
A notícia deve ter passado despercebida para muitos leitores que abriram os jornais no dia 3 de setembro de 1986. Era um assunto digno apenas de uma nota pequena, sem muito destaque.
Capitão é punido com 15 dias de reclusão, anunciava a Folha de S.Paulo.
Preso o capitão que escreveu em revista semanal, noticiava O Globo, num espaço ainda mais modesto.
Mas, passados 39 anos, pode-se dizer que os jornais registraram naquele dia de inverno um pedaço da história do Brasil.
O tal capitão da manchete se chamava Jair Messias Bolsonaro, um então desconhecido militar do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista, em Deodoro, no Rio de Janeiro.
A revista citada era Veja (Editora Abril) e o que o capitão escreveu foi um artigo com críticas ao que considerava má remuneração dos militares, desafiando assim seus superiores.
A punição disciplinar a Bolsonaro em 1986, ainda que modesta, foi a primeira vez que ele foi privado de sua liberdade por desrespeitar as regras.
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Nesta semana, Bolsonaro enfrenta a fase final do julgamento que pode condená-lo a mais de 40 anos de prisão pela acusação de tentar tramar um golpe de Estado que impediria a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, eleito em 2022.
Mas, apesar do pouco espaço inicial dado à primeira prisão do então capitão, aquela punição acabou funcionando como uma catapulta à vida pública de Bolsonaro.
À Justiça Militar, ele chegou a admitir em depoimento que se tornou mais conhecido entre militares e a população justamente após a publicação do artigo na Veja, como mostrou o jornalista Luiz Maklouf Carvalho no livro O Cadete e o Capitão (Editora Todavia).
Durante e depois da prisão, militares demonstraram uma onda de solidariedade com telegramas a Bolsonaro e mulheres de oficiais fizeram protestos em frente de quartéis.
Nos meses que seguiram, a imprensa passou a acompanhar mais de perto a demanda do capitão por melhores salários — o que levou a uma reportagem na própria revista Veja, em 1987, sobre um suposto plano de Bolsonaro e colegas para explodir bombas em quartéis e instalações militares no Rio de Janeiro.
A ideia, segundo apuração e entrevistas da jornalista Cássia Maria, seria pressionar o governo sobre os salários e demonstrar fraqueza do então ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves.

Bolsonaro sempre negou esse plano, acusando a jornalista e a revista de mentirem, mas foi a julgamento. No Superior Tribunal Militar (STM), ele foi absolvido.
A advogada Elizabeth Diniz Souto, responsável pela bem-sucedida defesa de Bolsonaro no STM em 1988, lembra que seu cliente a procurou em Brasília, na etapa final do julgamento.
"Eu sabia que ele era um simples militar, sem nenhuma projeção no meio e nem era bem quisto no quartel", lembra Souto à BBC News Brasil
Mas, com aquele julgamento, fora dos muros militares, Bolsonaro foi ganhando notoriedade.
"Eu era toda hora entrevistada, os jornais deram muita cobertura", conta a advogada.
Apenas quatro meses depois do julgamento, Bolsonaro se elegeria vereador do Rio de Janeiro como um representante dos militares. Começava ali o caminho que levou ele à Presidência.
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15 dias de prisão

Na seção Ponto de Vista da primeira edição de Veja de setembro de 1986, o capitão Bolsonaro assinou o artigo com o título "O salário está baixo".
Foi uma escolha de levar a reclamação a público. Em um depoimento à Justiça Militar, Bolsonaro admitiu que levou seus argumentos a seus superiores, mas que, diante do silêncio, preferiu publicar o artigo. O texto dizia:
"Reclamo — como fariam, se pudessem, meus colegas — um vencimento digno da confiança que meus superiores depositam em mim."
"Não consigo sonhar as necessidades mínimas que uma pessoa do meu nível cultural e social poderia almejar."
O capitão justificava que cadetes estavam abandonando a Academia das Agulhas Negras (Aman), em Resende (RJ), não porque estavam sendo acusados de uso de drogas e "homossexualismo", como relataram reportagens na imprensa. Mas por falta de perspectiva profissional.
Segundo os documentos revelados no livro O Cadete e o Capitão, Bolsonaro reconheceu posteriormente que sua escolha de publicar o texto configurava um "ato de indisciplina" e "deslealdade".
A publicação foi considerada pelos superiores militares como uma infração a seis artigos do regulamento do Exército em vigor na época.
Entre eles, a manifestação de assuntos políticos, a discussão de assuntos militares em veículos de comunicação e ser indiscreto em relação a assuntos de caráter oficial.
A prisão disciplinar de Bolsonaro por 15 dias teve início no dia 1º de setembro de 1986, dentro do prédio do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista, no Rio.
Apesar de ter cometido uma infração considerada grave, o capitão não cumpriu a pena máxima (30 dias), porque aquela era a primeira punição do tipo para ele.
Há poucos detalhes sobre o período em que Bolsonaro ficou preso, já que o próprio ex-presidente não costuma falar sobre o assunto.
O regimento do Exército em vigor na época dizia que a prisão disciplinar consistia "no encarceramento do punido em local próprio e designado para tal".
Ainda assim, segundo o regimento, o preso podia, caso autorizado, se alimentar no refeitório. Como era capitão, Bolsonaro também não ficou preso no mesmo lugar que outros punidos de patentes mais baixas.
Em depoimento em dezembro de 1987, Bolsonaro comentou brevemente que poucos colegas foram visitá-lo durante a prisão disciplinar.
Apesar da punição e das poucas visitas, o protesto de Bolsonaro na revista Veja recebeu apoio quase imediato.
Na edição seguinte ao artigo, a revista trazia imagens de mulheres de oficiais protestando no complexo militar da Praia Vermelha, no Rio. Também relatava o recebimento de 150 telegramas "disparados de todas as regiões do país".
A reportagem trazia o depoimento do capitão Artur Teixeira, do Instituto Militar de Engenharia (IME).
"Ele expôs a insatisfação geral de uma classe."
Após cumprida a pena, Bolsonaro passaria apenas um ano longe das manchetes.

O plano das bombas
Na edição de 28 de outubro de 1987, a Veja revelava o plano de dois capitães, Bolsonaro e Fábio Passos, de explodir bombas na Vila Militar do Rio, na Aman e em quartéis.
A repórter Cássia Maria relatava encontros e conversas com os militares.
"Só a explosão de algumas espoletas", disse Bolsonaro, segundo a reportagem.
"Sem o menor constrangimento, Bolsonaro deu uma detalhada explicação sobre como construir uma bomba-relógio. O explosivo seria o trinitrotolueno, o TNT, a popular dinamite."
O texto dizia no início que os contatos da repórter com os militares se baseavam "num acordo de sigilo". Mas que este se tornou "impossível" no momento em que eles falaram de bombas.
Chamado para dar explicações na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao), Bolsonaro fez uma defesa negando o encontro com a jornalista e o teor da reportagem. A negação e o apoio do Exército foram noticiados nos dias seguintes.
Poucos dias depois, Veja publicou nova manchete: "O ministro do Exército acreditou em Bolsonaro e Fábio, mas eles estavam mentindo".
A reportagem trazia croquis feitos à mão atribuídos a Bolsonaro — peças-chave para o julgamento final.
Um dos desenhos mostrava como funcionava uma bomba-relógio capaz de explodir uma tubulação da adutora do rio Guandu, no Rio de Janeiro. Havia ainda detalhes sobre testemunhas que presenciaram entrevistas do capitão.
Com as reportagens, foi instaurada uma sindicância no Exército.
Foi formado o chamado Conselho de Justificação, e Bolsonaro foi afastado de suas funções.
Esse conselho, formado por três militares, funciona como um procedimento administrativo, explica a advogada e cientista política Erika Kubik, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista na história da Justiça Militar.
Numa primeira avaliação, o órgão concluiu por unanimidade que Bolsonaro mentiu ao negar as conversas com a revista e atestou que havia o plano de explodir bombas.
"O Conselho decide que Bolsonaro é 'não justificado'. Ou seja, entende que esse militar não pode mais continuar na ativa, por ser uma desonra, por exemplo", conta Kubik.
A professora explica que, naquela época pós-ditadura, o conselho tentava "profissionalizar" os militares, em contraponto a atuação política marcada nos anos de chumbo. "Não queriam mais militar falando com a mídia, porque já tinha tido muito problema", diz Kubik.
A decisão do Conselho foi enviada ao ministro do Exército, Leônidas Gonçalves, que concordou com a decisão de afastamento de Bolsonaro e Passos.
No rito natural, o processo subiu ao Superior Tribunal Militar (STM).

Julgamento no STM
Tanto no Conselho de Justificação quanto no STM, a questão central era: os croquis apresentados pela revista Veja confirmavam a veracidade do plano relatado na reportagem?
Para isso, os desenhos passaram por perícias. Dois laudos periciais incriminaram Bolsonaro, e um foi inconclusivo, relata Luiz Maklouf Carvalho em seu livro.
Na sua defesa, Bolsonaro contratou a advogada Elizabeth Diniz Souto, profissional com larga experiência na Justiça Militar.
Souto havia atuado na defesa de inúmeros presos políticos durante a ditadura e, mais tarde, ganharia notoriedade nacional ao participar do julgamento do assassino de seu marido e de seu filho.
"Eu fazia a defesa de presos políticos por idealismo. No caso de Bolsonaro, foi profissionalismo. É uma diferença muito grande", explica Souto, que diz "pagar preço alto" por essa atuação até hoje.
A advogada conta que construiu sua argumentação em torno da desqualificação dos croquis como provas que ligassem diretamente Bolsonaro à autoria do plano.
"Eu mostrei que era impossível atestar quem havia feito a linha reta de um croqui. A única forma de estabelecer a autoria seria se houvesse impressão digital no papel", recorda.
A defesa também sustentava que, diante da dúvida, deveria prevalecer o princípio do in dubio pro reo, ou seja, o réu deveria ser beneficiado.
Relembrando sua atuação, Souto rejeita a ideia de que o julgamento no STM tenha sido "parcial" a favor de Bolsonaro.
"Eu mostrei [a falta de provas] de acordo com a lei e baseada nos laudos", diz.
Na visão da professora Erika Kubik, após o fim da ditadura, o STM, que já não julgava mais civis, teve atuação de certa forma corporativista.
"Não que fosse um jogo de cartas marcadas, mas creio que eles tinham muito mais uma ideia de autoproteção das Forças Armadas naquele momento de transição", avalia.
Elizabeth Souto conta que, após o julgamento, só voltou a ter contato com a família Bolsonaro uma única vez: recebeu da então esposa do capitão, Rogéria, uma bolsa preta de festa, que guarda até hoje.
"Ele pagou o que pedi e foi isso. Tanto que depois fiquei chocada quando ele virou deputado, porque não era politicamente relevante naquela época", relata.
A longa sessão em que os ministros declararam seus votos, em 16 de junho de 1988, ficou marcada por duras críticas à imprensa e, em especial, à jornalista Cássia Maria, autora da reportagem, que chegou a ser chamada de "cascavel".
"Repórter não é flor que se cheire", declarou na sessão o ministro general Alzir Benjamin Chaloub.
Por 9 votos a 4, o STM absolveu Bolsonaro e o capitão Fábio Passos.
Dessa forma, Bolsonaro foi reintegrado às Forças Armadas brasileiras — mas por pouco tempo: permaneceu apenas alguns meses, até deixar a carreira militar para se dedicar integralmente à vida política.
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