SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Ethos de que a crítica do mundo e a autotransformação são inseparáveis por Egidio Guerra.

 



Introdução: Uma Aliança Filosófica para a Transformação 

Os autores (Agamben, Foucault, Deleuze, Guattari, Rancière e Bergson) formam uma constelação de pensamento pós-estruturalista e vitalista que compartilha um objetivo comum: desmontar as estruturas fixas que organizam a vida (política, subjetividade, saber) para liberar potenciais de mudança. Eles não oferecem respostas prontas, mas métodos de questionamento. Juntos, eles nos equipam para uma análise crítica multidimensional e nos convocam a uma prática criativa de reinvenção da existência. 

 Resumo Detalhado das Obras 



1. Michel Foucault (1926-1984) - A Arqueologia do Poder e do Saber 

  • Conceitos-Chave: Poder-Saber (Savoir-Pouvoir)DispositivoBiopoderGovernamentalidadeArqueologia/Genealogia. 

  • Contribuição Central: Foucault demonstra que o poder não é apenas repressivo ("não faça isso"), mas principalmente produtivo. Ele produz realidades, saberes, discursos e tipos de subjetividade. O "saber" (como a psiquiatria, a medicina, a economia) não é neutro; está intrinsecamente ligado a relações de poder que definem o que é "verdadeiro", "normal" e "saudável". O Biopoder é a gestão da vida das populações (natalidade, saúde, higiene), característica das sociedades modernas. A Governamentalidade é a arte de governar, não apenas o Estado, mas a conduta dos indivíduos. Sua metodologia (genealogia) investiga a origem contingente e conflituosa de nossas certezas mais fundamentais. 

2. Gilles Deleuze (1925-1995) & Félix Guattari (1930-1992) - A Filosofia da Vida como Fluxo e Criação 

  • Conceitos-Chave: RizomaMáquinas DesejantesCorpo sem Órgãos (CsO)DevenirEstruturas de Poder: "Estado" vs. "Nômade". 

  • Contribuição Central: Eles propõem uma ontologia baseada no fluxo, na diferença e na criação. O desejo não é falta, mas uma força produtiva que flui pela realidade (é uma "máquina desejante"). A sociedade funciona capturando e organizando esses fluxos desejantes em estruturas rigidificadas (a "Máquina Territorial" e o "Estado"). Eles opõem o pensamento arbóreo (hierárquico, com raiz e tronco) ao rizomático (conexões horizontais e múltiplas). O convite é para criar "linhas de fuga" do instituído, buscar "devenires" (tornar-se outro, tornar-se mulher, animal, imperceptível) e experimentar novas possibilidades de vida no "Corpo sem Órgãos". 

3. Giorgio Agamben (1942-) - A Vida Nua e o Estado de Exceção 

  • Conceitos-Chave: Homo Sacer (Vida Nua)Estado de ExceçãoDispositivoPotência. 

  • Contribuição Central: Agamben leva a biopolítica de Foucault a seus extremos lógicos. Ele argumenta que o fundamento oculto do poder soberano é a produção da "vida nua" (zoe) – a vida biológica despojada de direitos políticos e valor (exemplificada pela figura do Homo Sacer, que pode ser morto, mas não sacrificado). O Estado de Exceção (onde a lei é suspensa, mas sua força permanece) tornou-se a regra paradigmática de governo moderno. Os "dispositivos" são tudo o que captura e governa a vida. Contra isso, Agamben aponta para a "potência" não como poder de fazer, mas como poder de não-fazer, uma inoperosidade que poderia abrir novas formas de comunidade. 


4. Jacques Rancière (1940-) - A Igualdade da Inteligência e a Partilha do Sensível 

  • Conceitos-Chave: Partilha do Sensível (Partage du Sensible)DissensoPressuposto da IgualdadeEmancipação Intelectual. 

  • Contribuição Central: Rancière foca na estética política. A "partilha do sensível" é a ordem invisível que define o que é visível, dizível e pensável em uma comunidade. A política verdadeira, para ele, não é a gestão do Estado, mas o "dissenso": o ato de quem não tem parte quebra essa ordem, reinscrevendo-se no espaço comum. Ele defende o pressuposto da igualdade de inteligências de todos os seres humanos. A educação emancipadora, inspirada em Joseph Jacotot, não é sobre a transferência de conhecimento de um mestre sábio para um aluno ignorante, mas sobre verificar que todos podem aprender por si mesmos, rompendo com a "lógica explicadora" que perpetua a desigualdade. 


5. Henri Bergson (1859-1941) - A Duração e o Elan Vital 

  • Conceitos-Chave: Duração (Durée)Elan Vital (Impulso Vital)IntuiçãoDiferença entre Tempo Espacializado e Tempo Vivido. 

  • Contribuição Central: Bergson é o pai do vitalismo filosófico moderno. Ele critica a ciência e a razão por espacializarem o tempo, tratando-o como uma série de pontos estáticos. Contra isso, ele coloca a "duração", o tempo real, contínuo, fluido e criativo da consciência e da vida. O universo é impulsionado por um élan vital, uma força criadora que constantemente produz novidade. O método para acessar essa realidade em fluxo não é a análise, mas a intuição. Sua filosofia é um convite a pensar a vida como processo de criação contínua, não como mecanismo. 

 

Conexões e Aplicações nas Nossas Capacidades de Ler o Mundo 

Agora, vamos integrar essas ferramentas para avaliar criticamente nossa vida e gerar um processo educacional transformador. 


1. Capacidade Ética: A Vida como Campo de Batalha e Potência 

  • Foucault + Agamben: A ética não é sobre seguir regras, mas sobre a cuidado de si (Foucault) como uma prática de liberdade frente aos "dispositivos" que nos governam. A questão ética central torna-se: como evitar tornar-se um gestor da "vida nua" (Agamben), seja a nossa ou a dos outros? Como resistir à lógica que separa a vida qualificada da vida descartável? 

  • Bergson + Deleuze/Guattari: A ética é avaliar que tipo de existência estamos criando. É uma ética imanente: o bem é o que amplia as conexões, aumenta a potência de agir e participa do élan vital criador. O mal é o que nos prende a identidades rigidificadas, interrompe os fluxos do desejo e nos separa da vida. 




2. Capacidade Política : Do Dissenso à Criação de Mundos 

  • Rancière + Agamben: A política começa quando os "sem-parte" (Rancière) contestam a "partilha do sensível" que os torna invisíveis. Isso se conecta com a luta contra o "estado de exceção" permanente (Agamben), que produz cidadãos de primeira e segunda categoria. A ação política é um ato de fala e aparência que redefine o espaço comum. 

  • Deleuze/Guattari + Foucault: A política também é uma luta entre forças "nômades" (criativas, rizomáticas) e "estatais" (de captura e organização). A crítica não é apenas denunciar o poder (Foucault), mas cartografar as linhas de fuga e construir novos "agencements" (arranjos) de desejo que escapem às formas dominantes. 

3. Capacidade Estética: A Sensibilidade como Terreno de Invenção 

  • Rancière + Bergson + Deleuze: A estética não é sobre a arte, mas sobre a percepção. A "partilha do sensível" (Rancière) define o que podemos sentir. A arte, portanto, tem um papel político crucial: ela pode criar novos "circuitos do sensível", novas maneiras de ver e sentir. Isso ecoa a intuição bergsoniana, que busca acessar a "duração" real, e a ideia deleuziana de que a arte é um "bloco de sensações" que preserva e transmite forças, nos tornando capazes de afetar e ser afetados de novas maneiras. 



4. Capacidade Econômica: Cartografando os Fluxos do Desejo e do Capital 

  • Deleuze/Guattari + Foucault: O capitalismo é o "dispositivo" econômico por excelência. Ele é incrivelmente bem-sucedido em capturar os fluxos desejantes (Deleuze/Guattari) e canalizá-los para a produção e o consumo. A governamentalidade neoliberal (Foucault) é a técnica que nos ensina a sermos "empresários de nós mesmos", internalizando a lógica do mercado. A crítica econômica, portanto, deve analisar como nosso desejo é mobilizado para sustentar um sistema que pode ser ecologicamente e socialmente destrutivo. 

5. Capacidade Espiritual: A Conexão com o Fluxo da Vida 

  • Bergson + Deleuze/Guattari + Agamben: Aqui, "espiritual" não é religioso, mas uma experiência de conexão com a força criativa da vida (Bergson's élan vital). É uma espiritualidade imanente. É a experiência de "devenir" (Deleuze), de se dissolver nas forças não-humanas da natureza. É também a busca pela "potência" (Agamben) como pura possibilidade, uma abertura radical a um futuro não predeterminado, oposta à passividade espiritual. 

O Processo Educacional de Auto-Reflexão e Transformação 

Esta "caixa de ferramentas" filosófica gera um processo educacional radical: 

  1. Desnaturalização (Foucault/Rancière): A educação não é sobre acumular informações, mas sobre aprender a questionar as evidências. Por que consideramos "normal" uma certa organização social? Quem define o que é um "saber válido"? Quem fica de fora dessa partilha? 

  1. Cartografia (Deleuze/Guattari): Em vez de apenas interpretar o mundo, somos convidados a cartografá-lo. Quais são os dispositivos de poder que nos afetam? Quais são as linhas de fuga possíveis? Como nosso desejo está conectado às máquinas sociais? 

  1. Criação (Bergson/Deleuze): O conhecimento crítico só tem valor se for transformado em atitude criativa. A educação deve ser um laboratório para experimentar novas formas de vida, novos modos de subjetividade, novas relações sociais e com o ambiente. É o "devir-revolucionário". 

  1. Emancipação (Rancière): O educador não é um mestre explicador, mas um companheiro que presume a igualdade de inteligência do educando. O objetivo é criar as condições para que cada um se aproprie da capacidade de pensar e agir por si mesmo, tornando-se um sujeito político. 

  1. Responsabilidade (Agamben): Ao tomarmos consciência de como estamos implicados nos mecanismos que produzem "vida nua" (questões ambientais, desigualdades brutais), somos chamados a uma responsabilidade ética. A educação torna-se um espaço para imaginar comunidades não baseadas na exclusão. 

Conclusão: A síntese desses pensamentos não oferece um programa, mas um ethos: o de que a crítica do mundo e a auto-transformação são inseparáveis. Trata-se de uma educação para a vida, que nos arranca das certezas paralisantes e nos lança num processo contínuo de leitura crítica, reflexão e, sobretudo, de criação prática de alternativas para os urgentes problemas sociais e ambientais do nosso tempo. É uma educação que não prepara para o mundo que é, mas que ajuda a inventar o mundo que pode vir a ser. 

 


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