verdade para o México, Chile, Peru. Acho que o único país em que isso não aconteceu foi a Colômbia.

Isso ainda faz da América Latina um continente com grande desigualdade, porque [esse declínio] começou a partir de um nível muito alto — no caso do Brasil, o coeficiente de Gini [indicador de desigualdade de renda que varia de 0 a 100, sendo 100 a desigualdade máxima] era de 60 e caiu para algo como 48 ou algo assim. Então é um declínio muito significativo.

Mesmo quando os pesquisadores ajustaram isso para a subnotificação [de renda] no topo [no Brasil, em trabalhos com os de Pedro Ferreira de SouzaMarc MorganSérgio Gobetti e, mais recentemente, Gabriel Zucman] — porque é verdade que as pessoas muito ricas, que são poucas em número, não são incluídas nas pesquisas, que são limitadas e tendem a subestimar suas rendas.

Membros exclusivos do Jockey Club no Rio de Janeiro, incluindo Teresa Aczel Quattrone, aguardam no Salão das Rosas o Grande Prêmio Brasil, a maior corrida de cavalos do ano no Brasil, em 11 de junho de 2017. São dois homens e duas mulheres, vestindo roupas extravagantes de ricos

Crédito,AFP

Legenda da foto,'Pessoas muito ricas não são incluídas nas pesquisas [domiciliares], que são limitadas e tendem a subestimar suas rendas', observa Milanovic

Então, mesmo quando você ajusta isso, você ainda encontra um declínio na desigualdade de renda, embora seja um declínio menor.

Então, nesse sentido, a América Latina é um continente atípico, porque tinha um nível de desigualdade alto, mas ele diminuiu.

É interessante que a desigualdade no Brasil agora é apenas um pouco maior que na China. É um ponto muito interessante. Se você olhar, 20 anos atrás, a desigualdade no Brasil era significativamente maior que a da China.

Então acredito que há forças econômicas por trás disso, não acho que seja só uma questão política. Na verdade, no Brasil, o declínio começou ainda no governo [Fernando Henrique] Cardoso. Obviamente, Lula foi muito importante, mas acho que começou antes de seu primeiro mandato.

BBC News Brasil - Mas o senhor está acompanhando a reforma atual que está sendo discutida no Congresso brasileiro? Acredita que ela pode reduzir ainda mais essa desigualdade?

Milanovic - Não há qualquer dúvida de que a reforma reduziria a desigualdade.

O argumento, eu suponho, do outro lado, é que é preciso considerar se isso realmente teria um efeito positivo na economia — o que eu acho que teria —, ou se os ricos esconderiam seu dinheiro, se eles colocariam o dinheiro no exterior e coisas assim.

Mas acho que não há dúvida de que, se houver uma reforma séria que afete os 10% mais ricos do Brasil, que são realmente muito ricos, reformando a tributação, essa reforma reduziria a desigualdade.

Prédios suntuosos na Av. Faria Lima, São Paulo

Crédito,Getty

Legenda da foto,'É interessante que a desigualdade no Brasil agora é apenas um pouco maior que na China... 20 anos atrás, a desigualdade no Brasil era significativamente maior que a da China'

BBC News Brasil - Isso nos leva à minha próxima pergunta. À medida que a reforma avança no Congresso, vemos uma resistência crescente por parte das empresas, uma vez que ela inclui a tributação de dividendos, que atualmente são isentos no Brasil. E também há esse medo de que os ricos possam deixar o país devido aos impostos mais altos, como o senhor mesmo mencionou. Como vê esse tipo de resistência sempre que políticas para reduzir a desigualdade são propostas?

Milanovic - É compreensível que sempre haverá resistência, porque políticas que reduzem a desigualdade tendem obviamente a afetar mais pessoas com rendas mais altas. Então, essas pessoas com rendas mais altas, especialmente aquelas com maior riqueza, resistem a isso.

E a resistência deles é vista fortemente na imprensa porque eles têm influência na mídia, eles têm influência sobre o que outras pessoas pensam.

A resistência das pessoas mais pobres é muito mais difícil de ver na mídia e nas notícias, porque as pessoas pobres não têm a mesma influência que as pessoas ricas.

Então, o fato de eles [os ricos] se oporem não é uma surpresa. Agora, a pergunta que se deve fazer, e eu realmente não sei a resposta, é se essa ameaça da chamada "greve de capital" ou de saída de capital do país é uma ameaça real ou não.

Muitas vezes isso foi usado como uma ameaça, mas na realidade isso não se concretizou porque essas pessoas ainda ganham mais dinheiro no Brasil do que colocando o dinheiro em outro lugar.

Mas não há dúvida de que uma reforma tributária que fizesse uma mudança significativa ou um aumento na alíquota máxima do imposto, reduziria a desigualdade. Eu acho que é algo óbvio. A questão é se isso é viável e se teria outros efeitos que não seriam necessariamente bons.

O deputado Arthur Lira e o presidente Lula olhando para lados opostos

Crédito,Reuters

Legenda da foto,Arthur Lira (PP-AL) é o relator da reforma do IR na Câmara e fez mudanças no texto para proteger produtores rurais de alta renda do aumento de tributação

BBC News Brasil - O senhor deve lançar um novo livro em breve, The Great Global Transformation. Sobre o que ele trata e como pode nos ajudar a entender o mundo após Trump?

Milanovic - É um livro sobre a ascensão da Ásia. Principalmente da China, é claro, mas também de outros países asiáticos, como Índia, Indonésia, Vietnã e assim por diante.

Os países asiáticos aumentaram suas rendas e seu poder econômico muito mais do que o resto do mundo. Isso produziu questões em dois níveis: é uma grande redistribuição de poder econômico, o que implica numa redistribuição de poder político e até militar; e levou ao conflito entre EUA e China.

Então documentei essa mudança drástica no poder econômico que ocorreu nos últimos 40 anos. E essa mudança dramática de poder entre Estados tem implicações na renda das pessoas.

Muitos chineses tiveram um aumento na sua renda e ultrapassaram pessoas de países ocidentais que estiveram no topo da distribuição global de renda por quase 200 anos. E isso teve impacto na estabilidade política interna de países ricos.

Então o objetivo do livro é explicar que os processos de recalibração do poder econômico entre a Ásia e o resto do mundo tiveram efeito na estabilidade geopolítica, mas também na estabilidade interna dos países.

Há uma mudança no poder econômico entre os países que se traduz na mudança nas posições de indivíduos pertencentes a diferentes países em uma ordem global.

Agora, se as classes médias dos países ocidentais caem na ordem global, elas ficam insatisfeitas. E a única maneira de manifestar essa insatisfação é na esfera política. E isso levou a Trump e a muitos outros tipos de instabilidade na Europa.

BBC New Brasil - Um dos elementos mais famosos do seu trabalho é a "curva do elefante", que levou o debate sobre desigualdade do nível nacional para o global. Como esse gráfico nos ajuda a entender o conflito atual entre a China e os EUA e a ascensão de Trump ao poder?

Milanovic - Essencialmente, o gráfico é o ponto de partida de tudo isso. O gráfico, como você sabe, representa as diferenças nas taxas de crescimento [da renda para as diferentes faixas de renda no mundo, entre 1988 e 2008].

Arte representando o gráfico conhecido como "curva do elefante", produzido por Branko Milanovic, sobre o desenho da cabeça de um elefante
Legenda da foto,A 'curva do elefante', que representa a desigualdade no mundo, é um dos gráficos mais influentes dos últimos anos

Então, o que o livro faz é ir além. Ele explica essa grande mudança, que é muito semelhante à Revolução Industrial.

Essencialmente, na Revolução Industrial, a Europa, os EUA e o Japão se tornaram muito mais poderosos economicamente e, com isso, muito mais poderosos política e militarmente. Não haveria colonialismo sem a Revolução Industrial.

Agora temos uma revolução tecnológica reversa, onde a Ásia se torna muito mais importante politicamente e economicamente. Isso leva ao conflito pela hegemonia entre EUA e China e talvez outros países como Índia, Rússia, Brasil e assim por diante.

Mas no nível individual, isso leva ao diferencial nas taxas de crescimento das rendas e à substituição de parte da elite global, que é inteiramente ocidental, por uma nova elite, que vem de grandes países asiáticos e de países como, por exemplo, o Brasil.

A elite brasileira do 1% mais rico sempre esteve no 1% mais rico do mundo, mas isso não era importante o suficiente para fazer uma diferença tão grande para as outras elites ocidentais.

Mas, quando você tem 1,4 bilhão de chineses, 1% deles são 14 milhões. Então, na verdade, é uma mudança muito significativa.

Gráfico conhecido como "curva do elefante", mostrando a evolução da desigualdade no mundo entre 1988 e 2008. O gráfico mostra o aumento de renda na Ásia, com a ascensão de uma classe média asiática puxada pela China, acompanhada por um declínio da renda da classe média do Ocidente

BBC News Brasil - Esse famoso gráfico mostra as tendências globais de desigualdade até 2008. Que formato ele teria hoje, se fosse estendido até 2025? O que aconteceu com a desigualdade global após a pandemia?

Milanovic - Na verdade, eu estendi os dados até 2023. O que aconteceu é que a forma da curva mudou.

Bem, duas coisas não mudaram. O crescimento das classes médias globais continua, o baixo crescimento da classe média alta dos países ocidentais continua. Mas o topo da distribuição de renda cresceu a taxas muito menores do que antes da crise financeira [de 2008]. Então isso mudou.

BBC News Brasil - Em artigos recentes, o senhor se referiu a Trump como um "neoliberal otimista". Por que o senhor o considera um neoliberal, sendo que ele tomou várias medidas de intervenção na economia dos EUA, adotou políticas comerciais protecionistas e elevou gastos do governo?

Milanovic - Na verdade, isso faz parte do livro. É preciso diferenciar — e isso infelizmente não tem sido diferenciado o suficiente até agora — neoliberalismo doméstico e neoliberalismo no exterior.

Se você olhar para Trump, ele desregulamentou coisas. Ele reduziu impostos. Ele quer um Estado menor e impostos mais baixos sobre o capital. Ele quer impostos mais baixos para os ricos.

Então, todas essas são medidas neoliberais em âmbito doméstico.

Internacionalmente, ele é um mercantilista. Portanto, temos que distinguir entre o neoliberalismo interno e o neoliberalismo externo. Ele se livrou do neoliberalismo no exterior, mas, na verdade, aprofundou o neoliberalismo doméstico.

E é por isso que o subtítulo do livro é o que eu chamei de "liberalismo de mercado nacional".

É um neoliberalismo que agora se aplica apenas ao mercado interno, não se aplica nem mesmo à esfera social interna, onde ele é contra todas as políticas de ação afirmativa, políticas de igualdade, e tudo o mais. E não se aplica de forma alguma à arena internacional.

Então é por isso que eu acredito e argumento que ele ainda é neoliberal no âmbito doméstico, não neoliberal no âmbito internacional.

O presidente americano, Donald Trump, na cerimônia de inauguração de um novo campo de golfe em Balmedie, perto de Aberdeen, Escócia, em 29 de julho de 2025. Ele veste um conjunto de moletom esportivo e boné escrito "USA" e segura uma tesoura usada para cortar a faixa inaugural

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,"Trump não é pessimista, ele é um otimista. Ele acredita que 'agora estamos no poder e permaneceremos no poder'", diz Milanovic

BBC News Brasil - E quanto ao confronto entre Trump e o Federal Reserve [o Banco Central dos EUA]? Como isso se encaixa na sua interpretação de que ele é um neoliberal?

Milanovic - A independência do Banco Central foi originalmente um projeto neoliberal, datado de 50 anos atrás. E era um projeto neoliberal cujo objetivo era deixar parte da tomada de decisões econômicas fora do controle popular, porque eles tinham medo que partidos sociais-democratas, socialistas, comunistas e outros vencessem.

E se eles vencessem, a formulação de políticas econômicas seria politizada. E o interesse deles, que na verdade era o interesse na proteção do capital, não seria seguido.

Então, a ideia da independência do Banco Central sempre foi uma ideia da direita, cujo objetivo era afirmar que se tratava de um domínio profissional, restrito, de especialistas, que não deveria estar sujeito ao controle do Legislativo ou Executivo.

Então isso era fruto de um sentimento de pessimismo, de que eles não seriam capazes de permanecer no governo e no controle.

Trump não é pessimista. Na verdade, ele é um otimista. Ele acredita que "agora estamos no poder e permaneceremos no poder. Então não há razão alguma para eu não controlar o Fed, porque acredito que seremos capazes de controlá-lo de qualquer maneira".

Então, eu vejo isso como a diferença entre neoliberais mais cautelosos e pessimistas, que queriam ter certeza de que os bancos centrais não seriam vítimas de medidas populistas ou socialistas, e alguém que acredita que nunca seria vítima disso porque "nós é que vamos governá-lo".

BBC News Brasil - E qual o senhor acha que pode ser o resultado desse confronto?

Milanovic - Eu realmente não sei, não sou um macroeconomista. Só estou explicando o que acredito ser a razão ideológica por trás disso.

Porque as pessoas que são macroeconomistas, cujos conhecimentos de história e ideologia são muito fracos, se convenceram de que bancos centrais independentes devem ter existido desde sempre e devem permanecer assim para sempre.

Então o que eu estava tentando fazer — usando, o livro Globalistas, de Quinn Slobodian [Enunciado Publicações, 2022], sobre a ascensão do pensamento neoliberal — era explicar ideologicamente por que temos um banco central independente. Isso não caiu do céu, surgiu de uma tomada de decisão política.

E, a propósito, isso também é verdade sobre a independência dos bancos centrais na maioria dos países, porque essa ideia foi muito fortemente promovida nas décadas de 1980 e 1990. E, em muitos países, foi quase totalmente aceita pelas elites nacionais pelas mesmas razões explicadas.

E é verdade que, em muitos países, os bancos centrais se tornaram independentes. Mas isso também significou que eles não tinham supervisão democrática. Esse era o ponto.

O presidente do Federal Reserve , Jerome Powell, falando num púlpito, com bandeiras dos Estados Unidos ao fundo

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,'A ideia da independência do Banco Central sempre foi uma ideia da direita', diz Milanovic. Na foto, o presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, que tem sofrido ataques de Donald Trump

BBC News Brasil - Com as nações mais pobres enfrentando tarifas mais altas do que as nações mais ricas sob o governo Trump, isso pode afetar as tendências globais de desigualdade de alguma forma nos próximos anos?

Milanovic - Pode, mas não tenho muita certeza de quanto. Li que a Índia [contra quem Trump impôs tarifas de 50%, similares às do Brasil] seria afetada significativamente, em 1,5% do PIB.

Mas não se deve perder muito tempo com as tarifas de Trump porque elas podem mudar na semana que vem. Então não sabemos realmente. Acho que para ele é um jogo. Ele aumenta a tarifa e então ganha outras coisas de você. E então diz: "Ok, agora vou diminuir as tarifas".

Então eu acho que as pessoas gastam muito tempo estudando ou falando sobre alguma coisa, que na semana seguinte se torna irrelevante.

BBC News Brasil - É bastante relevante para o Brasil no momento, porque fomos taxados em 50%. Então, para nós é um tópico bastante significativo no momento.

Milanovic - Eu vi esse número para a Índia e certamente terá um impacto no Brasil. Provavelmente de cerca de 1% do PIB, e isso não é desprezível.

Um crescimento mais lento provavelmente seria ruim para a desigualdade no Brasil e para a desigualdade no mundo. Mas isso não é significativo.

A desigualdade no mundo é um fenômeno grande demais e mesmo as tarifas de Trump não serão vistas com tanta clareza [no horizonte maior de tempo]. E, como eu disse, não acho que elas vão durar.

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