SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

O Conhecimento que Brota do Chão: Para Além dos Muros e dos Diplomas por Egidio Guerra.

 


O conhecimento mais profundo e transformador nem sempre emerge das bibliotecas silenciosas ou dos laboratórios assépticos das universidades. Muitas vezes, ele brota do barro da realidade, do calor dos territórios que habitamos e das conversas entrelaçadas na vida cotidiana. É um saber que não pede licença às autoridades instituídas; ele simplesmente acontece, de baixo para cima, como um sistema vivo e auto-organizado. 



Steve Johnson, em seu livro Emergência, nos oferece uma metáfora poderosa para entender esse fenômeno. Ele compara a inteligência coletiva a um sistema emergente, sem um controlador central, mas que gera ordem e complexidade a partir de interações simples. O cérebro humano, com sua rede de neurônios; as cidades, com seu fluxo caótico e criativo de pessoas; e a internet, com sua teia descentralizada de informações – todos são exemplos de como saberes coletivos e soluções inovadoras podem surgir espontaneamente da multidão que dialoga, compartilha e colabora. 


Essa ideia é uma contestação direta ao que Michel Foucault denunciou como os "poderes-saber". Para Foucault, o conhecimento não é neutro; está intrinsecamente ligado a relações de poder que determinam o que é considerado "verdade" em uma dada sociedade. A Universidade, os diplomas e as instituições científicas frequentemente atuam como mecanismos de validação e imposição de um único tipo de saber, silenciando e inferiorizando todos os outros. O diálogo genuíno entre grupos sobre seus saberes, vidas e desafios vai além dessa hierarquia. É um ato de resistência que valoriza a experiência vivida. 

 


A história está repleta de exemplos. Os grandes pensadores nem sempre surgiram na Academia. Muitos foram autodidatas, artesãos ou simplesmente pessoas curiosas que pensaram a partir de seu trabalho e de suas perguntas. Os filósofos pré-socráticos, como Tales de Mileto e Heráclito, buscavam entender a natureza (a physis) não em salas de aula, mas na observação direta do mundo, muitas vezes através de uma linguagem poética e enigmática que unia razão e intuição. A poesia, as revelações divinas e as práticas de cura sempre foram veículos fundamentais de conhecimento em culturas ancestrais, formas de acessar verdades que a razão pura não consegue capturar. 


Walter Benjamin, ao caminhar pelas Passagens de Paris no século XIX, não estava apenas fazendo uma pesquisa histórica; ele estava aprendendo com a própria arquitetura e os objetos comuns uma "dialética em imagens" do capitalismo moderno. Sua visita a Ibiza, por sua vez, o conectou com uma vida mais simples e elemental, abrindo seus olhos para um conhecimento sensorial e tátil que a metrópole havia apagado. Giorgio Agamben
, por outro lado, viu em São Francisco de Assis e na sua regra monástica um "saber sacro" que propunha uma forma de vida para além da dicotomia entre o sagrado e o profano, um modelo de comunidade não baseado na posse, mas no uso.
 

A experiência do território é, por si só, uma fonte de revolução interior. Goethe e Nietzsche tiveram suas visões de mundo profundamente alteradas ao visitarem a Itália. Para Goethe, a viagem foi uma libertação dos rigores do norte, uma imersão numa cultura da luz, da cor e da sensualidade que transformou sua arte. Para Nietzsche, a claridade do Mediterrâneo foi o antídoto para a "doença" do pessimismo alemão, inspirando um pensamento mais afirmativo e dançante. 


Hoje, os processos de decolonialidade resgatam e valorizam esses saberes subjugados. Eles nos lembram que os conhecimentos indígenas e
ancestrais não são "superstições", mas sistemas complexos de entendimento ecológico, medicinais e cosmológicos. Sabem, há milênios, o que a ciência ocidental só recentemente começou a descobrir: a interdependência de todas as formas de vida, as propriedades curativas de plantas específicas e os ciclos sutis da natureza.
 


Um exemplo atual e eloquente é narrado por Candice Millard em Rio dos Deuses, que reconta a busca pela nascente do Rio Nilo no século XIX. Enquanto exploradores britânicos como Richard Burton e John Hanning Speke levavam o crédito (e a glória) pela "descoberta", a verdade é que eles dependiam inteiramente do conhecimento local. Foram os guias africanos, os povos que habitavam aquelas terras há gerações, que realmente conheciam a paisagem, os rios, os sinais da natureza e os caminhos seguros. Eles já sabiam onde o Nilo nascia; o que ocorreu não foi uma descoberta europeia, mas uma revelação para o mundo ocidental, mediada por um saber que sempre esteve lá, enraizado no território.


 

Portanto, o conhecimento que emerge da realidade e dos territórios é um convite à humildade epistemológica. É um lembrete de que a verdadeira sabedoria é polifônica. Ela habita tanto no tratado filosófico quanto no verso do poeta, no ritual de cura do pajé quanto no mapa mental do guia local, no diálogo comunitário quanto no sonho solitário. É um saber que se constrói no chão da vida, no calor das trocas e na coragem de pensar com os próprios pés, honrando a inteligência coletiva que, desde sempre, flui como um grande rio, muitas vezes subterrâneo, mas sempre vital. 




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