A figura de Franz Kafka transcende em muito a de um simples escritor de contos fantásticos e angustiantes. Ele se tornou um sismógrafo sensível das fraturas da modernidade, um profeta involuntário dos pesadelos burocráticos, políticos e existenciais do século XX e XXI. Analisar sua obra e sua vida através de críticas como as de Pascale Casanova, Marie-José Mondzain e Benjamin Balint, além de suas biografias, é desvendar um mapa crítico onde educação, política, sociedade e arte se entrelaçam de forma indissociável.
A educação na visão kafkiana, tal como vivenciada por seus personagens, não é um caminho para a libertação, mas uma iniciação num labirinto de regras incompreensíveis. Em O Processo, Josef K. é um homem educado, um funcionário bancário, e sua erudição é inútil perante a lei que o acusa. Ele não sabe qual é o crime, nem como se defender. A educação aqui não confere poder, apenas a consciência aguda da própria ignorância perante os sistemas complexos do mundo.
Pascale Casanova, em Kafka Indignado, nos apresenta um Kafka profundamente político, um "estrategista da liberdade" consciente de sua posição periférica no "Mapa Mundi da Literatura". A educação literária de Kafka, seu domínio do alemão numa Praga majoritariamente tcheca, colocou-o numa zona de fronteira. Ele foi educado para pertencer a um império (o Austro-Húngaro) que se desfazia, e a uma cultura que era minoria em sua própria terra. Essa educação não o enraizou, mas o tornou um estrangeiro em casa, um sentimento que permeia toda a sua obra, onde os protagonistas são eternos suplicantes em território alheio.
A política em Kafka não se manifesta em discursos ou partidos, mas na estrutura mesma do poder: anônimo, difuso e inescrutável. O Castelo, a Lei, o Tribunal – são todas instâncias que exercem um controle absoluto sem jamais se revelarem por completo. Esta é uma visão profética dos totalitarismos, onde o inimigo não tem rosto, e da burocracia moderna, que esmaga o indivíduo sob a gélida imparcialidade de seus procedimentos.
Benjamin Balint, em O Último Processo de Kafka, traz à tona a batalha política e jurídica pela herança dos manuscritos de Kafka entre Israel e a Alemanha. Este "último processo" é a materialização póstuma dos temas kafkianos: uma luta entre nações para possuir a voz de um homem que se sentia pertencente a nenhuma. A sociedade, nesse contexto, é um aglomerado de indivíduos atomizados, como em A Metamorfose, onde a transformação de Gregor Samsa em um inseto é menos sobre o monstro e mais sobre o desamparo social e familiar que ela desencadeia. A sociedade não cura, não acolhe; ela exclui e aponta.
Marie-José Mondzain, em K de Kolônia, provavelmente explora as dimensões simbólicas e comunitárias (ou da falta delas). O "K" que assina as obras de Kafka é um significante vazio, uma letra que pode ser preenchida por qualquer um – Josef K., o K. de O Castelo. É a marca do indivíduo genérico frente à máquina social. A arte, neste contexto, surge como uma tentativa de criar uma "kolônia" (colônia) de sentido num mundo que o nega, um espaço de refúgio e, ao mesmo tempo, de denúncia.
A Arte como o Grito e o Arquivo do Indizível
Para Kafka, a arte não era um ornamento, mas uma necessidade vital, uma forma de respirar. Ele escrevia não para entreter, mas para exorcizar seus demônios e, paradoxalmente, para lhes dar uma forma perfeita. Sua arte é a tradução estética do desamparo. A precisão quase jurídica de sua prosa, descrita como "clara como o dia", contrasta violentamente com a escuridão dos conteúdos, criando uma tensão que é a própria fonte de seu poder.
As biografias de Kafka mostram um homem em conflito constante entre a vida prática (o emprego numa companhia de seguros, as expectativas familiares) e a vocação artística. A arte era seu território de soberania, o "Castelo" interior que ele tentava alcançar contra todas as adversidades. Pascale Casanova argumenta que foi através desta estratégia literária que Kafka lutou contra as "potências anônimas e invisíveis" que o oprimiam, transformando sua indignação em uma obra que desmonta a lógica opressiva do poder.
Conclusão: O Eterno Processo
Kafka nos legou uma chave para decifrar o mundo contemporâneo. Nossa educação, muitas vezes, nos prepara para labirintos que não compreendemos. Nossa política opera cada vez mais através de algoritmos e burocracias kafkianas. Nossa sociedade produz formas sutis e brutais de exclusão. E a arte, seguindo o exemplo de Kafka, permanece como um campo essencial de resistência: um espaço para dar voz ao indignado, para mapear o desamparo e, ao fazê-lo, afirmar a frágil, porém insubstituível, dignidade do indivíduo. Sua vida e sua obra são um "processo" permanente contra a irracionalidade do mundo, um processo do qual, como leitores e cidadãos, somos todos testemunhas e, de certa forma, réus.
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