SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Peter Kingsley: Recuperando as Raízes Esquecidas do Ocidente por Egidio Guerra



Peter Kingsley é um filósofo, estudioso de religiões e escritor britânico cujo trabalho representa um dos projetos intelectuais mais radicais e provocativos dos nossos tempos. Sua obra não é simplesmente acadêmica; é uma missão de resgate. Kingsley dedica-se a desenterrar as origens autenticamente místicas e xamânicas da filosofia e da civilização ocidental, origens essas que, segundo ele, foram sistematicamente apagadas, negadas e distorcidas ao longo de séculos. 

Seu pensamento desafia diretamente as narrativas convencionais sobre o nascimento da razão na Grécia Antiga, argumentando que figuras como Parmênides e Empédocles não eram "filósofos racionais" no sentido moderno, mas sim mestres espirituais, poetas-videntes e curadores cujos ensinamentos estavam profundamente enraizados em tradições de êxtase, sonho e descenso aos mundos subterrâneos (o inconsciente). 

Os Pilares Centrais do Pensamento de Kingsley 

A Filosofia como Caminho Espiritual: Para Kingsley, a filosofia original (em grego, philosophia, "amor à sabedoria") era uma prática transformadora destinada a conduzir o indivíduo a uma experiência direta da Realidade (um termo-chave que ele escreve com R maiúsculo). Não se tratava de debater ideias, mas de morrer para o ego e renascer para uma consciência divina e una. 


A Tradição da Nekyia (A Descida): O tema central em sua obra é a nekyia — a jornada para o submundo, para as profundezas da psique. Ele vê essa descida, presente em mitos como o de Perséfone e Hades e na Odisseia de Homero, como o cerne da iniciação espiritual. É no escuro, no silêncio e no aparente vazio que se encontra a verdadeira vida e a conexão com o divino. 

A Recuperação de Parmênides e Empédocles: Kingsley realizou uma releitura revolucionária desses dois pré-socráticos. Em sua interpretação, o "Poema da Natureza" de Parmênides não é um tratado de lógica, mas o relato de uma jornada xamânica. A deusa que ele encontra no submundo revela-lhe a unidade fundamental de todo o ser. Empédocles é retratado não como um cientista primitivo, mas como um mago e profeta que falava da reencarnação, da culpa cósmica e do poder do amor (Philia) para reunir o que está separado. 

A Crítica à Cultura Ocidental Moderna: Kingsley é um crítico feroz do mundo moderno, que ele vê como profundamente doente, desconectado de suas raízes e vivendo em um estado de negação da morte e do inconsciente. Nossa obsessão pela luz, velocidade, atividade e superficialidade é, para ele, um sintoma dessa doença. A "cura" só pode vir do reencontro com o que foi reprimido: a escuridão, a quietude, a receptividade e a morte. 

A Importância da Procura: Ele enfatiza que a verdadeira espiritualidade não é sobre encontrar respostas rápidas, mas sobre se perder, sobre entrar num estado de profunda incerteza e abertura — o que ele chama de procura. É apenas quando desistimos do controle que o divino pode nos encontrar. 


Análise de suas Principais Obras :

1. Ancient Philosophy, Mystery, and Magic: Empedocles and Pythagorean Tradition (1999) 


Este é seu trabalho acadêmico fundacional, no qual ele demonstra, com rigor filológico, as conexões profundas entre Empédocles e as tradições de mistério pitagóricas. Kingsley argumenta que os conceitos de Empédocles sobre os elementos, o amor e o ódio, estão inseridos em um contexto ritualístico e mágico, destinado à purificação da alma e à sua libertação do ciclo de reencarnações. 


2. In the Dark Places of Wisdom (1999) / Nos Antros do Saber (ed. brasileira) 

Aqui, Kingsky apresenta suas ideias para um público mais amplo. O livro é uma investigação fascinante sobre Parmênides e a colônia grega de Eleia, no sul da Itália. Ele traça a linhagem de Parmênides até os mestres de mistérios da Anatólia e mostra como a filosofia floresceu a partir de práticas de incubação de sonhos (dormir em santuários para receber curas e visões) em locais dedicados a deuses da cura como Apolo e Asclépio. 



3. Reality (2003) / Realidade (ed. brasileira) 

Este é talvez o livro mais intenso e transformador de Kingsley. Reality é uma imersão profunda no "deserto" interior, um convite à inação radical e ao silêncio. Ele argumenta que a verdadeira Realidade não é um conceito, mas uma presença viva que só pode ser experimentada quando a mente agitada se aquieta. O livro é uma prática em si mesmo, destinado a desestabilizar o leitor e levá-lo a um ponto de colapso onde uma nova percepção pode
surgir.
 


4. A Story Waiting to Pierce You: Mongolia, Tibet and the Destiny of the Western World (2010) 

Neste livro, Kingsley expande seu escopo, conectando as tradições xamânicas da Mongólia e do Tibete com a sabedoria pré-socrática. Ele conta a história de um rei mongol que busca um mestre tibetano, usando-a como uma parábola para a necessidade do Ocidente de buscar sua própria sabedoria esquecida. O tema central é a "história que espera para nos perfurar" — a ideia de que certas verdades nos encontram e nos transformam quando estamos prontos. 


5. Catafalque: Carl Jung and the End of Humanity (2018) 

Catafalque é a obra magna e mais controversa de Kingsley. É um livro monumental, dividido em dois volumes, que oferece uma reinterpretação radical da vida e da obra de Carl Gustav Jung. Kingsley argumenta que Jung não era um psicólogo no sentido comum, mas um vidente cuja missão era preparar a civilização ocidental para uma morte iminente — não uma morte física, mas a morte de uma era, de uma forma de consciência. 

O Título: "Catafalque" é uma estrutura que sustenta um caixão. Kingsley vê a obra de Jung como o catafalque que sustenta o cadáver da civilização ocidental, permitindo que um rito de passagem ocorra. 

A Tese Central: Jung, através de sua própria descida ao inconsciente (documentada no Livro Vermelho), entendeu que o cristianismo havia falhado em incorporar a escuridão e que a humanidade estava à beira de uma catástrofe psíquica. Seu trabalho era, portanto, uma tentativa de criar uma nova mitologia para o futuro, baseada na integração da sombra e no retorno aos arquétipos mais profundos. 

Polêmica: Kingsley critica severamente a "indústria junguiana", que, em sua opinião, domesticou e intelectualizou a mensagem revolucionária e perigosa de Jung. Catafalque não é um livro sobre Jung; é um livro através de Jung, um chamado final para que enfrentemos a escuridão de nosso tempo. 


6. A Book of Life (2020) 

Após a intensidade sombria de Catafalque, A Book of Life surge como um guia prático e acessível. É um convite para parar, desacelerar e escutar a vida que já está presente dentro e ao nosso redor. Menos focado em erudição histórica, este livro oferece reflexões curtas e poéticas sobre como encontrar significado e conexão em um mundo frenético, enfatizando a importância de se render ao momento presente. 

Conclusão 

O pensamento de Peter Kingsley constitui um corpo de trabalho coerente e urgente. Ele age como um arqueólogo da alma, escavando sob os alicerces da civilização ocidental para revelar uma fonte de sabedoria que foi deliberadamente selada. Sua mensagem é ao mesmo tempo um diagnóstico severo da doença espiritual de nossa era e uma prescrição radical para sua cura: a cura que vem não de fazer mais, mas de parar; não de buscar a luz, mas de aceitar a escuridão; não de acumular conhecimento, mas de se render à uma Realidade que está sempre presente, esperando que a quietude necessária para ouvi-la seja restaurada. Sua obra é um desafio direto para que reconsideremos tudo o que pensamos saber sobre nós mesmos, nossa história e nosso lugar no cosmos. 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário