
- Jasmin Fox-Skelly
- BBC Future
Se você for ao espaço sideral sem proteção, irá morrer.
Mas existe um animal minúsculo, com no máximo 1 mm de comprimento (mais ou menos do tamanho de uma cabeça de alfinete) que já sobreviveu a isso e muito mais.
Vistos sob o microscópio, os tardígrados — também conhecidos como ursos d'água ou leitões do musgo — são criaturas com aparência assustadora.
Seus focinhos rechonchudos e deformados, garras ferozes e dentes que mais parecem punhais fazem com que eles se pareçam mais com um monstro da série Doctor Who do que com um animal.
Agora, os cientistas estão tentando aproveitar seus superpoderes para nosso próprio uso, seja protegendo pacientes com câncer da perigosa terapia por radiação ou para conservar alimentos e substâncias para uso médico por longo período. E até para a exploração espacial.
Os cientistas já identificaram cerca de 1,5 mil espécies de tardígrados. Eles são parentes próximos dos artrópodes, que incluem insetos e crustáceos.
Mas a ciência ainda não decidiu exatamente em qual filo do reino animal estas criaturas merecem ser classificadas.
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Os tardígrados adoram se esconder em ambientes úmidos, repletos de musgo, líquen e folhas. É possível encontrá-los até no jardim de casa. Mas eles também são famosos por sobreviverem em locais extremamente inóspitos.
Os tardígrados já foram encontrados nas montanhas do Himalaia, no fundo do oceano, na Antártida e até nas fontes termais japonesas, com alta acidez. Mas esta descoberta ainda não se repetiu.
Não é apenas nos ambientes inóspitos da Terra que os tardígrados podem viver. Em 2007, eles se tornaram os primeiros animais conhecidos que sobreviveram ao serem lançados ao espaço.
Quando o satélite onde eles viajavam retornou à Terra, os cientistas descobriram que muitos deles sobreviveram. Algumas das fêmeas chegaram a colocar ovos no espaço, gerando saudáveis espécimes jovens recém-eclodidos.
Os tardígrados também estiveram a bordo de uma missão israelense chamada Beresheet, que tentou pousar na Lua em 2019. Mas a sonda se acidentou durante o pouso com seus passageiros microscópicos e não se sabe se eles sobreviveram.

Ávidos para testar os limites de sobrevivência dessas minúsculas criaturas, os cientistas as fizeram passar por uma bateria de testes.
Hoje sabemos que os tardígrados podem suportar altíssimos níveis de radiação, de até 1 mil vezes a dose letal para seres humanos. Eles também sobrevivem ao serem aquecidos a 150°C ou congelados a apenas 0,01°C acima do zero absoluto.
Em 2021, cientistas chegaram a disparar balas com tardígrados no seu interior, para ver se eles conseguiriam sobreviver ao impacto.
O estudo demonstrou que os animais podem sobreviver ao serem disparados a velocidades de até 900 metros por segundo (3 mil quilômetros por hora), o que é mais do que atinge uma bala disparada por uma arma comum.
Mas como essas criaturas aparentemente insignificantes sobrevivem em condições tão extremas? E por que elas evoluíram até atingir esses superpoderes?
O que sabemos é que os tardígrados têm uma série de truques guardados na manga.
Estado de animação suspensa
Uma das condições ambientais extremas que os tardígrados evoluíram para enfrentar é a dissecação (basicamente, eles sobrevivem quando ficam desidratados).
Para a maioria dos animais, a vida sem água é impossível. À medida que as células secam, as membranas que as mantêm unidas se contraem e perdem volume.
"Tudo o que fica normalmente no interior da célula fica esmagado", explica o professor de Biologia Molecular Thomas Boothby, da Universidade de Wyoming, nos Estados Unidos.
"As proteínas começam, então, a se reunir e se aglomerar. Elas perdem a funcionalidade; elas deixam de trabalhar."
De alguma forma, os tardígrados conseguem evitar tudo isso. Mas como?
Uma das indicações para este fenômeno veio em 1922, quando um cientista alemão descobriu que, quando um tardígrado seca, ele retrai a cabeça e suas oito patas, entrando em um profundo estado de animação suspensa, muito próximo da morte.
"Eles literalmente embalam seus órgãos e os concentram em um local confinado extremamente pequeno", explica a professora de Fisiologia e Biologia Celular Nadja Møbjerg, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca.
Neste estado dormente, o metabolismo do tardígrado é reduzido para 0,01% da sua velocidade normal. Ele pode permanecer assim por décadas e só se reanimar quando entrar em contato com a água.
Em 1948, por exemplo, a zoóloga italiana Tina Franceschi retirou tardígrados que ficaram pegando poeira em um museu por mais de 120 anos, acrescentou água e uma das patas frontais da criatura começou a se mover.
O animal nunca reviveu completamente, mas, em 1995, tardígrados dissecados foram trazidos de volta à vida após oito anos de dormência.
O estado dormente ajuda a preservar a estrutura tridimensional (3D) dos animais. Mas isso, por si só, não é suficiente para explicar a extrema capacidade de sobrevivência dos tardígrados.
Em 2017, Boothby e seus colegas monitoravam a atividade genética dos tardígrados enquanto eles secavam e entravam em estado dormente, quando perceberam um pico na codificação genética de certas proteínas misteriosas.
Elas receberam posteriormente o nome de "proteínas intrinsecamente desordenadas específicas de tardígrados" (TDPs, na sigla em inglês).
Quando a equipe bloqueou a atividade desses genes, os tardígrados não conseguiram mais sobreviver à dissecação. E, quando eles forneceram esses genes para leveduras e bactérias, a capacidade desses organismos de sobreviver à desidratação aumentou em 100 vezes.

Em 2022, o professor de Biologia Takekazu Kunieda, da Universidade de Tóquio, no Japão, e seus colegas estudaram o mecanismo de sobrevivência dos tardígrados quando perdem toda a água do corpo.
Eles descobriram que os animais conseguem sobreviver graças a uma classe de TDPs conhecida como proteínas termossolúveis abundantes no citoplasma (CAHS, na sigla em inglês).
Quando rodeadas de água, as TDPs apresentam consistência similar a geleia e não se desdobram em estruturas 3D, como fazem as proteínas normais. Mas, quando ficam secas, elas se transformam em um gel semissólido, que amortece o conteúdo da célula e o mantém no seu lugar.
"Quando os tardígrados começam a secar, eles iniciam a produção dessas proteínas em níveis muito, muito altos, essencialmente preenchendo o interior das células com essas proteínas moles, estranhas e desordenadas", explica Boothby.
"As proteínas começam a flutuar no líquido, mas, quando a célula seca, elas, na verdade, se reúnem e formam essa rede parecida com uma teia de aranha no interior da célula. Achamos que essas fibras de teia de aranha podem envolver proteínas sensíveis e ajudar a mantê-las dobradas, ou evitar que elas se agreguem."
Animais como as rãs-arborícolas, nematoides e artêmias usam um truque parecido. Eles produzem um açúcar chamado trealose, que forma um santuário parecido com vidro, que protege as células contra a destruição.
A vida em condições extremas
Entrar em estado dormente ou produzir TDPs pode ser fundamental para a capacidade dos tardígrados de suportar calor extremo.
Esta capacidade vem fascinando os cientistas há séculos.
Em 1842, o cientista francês Louis Michel François Doyère (1811-1863) demonstrou que é possível aquecer um tardígrado em estado dormente a temperaturas de 125 °C por vários minutos.
Nos anos 1920, o monge beneditino Gilbert Franz Rahm (1885-1954) trouxe tardígrados de volta à vida depois de aquecê-los a 151 °C por 15 minutos. Mas os tardígrados só conseguem fazer isso em estado dormente.
"Muitas espécies de tardígrados são capazes de sobreviver a temperaturas muito acima de 100 °C, mas apenas quando estão secos", afirma Boothby.
"Se você tiver um tardígrado em uma gotícula de água e aquecer aquela água a níveis muito altos, o tardígrado irá morrer com a mesma velocidade de qualquer outro organismo."
De fato, embora sejam conhecidos pela sua resiliência em situações específicas, os tardígrados são geralmente vulneráveis a altas temperaturas. Isso sugere que eles podem até sofrer os efeitos das mudanças climáticas.
Um estudo de Møbjerg concluiu que, se não tiverem tempo para entrar em estado dormente, algumas espécies de tardígrados morrem em temperaturas de pouco mais de 37 °C.
Embora seja difícil saber se as populações de tardígrados estão diminuindo, esse eventual declínio poderia causar fortes repercussões aos ecossistemas do solo.
Estudos indicaram, por exemplo, que tardígrafos carnívoros podem melhorar a saúde do solo, alimentando-se de nematoides parasitas.
Em relação a como os tardígrados sobrevivem a outras condições extremas, existe menos conhecimento.
Sabemos que os tardígrados podem sobreviver ao congelamento, radiação e baixo teor de oxigênio sem entrar em dormência, nem fabricar TDPs. Por isso, eles também devem ter outros mecanismos de proteção.
Em 2016, uma equipe de cientistas japoneses trouxe de volta à vida tardígrados que haviam ficado em estado congelado na Antártida por 30 anos. Os dois tardígrados da amostra receberam os nomes de SB-1 e SB-2 ("SB" é a abreviatura em inglês para Bela Adormecida).
O congelamento é particularmente perigoso para as criaturas vivas, pois as baixas temperaturas fazem com que as membranas celulares percam sua fluidez e fiquem mais frágeis. Mas o maior perigo são os cristais de gelo.
"É muito ruim ter cristais no interior das células porque eles são pontiagudos", explica Boothby. "Eles podem perfurar as membranas, arruinar proteínas ou desorganizar ácidos nucleicos como o DNA, o projeto de construção das células."
Temperaturas congelantes e radiação
Ainda assim, alguns tardígrados conseguem sobreviver ao congelamento sob temperaturas pouco acima do zero absoluto.
O motivo por que eles precisam suportar estas condições ainda é um certo mistério, já que a menor temperatura já registrada na Terra foi de agradáveis -89,2 °C, na região central da Antártida, em 1983.
"A parte intrigante desses organismos é que as adaptações que eles evoluíram vão muito além do realmente necessário", afirma Møbjerg. "Ou seja, você nunca seria congelado até o zero absoluto. Você não encontra estas condições na Terra."
O motivo exato que levou os tardígrados a conseguir sobreviver ao congelamento é desconhecido. Mas já se descobriu que eles podem passar por um estado de animação suspensa chamado criobiose, quando reduzem a velocidade ou desligam por completo seus processos metabólicos.
Já o motivo que faz com que os tardígrados sobrevivam à radiação é mais conhecido.
Em 2016, Kunieda e sua equipe descobriram uma proteína, conhecida como Dsup (proteína supressora de danos, na sigla em inglês). Aparentemente, ela envolve o DNA como se fosse um cobertor e o protege contra os efeitos prejudiciais da radiação ionizante.
Além disso, os pesquisadores construíram células humanas que também podem produzir Dsup. Eles expuseram essas células a raios X e concluíram que a Dsup evitou o rompimento do DNA humano.
"A radiação pode danificar diretamente o DNA, mas a maioria das lesões biológicas ocorre indiretamente", explica Kunieda.
As moléculas de água, por exemplo, absorvem a energia de radiação e se decompõem, produzindo moléculas muito tóxicas, conhecidas como espécies reativas de oxigênio (EROs). As EROs, então, atacam o DNA e o destroem.

Pesquisas anteriores já haviam demonstrado que os tardígrados produzem enzimas que desintoxicam as EROs. Mas o estudo de Kunieda demonstrou que a Dsup oferece maior proteção.
"Nossos dados indicam que a Dsup se liga ao DNA, criando um escudo físico em torno dele", explica ele. "Ela forma uma cobertura protetora que evita o rompimento do DNA das EROs."
Como os tardígrados também produzem EROs quando enfrentam condições extremamente secas ou salgadas, a Dsup também poderá proteger o DNA contra essa pressão.
Em 2020, pesquisadores do Centro de Genômica e Biotecnologia Vegetal em Madri, na Espanha, elaboraram um modelo da interação da Dsup com o DNA.
Eles concluíram que a Dsup é uma proteína extremamente flexível, capaz de ajustar sua estrutura para embalar precisamente e se encaixar no formato do DNA. E, ao manter o DNA no lugar, a Dsup consegue evitar sua destruição pela radiação.
Paralelamente, em 2024, outra equipe de pesquisadores na França encontrou uma segunda proteína, chamada TDR1. Aparentemente, ela também se liga ao DNA e o protege contra os danos causados pela radiação.
O estudo demonstrou que os tardígrados também podem reparar seu próprio DNA, o que é outra ferramenta útil disponível para ajudá-los a combater os efeitos da radiação.
Truques de sobrevivência para os seres humanos
À medida que descobrimos novas informações sobre os tardígrados nos últimos anos, os pesquisadores começaram a analisar como podemos usar suas propriedades incomuns para ajudar os seres humanos.
Alguns cientistas, por exemplo, esperam empregar seu conhecimento sobre os tardígrados para proteger as pessoas com câncer contra os efeitos prejudiciais da radioterapia.
A radioterapia é um tratamento que usa alta radiação de energia para matar as células cancerosas. Mas, infelizmente, ele também danifica os tecidos saudáveis próximos.
Em alguns casos, os efeitos colaterais são tão graves que podem fazer as pessoas atrasarem o tratamento ou suspendê-lo por completo.
Inspirados pela resiliência do tardígrado, pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), do Hospital da Mulher e Brigham em Boston e da Universidade de Iowa, todos nos Estados Unidos, injetaram RNA mensageiro codificador da proteína Dsup no focinho e no reto de camundongos.
Como indica seu nome, o RNA mensageiro age como uma espécie de entregador ou intermediário, decodificando o DNA e usando as informações nele contidas para produzir proteínas.
O estudo demonstrou que, após receberem a injeção, os próprios camundongos começaram a produzir Dsup.
Quando os pesquisadores forneceram aos camundongos doses de radiação similares às que receberiam os pacientes com câncer, as células cancerosas foram destruídas, mas os tecidos saudáveis em volta delas sobreviveram.
Mas é preciso realizar mais estudos para compreender como o sistema imunológico dos mamíferos reage a essas proteínas, antes de utilizar o tratamento em seres humanos. Afinal, o sistema imunológico do corpo identificaria a Dsup como um intruso.
Os cientistas acreditam que também possa haver outras formas de usar os superpoderes dos tardígrados para ajudar as pessoas.
Além de proteger as células dos tardígrados, por exemplo, as TDPs podem ajudar a preservar vacinas ou outros materiais biológicos sensíveis que precisam ser armazenados por longos períodos de tempo.
A hemofilia, um raro distúrbio da coagulação sanguínea, é um exemplo. As pessoas portadoras desta condição podem sangrar até a morte, no caso de traumas ou acidentes automobilísticos.
Para impedir que isso aconteça, elas recebem a proteína de coagulação do sangue humano Fator VIII, que precisa ser armazenada congelada. Esta necessidade limita seu uso em países mais pobres ou no caso de desastres naturais.
Mas Boothby descobriu recentemente que, ao misturar Fator VIII com TDPs de tardígrados, a substância permanece estável à temperatura ambiente, eliminando a necessidade de refrigeradores ou congeladores.
A Nasa também está interessada em descobrir como os tardígrados sobrevivem ao ambiente inóspito do espaço.
No futuro, a agência poderá usar estas informações para evitar a desidratação ou exposição à radiação de alimentos e remédios, o que seria inestimável para missões de exploração do espaço de longa duração.
O mistério dos superpoderes permanece
Mas por que os tardígrados evoluíram para formar este conjunto de mecanismos de defesa?
"Os tardígrados são organismos aquáticos", explica Møbjerg. "Por isso, eles precisam ser rodeados por um filme de água para serem ativos."
"Um dos motivos por que eles precisam ser tão tolerantes é porque sua pele ou cutícula é muito permeável. Não é como um inseto, que tem uma camada de cera que pode evitar a perda de água por evaporação."
Boothby afirma que uma teoria que poderia explicar sua resiliência é que, como os tardígrafos são tão pequenos, quando secam, as correntes de vento podem levá-los ao redor do planeta.
"Se a areia do deserto do Saara pode ser soprada para a Amazônia, os tardígrados, com quase toda certeza, podem passar pelo mesmo tipo de circulação atmosférica", segundo Boothby.
"Eles podem ser depositados em um lugar muito rigoroso. Pode ser frio, pode ser quente, talvez não chova ou talvez chova o tempo todo. Talvez seja o topo de uma montanha, onde eles são expostos a maior quantidade de radiação UV."
"Ou seja, talvez os tardígrados tenham evoluído para sobreviver a todos estes tipos de tensão por serem expostos a elas", conclui ele.
Os ursos d'água podem precisar enfrentar frequentemente a desidratação, mas o que não está claro é por que eles precisariam sobreviver ao cozimento sob altas temperaturas, ao serem resfriados a temperaturas pouco acima do zero absoluto ou a níveis de radiação encontrados apenas no espaço sideral.
Seja como for, decodificar o mistério por trás das notáveis capacidades dessas criaturas pode ajudar os seres humanos, seja melhorando o armazenamento das vacinas, reduzindo os efeitos prejudiciais da radioterapia ou preservando alimentos para voos espaciais a longa distância.
E poderá também ajudar a proteger os próprios tardígrados contra os efeitos prejudiciais das mudanças climáticas.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Earth.
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