Pesquisador norte-americano, autor de ‘Sobre a tirania’, diz que o ser humano não pode esquecer que é um animal, “e portanto exposto a contrair doenças”
Pergunta. Como você está passando?
Resposta. Imagino que como todo mundo. Procuro cuidar da minha família, tento orientar meus filhos com os deveres. Busco encontrar uma nova rotina que me permita trabalhar no começo e no final do dia, enquanto dedico a parte central à minha família. Encontro-me bem. Há muito em que pensar. Este é um problema objetivo e um problema político. E há muito que pensar em termos históricos, e procuro trabalhar nisso.
P. Encontrou razões para sentir medo? O medo é um argumento nestas circunstâncias?
R. É muito, muito importante. Pessoalmente, não tenho medo. O que me preocupa de verdade é o medo político. Preocupa-me que uma catástrofe, que pode ser inclusive propiciada por um Governo, possa servir para ajudar a consolidar o poder nesse mesmo Governo. Preocupo-me com a política do medo. A política do medo é muito importante no meu país porque, quando adoecemos, realmente não temos aonde ir. Não sabemos como falar da doença. Temos um sistema de saúde muito ruim. O problema não é só que as pessoas estejam morrendo. O problema é que, além disso, as pessoas têm medo de morrer, e não sabem como resolver esse problema.
P. Você tem escrito sobre vários cenários de desastre. Este foi causado por um vírus, não por ditadores. Parece um romance de suspense. Você tem a sensação de que mistérios desse tipo podem reaparecer para guiar a humanidade por algo que não compreendemos?
R. Em nível profundo, o problema é que nos permitimos estar alienados do mundo que nos cerca, alienados da natureza. O fato é que somos animais e, como tais, estamos expostos a contrair doenças. Se nos esquecermos disso, nos sentiremos vulneráveis. As pandemias ocorrem, são uma parte importante da história da humanidade, isso sabemos. Têm um aspecto alarmante, porque são invisíveis, mas a verdade é que agora estamos mais bem preparados que nunca na história para entender uma pandemia. O problema não é nosso entendimento objetivo da situação, é que alguns países têm governantes que deliberadamente o interpretam mal e dificultam que outras pessoas entendam bem. O que ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos é que temos um Governo que deliberadamente não fez exames nas pessoas, e isso permitiu que houvesse todo tipo de incertezas e medos, criando essa sensação de mistério. Isto não deve ser algo misterioso. Devemos ter pessoas competentes no comando, em quem se confie. Se confiarmos em quem manda, não teremos tanto medo e não haverá tanto mistério, e será mais fácil para nós sermos livres. O preocupante é que as pessoas autoritárias tirem proveito da confusão e do mistério.
P. Sobre a tirania parece ter um tremendo epílogo nesta invasão da mentira que ocorre em tempos de pandemia…
R. Busquei escrevê-lo de modo a que fosse relevante no futuro, e tenho notícias de que estão voltando a lê-lo mundo afora. O assunto da fidelidade aos fatos é muito importante atualmente. Trump é um exemplo de alguém que é capaz de lançar desinformação ao ar num momento em que precisávamos mesmo de simples dados. Trump afirmou que não tínhamos esta doença nos Estados Unidos, mas o único motivo de que nos parecesse assim era que não estávamos fazendo os exames. Isso é muito similar aos comportamentos autoritários ao redor do mundo. Os russos fizeram algo muito parecido: você diz que não tem, mas aí acontece que tem, sim, e então joga a culpa nos outros. Como não enfrentou os fatos, agora tem um grande problema, e usa esse problema para culpar os outros. Assim, nos Estados Unidos, Trump culpa os governadores dos Estados, culpa os democratas, culpa a OMS. Desconsiderar os fatos se transforma em uma razão para promover práticas autoritárias, algo que está ocorrendo de maneira bastante geral.
P. Em seu país, no Reino Unido e no Brasil, nega-se a realidade, manipula-se a verdade, como se esta fosse maleável, como se fosse ficção…
R. O vírus é um exemplo muito claro de que há verdades científicas, de como a natureza opera por suas próprias regras, e não podemos mudar essas regras simplesmente não falando delas. Entretanto, nós, humanos, nos damos muito bem com isso de acreditar nas ficções durante um tempo muito longo, e às vezes, quando você sofre por causa de uma ficção, se convence ainda mais de que essa ficção é verdadeira. Portanto, o importante é parar o sofrimento, porque os piores líderes autoritários encontram maneiras de fazer esse sofrimento operar a seu favor. Se você não encarar os fatos, se se dedicar a contar mentiras, consome o tempo de que necessita para salvar vidas. Nos Estados Unidos estão morrendo dezenas de milhares de pessoas que não tinham por que ter morrido. Tivemos tempo de sobra para nos preparar. Podíamos ter prestado atenção no que outros países estavam fazendo, mas não prestamos, porque temos um líder que acredita na bruxaria e não na ciência. Ele nos falava de milagres, nos contava que isto sumiria num passe de mágica, iria embora sozinho. A realidade acaba se impondo, mas eles jamais reconhecem. Nós, como cidadãos particulares, temos que ser capazes de recordar: “Não, o que disse antes foi isso e estava equivocado, e isso teve um custo”. Uma das maneiras pelas quais o autoritarismo funciona é que as pessoas se habituam a que se minta para elas, a tal ponto que lhes parece atrativo e esperam que lhes mintam, querem que lhes mintam, e uma vez que você cai nessa situação se esquece de recuperar sua democracia.
A pandemia representa uma oportunidade para que a democracia demonstre como funciona, mas também para que os líderes autoritários hábeis como Trump sigam adiante com uma política do sofrimento
P. Quais você acha que serão as consequências das manipulações de hoje no aspecto democrático e político?
R. Acho que a democracia tem um bom aspecto, objetivamente. Países como a Espanha, a Itália e a Alemanha, que sofreram a epidemia com muitíssima virulência, tinham, no entanto, jornalistas que escreviam sobre o que estava ocorrendo e tiveram respostas de saúde pública que foram relativamente rápidas. Esta epidemia é ruim para todo mundo, mas quando você vive em uma democracia tem alguma ideia do que está acontecendo e alguma capacidade de perceber que seus líderes estão ou não ajudando. Tenho a impressão de que nos países do Leste Europeu a democracia terá inclusive um melhor aspecto do que antes da reação, porque em lugares como a Rússia e os Estados Unidos, onde os líderes mentem, e onde a imprensa muitas vezes é muito fraca para confrontá-los, muita gente vai morrer desnecessariamente. Acredito que isso poderá tirar um pouco de atrativo do autoritarismo, ao menos fora desses países. Minha preocupação é que haja alguns líderes autoritários que sejam suficientemente hábeis para tirar proveito do sofrimento, e isso é claramente o que Trump está tentando. Ele não quer que o sofrimento acabe, quer que se mantenha dentro de certos níveis, para depois canalizar esse sofrimento contra aqueles aos quais define como seus inimigos dia após dia. Penso que a pandemia representa uma oportunidade para que a democracia demonstre como funciona, mas infelizmente também é uma oportunidade para que os líderes autoritários hábeis como Trump sigam adiante com uma política do sofrimento. A política carece de finalidade, carece de verdade. O único que vale é a habilidade do líder para decidir quem é culpado e quem é inocente, a quem cabe atribuir a culpa. A política se transforma em uma produção diária de inocência e culpa.
P. Há três anos você deu um grande presente ao jornalismo, aquele livro contra a tirania da mentira. Qual acredita que deva ser hoje o papel do jornalismo com respeito à manipulação?
R. Esta pandemia mostrou a enorme importância do jornalismo local. Uma das razões pelas quais estávamos tão confusos nos Estados Unidos é porque não temos jornalistas locais que possam falar da doença onde ela acontece. Por exemplo, quando chegou a Seattle, Washington, não tínhamos suficientes repórteres para informar a respeito. Conforme a doença ia se espalhando pelos quatro cantos do país, não tínhamos repórteres que pudessem informar sobre todas as pessoas que chegavam aos hospitais e o que isso significava. Sempre ficamos para trás, porque não temos repórteres locais. Penso que a falta de repórteres locais é muito perigosa para todo tipo de políticas, e estamos vendo isso com esta doença. Os jornalistas servem um pouco como banco de memória. Se você escreve sobre o que fazem os líderes um dia qualquer, ao menos tem a oportunidade de apanhá-los quando tentarem retificar ou mudar de lado mais adiante. Esta é uma das poucas coisas que os jornalistas conseguiram fazer com Trump. Recordam a ele, e ao povo norte-americano, que mudou seu discurso radicalmente. A terceira coisa que os jornalistas podem fazer, e acredito que estão melhorando nisto, é em serem acérrimos defensores dos fatos. O The New York Times e o The Washington Post se moveram nessa direção, e me parece muito importante. É preciso haver um componente moral nisto. Temos que dizer: “Os fatos são nosso trabalho, os fatos importam, os fatos são reais, conhecer os fatos beneficia o público e por isso estamos comprometidos com os fatos”. Nunca é demais salientar a importância dos jornalistas em tempos de doença, porque os jornalistas permitem a transmissão de informação veraz ao público, e isso por sua vez permite ao público criticar os seus governantes. Múltiplos estudos mostraram que esta é a forma de controlar a enfermidade. Há um estudo na publicação médica britânica The Lancet, de 2019, que afirma justamente que a transparência ajuda a controlar as enfermidades. Mas a transparência não vem por si só, é algo em que os jornalistas precisam trabalhar.
P. Você fala das instituições como guardiãs da decência. A decência está em perigo?
R. Claro que a decência está em perigo. É muito triste ver como instituições de todo o mundo que outrora tinham uma reputação irrepreensível, seja o Supremo Tribunal da Polônia ou a Suprema Corte dos Estados Unidos, se tornam terrivelmente politizadas e perdem o respeito que já tiveram. É uma pauta muito significativa que o autoritarismo frequentemente funcione à base de corromper as instituições. Por exemplo, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, do qual nos orgulhávamos até bem pouco tempo atrás, foi corrompido de cima a baixo. É dirigido por um homem, William Barr, que não acredita em absoluto no sistema jurídico. Dito isto, não podemos prescindir das instituições. Justamente porque os autoritarismos as corrompem temos que fazer o possível para defendê-las. Além de proteger as instituições, também é importante construí-las. Esta doença nos vai levar a novas coalizões, vai propiciar novas relações que antes não existiam e, quando passar, ou quando a tivermos controlada, algumas destas coalizões e relações nos ajudarão a criar novas instituições, novas formas de sociedade civil. A razão pela qual as instituições nos conectam com a decência é que nos permitem estar juntos, nos permitem criar regras, criar pautas de comportamento com o passar do tempo. Isso continua sendo tão importante quanto sempre foi. Temos que resgatar as instituições que ainda temos, e depois nos caberá pensar criativamente para construir novas.
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