Autor: Egidio Guerra de Freitas
Instituição: UFC
Data: 10.09.2025
Resumo: Este artigo propõe uma reflexão teórica sobre a construção de trajetórias de vida em um mundo caracterizado pela complexidade, caos e irreversibilidade. Partimos da premissa de que a educação formal, confinada aos muros escolares, é insuficiente para equipar os indivíduos para os desafios do século XXI. Propomos, portanto, o modelo de "ecossistemas educacionais", onde a aprendizagem se dá em territórios vivos, integrando saberes populares e acadêmicos, e envolvendo múltiplos setores da sociedade (Governo, Empresas, ONGs, Universidades, Comunidades). Este modelo visa fomentar novas formas de ser, viver e governar, orientadas por uma educação integral que busca uma existência boa, bela, justa e economicamente sustentável. O estudo articula os pensamentos de Ivan Illich, Liev Tolstoi, Paulo Freire, Lev Vygotsky, Henri Wallon, John Dewey, Jacques Rancière, Edgar Morin, Michel Foucault e Gilles Deleuze para fundamentar a proposta.
Palavras-chave: Ecossistemas Educativos; Educação Integral; Trajetórias de Vida; Aprendizagem Territorial; Complexidade.
1. Introdução: O Mundo Caótico, Incerto e Irreversível
Vivemos na era da complexidade, definida por Edgar Morin (2000) como um tecido de elementos heterogêneos inseparavelmente associados. É um mundo caótico, no sentido de imprevisível e não-linear; incerto, pois o futuro não é uma mera projeção do passado; e irreversível, onde cada ação e escolha ecoa de forma permanente. Neste contexto, as instituições tradicionais, notadamente a escola, mostram-se frequentemente obsoletas, reproduzindo lógicas disciplinares (FOUCAULT, 1987) que fragmentam o saber e divorciam a aprendizagem da vida.
Como então arquitetar trajetórias de vida significativas? Este artigo argumenta que a resposta reside na transição de um modelo escolarizado para um ecossistema educativo, onde a comunidade, em sua totalidade, torna-se o locus de uma educação integral e permanente.
2. Fundamentos Teóricos: Por uma Educação Desescolarizada e Integral
A crítica à educação formal é histórica. Para Ivan Illich (1971), a escola é uma instituição que institucionaliza a vida, criando um mercado de aprendizagem monopolizado e alienante. Sua proposta de "redes de aprendizagem" ou "teias educacionais" prefigura os ecossistemas aqui discutidos, onde o aprendizado é aberto, accessível e acontece na comunidade.
Paulo Freire (1996) amplia esta crítica, denunciando a "educação bancária", onde o aluno é um depósito passivo de saberes. Sua pedagogia dialógica pressupõe que a aprendizagem nasce da relação entre o mundo vivido do educando (seus saberes populares) e os conhecimentos sistematizados (saberes acadêmicos). É uma educação libertadora, feita com o mundo, e não sobre ele.
John Dewey (1979) já afirmava que a educação é um processo de vida e não uma preparação para a vida futura. Aprender é fazer, experimentar, resolver problemas reais da comunidade. Essa aprendizagem experiencial é a base para engajar o indivíduo em seu território.
Liev Tolstoi, em sua experiência na escola de Yasnaia Poliana, defendia uma educação livre e não-doutrinária, onde o saber da criança e da comunidade camponesa eram valorizados, antevendo a necessidade de respeito à singularidade e aos contextos culturais.
3. O Ecossistema Educativo: Tecendo Saberes e Setores no Território
Um ecossistema educativo opera a partir de três pilares inter-relacionados:
a) A Integração de Saberes: Supera a hierarquia entre saber acadêmico e popular, como propunha Freire. Integra, de forma transdisciplinar (MORIN, 2000), os diversos letramentos: digital, matemático, científico, histórico, geográfico e ambiental. Essa visão complexa do conhecimento permite compreender os problemas em sua totalidade.
b) A Colaboração entre Setores: Governos, empresas, ONGs, universidades e comunidades não são entidades separadas, mas agentes co-responsáveis pelo ecossistema. Como diria Gilles Deleuze, formam uma "rede" de conexões rizomáticas, onde um ponto pode ser conectado a qualquer outro, tecendo "coligações com propósitos comuns". A universidade extensionista, a empresa socialmente responsável, o governo local facilitador e a comunidade protagonista são peças de um mesmo organismo.
c) O Território como Sala de Aula Viva: O território – com seus problemas ambientais, sua história, sua economia local, sua cultura – é o currículo. Aprende-se geografia mapeando os rios urbanos, matemática calculando a viabilidade de uma horta comunitária, história ouvindo os mais velhos. É a materialização do conceito de zona de desenvolvimento proximal de Lev Vygotsky (2007), onde a aprendizagem é potencializada pela interação com pares mais capazes e com o ambiente social, que neste caso é toda a comunidade.
4. O Sujeito como Arquiteto de Si e da Sociedade: Metacognição e Singularidade
Neste ecossistema, o indivíduo não é um produto, mas um projeto em constante construção. Henri Wallon (1979) nos lembra que a pessoa é afetiva, motora e cognitiva de forma integrada. A educação integral, portanto, deve considerar suas dimensões humanas, sociais, tecnológicas, ambientais e espirituais (entendida como busca de sentido e propósito).
Aqui, cada ser humano exerce sua singularidade para ser o arquiteto de seu ser, desenvolvendo metacognição – a capacidade de refletir sobre seu próprio pensar e aprender, tornando-se autônomo. Jacques Rancière (2004), em "O Mestre Ignorante", defende que a inteligência é igualitária e que a emancipação intelectual ocorre quando o indivíduo segue sua própria curiosidade e vontade, guiando sua própria trajetória de aprendizagem.
Esta auto-arquitetura não é narcísica. É social. Ao construir a si mesmo, o indivíduo participa da arquitetura da sociedade. Suas escolhas e trajetórias, como linhas em um diagrama deleuziano, conectam-se com as de outros, formando agenciamentos coletivos que podem gerar novas formas de governar, mais distribuídas e democráticas.
5. Considerações Finais: Em Direção a uma Existência Boa, Bela e Justa
A proposta de ecossistemas educativos não é uma utopia irrealizável, mas uma necessidade urgente em um mundo complexo. Ela sintetiza o alerta de Illich contra a institucionalização, a dialogicidade de Freire, o pragmatismo de Dewey, a complexidade de Morin, a ênfase social de Vygotsky e Wallon, a emancipação de Rancière e a lógica rizomática de Deleuze e Foucault.
Neste modelo, as trajetórias de vida deixam de ser caminhos predeterminados para se tornarem jornadas de autoria, marcadas por escolhas conscientes em um ambiente de suporte comunitário. O objetivo final é, como sempre foi o da verdadeira educação, permitir uma existência boa (ética), bela (estética e significativa), justa (socialmente equitativa) e economicamente sustentável (ecologicamente e financeiramente viável). É uma educação para a vida, que começa na comunidade e se expande para o mundo, preparando os arquitetos de um futuro mais sábio e colaborativo.
Referências Bibliográficas:
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1995.
DEWEY, J. Democracia e Educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
ILLICH, I. Sociedade sem Escolas. Petrópolis: Vozes, 1971.
MORIN, E. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2000.
RANCIÈRE, J. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
TOLSTOI, L. Ensaios sobre Educação. São Paulo: Ed. da UFRGS, 2014.
VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
WALLON, H. Do Acto ao Pensamento. Lisboa: Moraes Editores, 1979.
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