SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

domingo, 19 de outubro de 2025

O Jardim e a Casa Poética: A Revolução Estética e Ética no Século XXI por Egidio Guerra.

 


Vivemos um tempo de sombras, onde a opinião, efêmera e ruidosa, tenta usurpar o trono do pensamento crítico. Neste palco turvo, a vida nos convoca a uma revolução silenciosa e radical: a de nos tornarmos jardineiros de nossa própria existência, poetas do cotidiano, arquitetos de casas poéticas onde a estética, a arte, a política e a vida se imbricam de forma indissociável. Já não basta habitar o mundo; é preciso criá-lo, tal como um artista cria um jardim ou um poeta edifica uma morada com palavras. 


Esta criação pressupõe, antes de tudo, um governo de si, nos termos que Foucault explorou. É a ascese de uma subjetividade que se recusa a ser governada pelos discursos vazios do poder. Mario Levrero, em O Discurso Vazio, expõe justamente a farsa da linguagem desgastada, o automatismo que nos afasta da experiência autêntica. Contra esse vazio, a primeira tarefa do jardineiro é limpar o terreno, arrancar as ervas daninhas da retórica oca e preparar o solo para um dizer—e um viver—mais denso, mais consciente. 


É aqui que a revolução estética, da qual Rancière fala em O Tempo da Paisagem, se revela fundamental. Se a paisagem não é um dado natural, mas uma construção do olhar, uma partilha do sensível, então a vida pode ser reorganizada como uma paisagem poética. Não se trata de um mero embelezamento decorativo, mas de uma reconfiguração da experiência comum. A arte deixa de ser um objeto apartado para se tornar a lente através da qual vemos o mundo e agimos sobre ele. Somos, assim, cineastas de nossos dias, capazes de enquadrar a realidade de modo a revelar suas fissuras e suas belezas ocultas. 


No entanto, um jardim apenas estético é um jardim frágil, um cenário que pode esconder a podridão sob as pétalas. A ética é o adubo que dá solidez às raízes.
Ödön von Horváth, em 
Juventude sem Deus, mostra o colapso que ocorre quando a juventude—metáfora do futuro—é educada na mentira e na ausência de compaixão. O personagem-professor, ao confrontar a falta de Deus (entendida como a falta de um fundamento ético), inicia uma pequena, mas corajosa, revolução interior. Ele se torna um jardineiro ético num deserto de conformismo. 



Natalia Ginzburg, em As Pequenas Virtudes, oferece a ferramenta humilde e poderosa para essa jardinagem ética. Ela nos ensina a desconfiar das grandes virtudes retóricas e a cuidar, com esmero, das pequenas virtudes do quotidiano: a honestidade, a coragem singela, o cuidado com o outro. É na textura ínfima dos dias que se constrói a casa poética, tijolo a tijolo, gesto a gesto. 

E o que significa, então, transformar a vida no jardim de Epicuro, na vida de Leonardo da Vinci ou de Victor Hugo? 



Significa adotar a arte da existência de que nos fala Giorgio 
Agamben em 
O Fogo e o Relato. É entender que a criação—seja um quadro, um livro ou uma vida—não é um acrescento, mas a própria matéria da existência. O jardim de Epicuro não era um horto de prazeres vazios, mas uma comunidade onde a amizade e a filosofia eram o cimento de uma vida sábia. Da Vinci foi um explorador incansável do sensível, para quem a arte, a ciência e a vida eram uma única e contínua investigação. Victor Hugo fez de seu exílio em Guernsey não um enclausuramento, mas um ateliê monumental onde a escrita, o desenho e a política se fundiam numa casa aberta ao mundo. 

Nós, neste século XXI, somos chamados a ser novos profetas. Não portadores de uma verdade revelada, mas da profecia da presença atenta. O mistério obscuro da modernidade não é mais teológico, mas ético e político: é o mistério da responsabilidade pelo Outro numa era de individualismo exacerbado. A revolução será estética porque deve reencantar o mundo, devolvendo-lhe a espessura da experiência. Será ética porque esse reencantamento é impossível sem um compromisso radical com a alteridade. 

Nos tempos sombrios em que a opinião tenta calar o pensamento, criar jardins e casas poéticos é um ato de resistência. É inscrever, no tecido áspero da realidade, a possibilidade de uma vida mais integrada, mais consciente e, portanto, mais livre. É entender que, no fim, somos os personagens principais e os autores de nossa própria história, e que a beleza que criamos e a justiça que praticamos são as duas faces da mesma moeda: uma vida verdadeiramente vivida. 




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