SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Pag 29- A Noite do Caos





Naquele dia, o Caos começava a organizar a noite, contemplando seus deuses... A primeira reunião tinha sido chocante, começava a escurecer e era hora de voltar para casa.
Afinal hoje acontecerá uma festa a três quadras de nosso condomínio, na Zona Perigosa, as gangues dos troianos e dos gregos iriam celebrar mais uma vez a coragem, o culto ao corpo, à beleza. O propósito não era deflagrar uma guerra na festa e sim, bebermos, vivenciarmos o prazer até o nosso limite e pela manhã, procurar algo para curar o que alguns chamam “ressaca”.


Renata, era a garota mais idolatrada do bairro, seu corpo era demais, as curvas de deusa, deixavam maluco qualquer garoto. Se isto não fosse suficiente para arrebatar corações, sua audácia era poderosa e glamorousa. Ela cantava maravilhosamente sua magia.

Ela era o tipo de menina que gostava de estar à frente de sua turma, sua liderança era nata quando o assunto era diversão. A roupa que vestia, ela mesmo fazia, as músicas que escutava, o jeito que tratava os garotos, eram símbolos de grandeza entre a nossa galera, era de imaginar que a inveja, a traição a perseguiam pois era impossível ser melhor do que ela. A autêntica arrogância de sua beleza e esperteza não dava espaço para que houvesse concorrentes.

Os inimigos não eram o seu maior problema e, sim o amor, a solidão e as drogas, provocadores de suas angústias e desejos, que desencadeavam a fúria de todos os seus amigos, não contra ela, mas contra eles mesmos, pois também eram esses as maiores dores de nossa geração. O beco sem saída do caos da noite e da festa para onde iriamos encontrar a gang dos troianos, eram os nossos deuses. A bebida que nos incitava a cantar e chorarmos, as drogas que levavam ao esquecimento, à fuga, a alegria delirante e a ilusão. Depois, ficava o vazio e as conseqüências desastrosas rondando, tais fantasmas, as nossas cabeças, dando “conselhos”, incentivando-nos a novamente procurá-los. Nós somos completamente dominados por eles, como nossos pais pelos deuses do trabalho e do consumo.

Os objetos é quem comandam os destinos de nossa geração como a exemplo da de nossos pais e raramente podemos servir de apoio um ao outro, porque deus tempo não permite o nosso encontro. Além de esquecer quem somos nós, ainda esquecemos o nosso esquecimento permitindo que os “deuses” comandem os nossos desejos e o destino deles.

Igor, um dos caras da turma da quadra de Tróia, estava apaixonado por Renata. Numa noite anterior, ela havia sido raptada por ele no seu esquecimento, ambos estavam embriagados e Renata havia se entregado aos braços dele, fizeram o sexo louco e sem regras a que estavam acostumados a praticar, só que Igor queria um pouco mais e fez com ela uma sessão de sado-masoquismo, e ela voltou ainda em estado de êxtase para a festa, pois só assim, eles chegavam ao orgasmo. No outro dia, ninguém sabia do acontecimento, exceto Alexandre, que emprestou seu quarto aos dois. Renata, não se lembrava, apesar do corpo dolorido, o que a fez refletir e se indagar sobre o que aconteceu, coisa que raramente fazia. Era ela a única dos gregos presentes naquela festa e isto se deu após uma discussão com seu pai, sobre quem teria acesso ao deus TV primeiro! Ele havia perdido a cabeça, quando ameaçou batê-la se não ficasse na sua, porque não iria tratá-la como a sua ex-mulher. Segundo ele, ela não precisava de seus adereços, suas roupas, suas marcas e iria dar um basta a essa exploração tirando do seu convívio a TV cabo, dali em diante só assinaria o canal de esportes.

Chateada Renata , pegou o seu carro e foi em busca de uma festa. Acabou encontrando os troianos e conseqüentemente Ígor, por quem tinha certa atração, considerando o físico do mesmo, que praticava musculação e outros artifícios em culto ao deus corpo.

Igor, estava ansioso por nova festa, embora que agora fosse do lado dos gregos, este seria o segundo encontro e só de pensar nisto ficava excitado, mas não ficariam lá, sairiam, para evitar que atrapalhasse seus esquemas com as outras gatas.

Nesta festa, estava toda a turma de Renata. Pontualmente as onze da noite, se encontraram nas esquinas de seu condomínio. David foi o último a chegar, ainda estava com o seu Lap Top na mão, quase encerrando um site que tinha programado sobre o seu amor, em silêncio, por Renata, sua paixão.

David nunca teve coragem de expressar o que sentia, mas aquela noite criou coragem de mostrar o flash do seu amor, onde ele havia colocado fotos dos dois, como se fosse uma só, inserido músicas do filme Romeu e Julieta, usando as mesmas roupas de Leonardo De Capri e havia animações de David negando o beijo de Ana Paula Arósio, Gisele Bündchen ou Vera Fisher, em troca do amor de Renata.

Porém o caos da sociedade moderna conspirava em seus efeitos sistêmicos. Zé Orlof’s, o troiano mais pobre financeiramente ou de espírito, sinônimo usado para financeiro na época moderna, havia acabado de injetar sua cocaína, roubada da casa do traficante Colla, ainda ligado resolveu escolher um lugar para se esconder.

Todos estreariam naquela festa. David, descobrira uma nova linguagem para expressar o seu amor, a informática. Zé Orlof’s que insistia na mesma linguagem para expressar a sua dor: a droga, caminho rugoso e sem retorno. Ígor certo de que Renata saciaria, mais uma vez seus instintos, naquela que seria sua segunda noite de sexo, em homenagem ao Marquês de Sades. Renata também estaria lá para celebrar os seus “deuses”, nessa nova Roma, cercada de Calígolas e Neros, encontrados em qualquer esquina e que a faziam esquecer a realidade, penetrando no profano e transformando o sagrado da história. Ela não sabia o que buscava, só queria prazer e ser, como sempre, o alvo da historia.

Ao chegar na festa com sua turma a cercando, logo Ígor furou o bloqueio ao som das tumbas do Rock, beijou Renata forçadamente. David ao ver aquilo, a desobediência das leis dos seus deuses, afinal, o troiano não pode namorar uma grega (e pensou: principalmente a minha!), tratou logo de agarrá-lo e humilhá-lo acertando um chute na cabeça. Caído, Ígor seria atingido no local onde homem nenhum queria ser atacado. O grito de guerra estava declarado e ninguém entendia o porque da confusão, nem Renata entendia o beijo de Ígor, nem a reação de Renata e muito menos os dois suspeitavam de seu amor em conjunto pela mesma mulher. Só o caos da solidão do coração de cada um, sabia os reais motivos.

Nesse momento as deusas bebidas e drogas imperavam no comportamento dos guerreiros gregos e troianos. Até que Colla, o traficante, a procura de Zé Orlof’s, invadiu a festa. Naquele momento David já havia dominado Ígor. Zé Orlof’s resolveu atirar no traficante, ainda sobre o efeito da droga, atingindo, casualmente, David, salvando os troianos de uma derrota. Como podem ver, caros amigos, as drogas haviam influenciado o destino... até os pobres mortais continuavam nos dias seguintes a procurar a causa, através dos jornais, onde só havia caos...
Graças aos seus amigos Bin, Amy, Nicolau e Michel, David foi levado as pressas para o hospital. As outras pessoas da festa ainda continuavam vibrando e brigando com o acontecido. Para eles, David serviria como um grande motivo para celebrar em suas conversas de guerra, o quanto aquela batalha havia sido interessante. A amizade salvara a vida de David. Há horas, ele foi levado ao hospital e a bala foi tirada rapidamente graças ao “deus computador” que David carregava em seu peito, visando fazer a declaração de amor a Carol, a bala não havia conseguido profundidade em seu corpo, o notebook abafou o impacto.

Aquela festa seria um marco para nossas vidas e para o Teatro. As coisas não seriam como antes, apesar da amizade de nossa turma ter salvo a vida de David, o Teatro, corria perigo, pois nossas discussões agora começavam a esquentar. O conflito de valores entre o nosso mundo e o mundo objetivo que nos cercava, começava a ser mais fortes que a nossa bravura e coragem durante as guerras e a declaração de projetos que havíamos feitos no Teatro!

No outro dia ao dobrar a esquina da Escola, vi mais uma vez duas gang’s se enfrentando. Uma era formada por meus amigos de infância, a outra por garotos da escola mas o que me chamou mais atenção foi uma câmara de TV que filmava tudo ali e dava sinais de que realidade e ficção em minha cabeça perderiam rapidamente suas fronteiras.

Sem perder tempo, peguei meu notebook, imaginei nele uma lança-míssel que obedeceria meu comando instantaneamete na velocidade de meu pensamento, porém antes de disparar meu lança-míssel, fui acertado por uma bala, cai... De repente de um lado vi os troianos, a câmera de TV e por detrás dela talvez meu pai estivesse preparando a cena para o Sacrifício de Isaac... 

Por um momento, fiquei como que fora de mim e cenas do meu passado vieram a tona. Lembrei de um desenho que fazia ao lado de meu avô, transformando estrelas num parque de diversão.
Por sorte não seria o meu destino, apenas mais um teatro real do imaginário da vida. A bala era imaginaria, pois o acontecimento com David tinha transformado o meu medo da violência em pesadelo. Os territórios invadidos pelas guerras das Gangues , não escolhem o seu lugar de ação , as vezes o tempo se transforma, invertendo as lógicas do passado e do futuro através de nossos medos. Somos vítimas e assassinos por omissão. A arte e realidade confundem seus papéis , conversam entre si, desafiam a vida, a lógica e a verdade transformando o que somos e o lugar que vivemos de formas inimagináveis.

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