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sexta-feira, 17 de outubro de 2025

A Ilusão da Neutralidade: Quando a IA se Torna uma Questão de Poder, Dinheiro e Ideologia por Egidio Guerra .




A Inteligência Artificial (IA) transcendeu há muito o domínio da ficção científica e dos laboratórios de investigação. Hoje, a narrativa que nos vendem – a de um progresso tecnológico neutro e inevitável – é uma cortina de fumo. Por trás do código e dos algoritmos, esconde-se uma história muito mais antiga e sombria: a de poder, dinheiro e ideologia. A IA não é uma ferramenta imparcial; é um espelho que reflete e amplifica as ambições, os vícios e as desigualdades da sociedade que a criou. 




No seu livro "Empire of AI", Karen Hao traça a forma como um pequeno grupo de empresas e nações está a forjar um novo império, não através de territórios, mas através do controlo da infraestrutura e do conhecimento que sustenta a IA. Este império é alimentado por uma bolha financeira especulativa, onde as promessas de lucros astronômicos superam, em muito, a realidade dos produtos. Startups de IA são avaliadas em milhares de milhões com base em projeções futuristas, atraindo investimentos avulsos numa corrida do ouro digital onde o hype é a mercadoria principal. Esta dinâmica cria um ecossistema que premia a escala e a velocidade, muitas vezes à custa da segurança, da ética e da utilidade real. 


As promessas utópicas são um pilar central desta narrativa. Fala-se da IA para revolucionar a medicina, diagnosticando doenças com uma precisão sobre-humana. No entanto, estas mesmas promessas ofuscam os custos planetários brutais expostos por Kate Crawford em "Atlas da IA: Poder, Política e os Custos Planetários da Inteligência Artificial". Crawford descreve a IA não como uma entidade etérea, mas como uma indústria extrativista. Ela alimenta-se de quantidades colossais de energia, de água para arrefecer os seus data centers hiperbáricos, e de minerais raros, extraídos muitas vezes em condições de trabalho precárias. A "nuvem" é, na verdade, uma infraestrutura física e poluente, cujo custo ambiental é externalizado e invisibilizado. A promessa de um futuro saudável é, assim, construída sobre a degradação do presente. 

Este poder concentrado tem um corolário inevitável: a militarização. Sérgio Amadeu da Silveira, em "As Big Techs e a Guerra Total: O Complexo Militar-Industrial-Dataficado", demonstra como as gigantes tecnológicas se tornaram peças fundamentais no aparato de defesa e segurança nacional. O que era um "complexo militar-industrial" transformou-se num "complexo militar-industrial-dataficado". Os mesmos algoritmos que recomendam filmes são adaptados para vigilância em massa, guerra cibernética e sistemas de armas autônomas – os "robôs assassinos". A IA desloca o campo de batalha para o domínio dos dados, onde a guerra é permanente, assimétrica e muitas vezes invisível ao cidadão comum. 


Finalmente, o impacto da IA no tecido social e psicológico é profundo. A economia da atenção, otimizada por algoritmos de feeds de redes sociais, tornou-se uma fábrica em massa de problemas de saúde mental. A comparação social constante, a polarização, a disseminação de desinformação e a cultura do instantâneo geram ansiedade, solidão e depressão. Paralelamente, assistimos a uma erosão do pensamento crítico. Ao terceirizarmos a curadoria de informação, a tomada de decisões simples e até a criatividade para os algoritmos, atrofiamos a nossa capacidade de questionar, de analisar profundamente e de tolerar a ambiguidade. A comodidade tem um preço: a lentidão da nossa própria capacidade cognitiva. 

Em conclusão, é imperativo desmontar a narrativa da IA como um destino tecnológico imparcial. Ela é um campo de batalha onde se definem os futuros modelos de governança, riqueza e controle. As questões que a IA coloca não são técnicas, mas profundamente políticas e filosóficas: Que mundo queremos construir? Quem beneficia e quem paga o preço? Para responder a estas perguntas, temos de olhar para além do código e confrontar as estruturas de poder, a ganância financeira e as ideologias que moldam o império da Inteligência Artificial. O futuro não será escrito por máquinas, mas pela forma como nós, humanos, decidimos governá-las – e a nós mesmos. 



 

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