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quarta-feira, 19 de novembro de 2025

O psiquiatra que determinou que nazistas 'não eram loucos' e podiam ser julgados

 

Foto em tom sépia de Douglas M. Kelley.

Crédito,Cortesía Jack El-Hai

Legenda da foto,Os juízes de Nuremberg pediram a Douglas M. Kelley que estudasse a saúde mental dos dirigentes nazistas presos
    • Author,Juan Francisco Alonso
    • Role,BBC News Mundo

Por quê?

Há 80 anos, o mundo fazia essa pergunta enquanto vinha à tona a dimensão da tragédia deixada pelo fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e se revelavam os horrores dos campos de concentração, onde o regime nazista matou e tentou aniquilar judeus, ciganos, homossexuais e opositores políticos.

A humanidade esperava respostas do Tribunal Militar Internacional instalado na cidade alemã de Nuremberg, que a partir de 20 de novembro de 1945 julgou 24 altos comandos do deposto Terceiro Reich.

A tarefa inédita de processar os líderes de uma nação derrotada em uma guerra não foi simples. Os aliados precisaram resolver problemas legais e técnicos, como definir os crimes imputados, quem os julgaria e qual seria o procedimento adotado.

Embora princípios fundamentais do direito penal democrático, como a não retroatividade da lei — segundo a qual ninguém pode ser julgado por crimes não previstos previamente no ordenamento jurídico — não tenham sido plenamente respeitados, os vencedores tentaram corrigir essas falhas e conter críticas garantindo o devido processo legal aos acusados.

Mas antes de levar os dirigentes nazistas ao banco dos réus, era preciso esclarecer uma dúvida crucial: eles estavam mentalmente aptos para enfrentar um julgamento ou não? Essa tarefa ficou a cargo do psiquiatra americano Douglas M. Kelley.

Hermann Goering (ex-chefe da força aérea nazista), Rudolf Hess (ex-vice-chanceler), Joachim von Ribbentrop (ex-ministro das Relações Exteriores) e Wilhelm Keitel (ex-chefe do Exército nazista) na sala de audiências do Palácio da Justiça de Nuremberg, cercados por soldados dos EUA.

Crédito,Bettmann Archive/Getty Images

Legenda da foto,Em Nuremberg, pela primeira vez na história, os vencedores julgaram os dirigentes de uma nação derrotada em uma guerra

O preâmbulo

Por que era importante determinar a sanidade mental dos acusados?

"As garantias e direitos judiciais são inerentes a todo ser humano, sem exceção", afirma o advogado Carlos Ayala Corao, presidente da Comissão Internacional de Juristas (ICJ, na sigla em inglês), em entrevista à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC).

"Se uma pessoa não age por livre-arbítrio, mas por uma doença ou transtorno médico mental, o direito penal democrático a exclui de responsabilidade ou ao menos considera isso um atenuante", acrescenta Corao, também ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

A conclusão a que chegaria Kelley, psiquiatra formado pela Universidade da Califórnia (EUA) que se alistou no Exército dos Estados Unidos, onde alcançou o posto de tenente-coronel, e que durante o conflito tratou soldados aliados que lutaram na Europa por "fadiga de combate ou choque de guerra (hoje transtorno de estresse pós-traumático)", determinaria em grande medida o destino do julgamento inédito e, portanto, dos acusados.

"Em geral, os prisioneiros não são diferentes de um grupo de executivos de qualquer outro lugar; ao contrário da opinião popular, não estão loucos nem são super-homens", concluiu Kelley, segundo revelou em entrevista de rádio concedida no sexto dia do processo.

Foto do crachá que o Tribunal de Nuremberg entregou a Douglas Kelley.

Crédito,Cortesía Jack El-Hai

Legenda da foto,Kelley passou mais de oito meses entrevistando e submetendo a testes os dirigentes nazistas que haviam sido presos pelos aliados

Como Kelley chegou a esse diagnóstico? Ele "passou cerca de oito meses com os líderes nazistas, principalmente no hotel de Luxemburgo, onde foram mantidos e onde aplicou uma combinação de técnicas psiquiátricas", afirma à BBC News Mundo o jornalista americano Jack El-Hai, que estudou o trabalho do médico para o livro O Nazista e o Psiquiatra.

Para a obra, que inspirou o filme Nuremberg, com estreia prevista para fevereiro de 2026 no Brasil, estrelado pelos vencedores do Oscar Russell Crowe e Rami Malek, o jornalista revisou 15 caixas com documentos, relatórios e registros escritos por Kelley, nos quais anotou seus estudos sobre os nazistas. A família do médico preservou o material por décadas.

"Kelley entrevistou os acusados, mas também os submeteu a uma bateria de testes psicológicos, como o teste de manchas de tinta de Rorschach, no qual lhes era pedido que descrevessem o que viam em imagens abstratas", acrescenta.

"Também aplicou o teste de percepção temática, semelhante ao de Rorschach, mas com fotografias reais ou ilustrações, no qual era pedido que contassem uma história. Além disso, realizou testes de coeficiente intelectual (QI) e descobriu que todos tinham inteligência média ou acima da média", detalha.

Goering durante uma de suas declarações ao Tribunal Militar Internacional, vigiado por dois soldados.

Crédito,Bettmann Archive/Getty Images

Legenda da foto,Kelley dedicou mais tempo a Goering, que foi o chefe da força aérea nazista e herdeiro de Hitler

Brincando com fogo

Durante suas investigações, Kelley demonstrou interesse particular por um dos acusados: Hermann Goering, próximo de Adolf Hitler e ex-comandante da Luftwaffe (força aérea da Alemanha durante o regime nazista).

"Goering era o dirigente de maior hierarquia entre os capturados e Kelley se sentiu intrigado por ele, em parte porque os dois compartilhavam traços de personalidade: eram inteligentes, carismáticos, egocêntricos e um pouco narcisistas", afirma El-Hai.

"Kelley nunca ignorou a crueldade e as decisões frias de Goering durante a guerra, mas os dois desenvolveram uma relação que implicava certa admiração mútua, embora não fosse uma amizade", acrescenta.

O psiquiatra deixou registro de sua impressão sobre o antigo "ás da aviação" durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

"Goering era encantador quando decidia ser; tinha uma excelente inteligência, grande imaginação, muita energia e senso de humor", escreveu Kelley, segundo manuscritos disponíveis no Museu do Holocausto dos EUA.

"Todos os dias, quando eu chegava à sua cela [de Goering], ele se levantava da cadeira, me cumprimentava com um largo sorriso e a mão estendida, me acompanhava até sua cama e dava leves batidas no centro: 'Bom dia, doutor. Fico muito feliz que tenha vindo me ver… por favor, sente-se'. Depois, se acomodava ao meu lado com seu corpo grande, pronto para responder às minhas perguntas", relatou em outro documento.

A esposa de Goering, Emmy, e a filha Edda caminham pelas ruas de Nuremberg.

Crédito,Bettmann Archive/Getty Images

Legenda da foto,Goering passou a confiar tanto em Kelley que chegou a pedir que ele adotasse sua filha, Edda, caso ele e a esposa não sobrevivessem

Mas Kelley não apenas determinou a sanidade mental de Goering, como também se certificou de que ele não morresse na prisão por causa do sobrepeso — superior a 120 quilos — e da dependência de codeína.

Por isso, além de convencer o líder nazista a seguir uma dieta, reduziu gradualmente a dose de drogas que ele consumia para lidar com a dor decorrente de ferimentos sofridos na Primeira Guerra Mundial.

O vínculo que criou com o paciente levou o psiquiatra a "cruzar linhas vermelhas" que prejudicaram sua reputação para sempre, afirma El-Hai.

"Kelley aceitou atuar como mensageiro e levar cartas escritas por Goering à esposa, Emmy. Isso não foi autorizado pelo tribunal nem por qualquer governo aliado, mas ele concordou em fazê-lo", afirma o jornalista.

No entanto, houve outra prova ainda maior da confiança que o antigo herdeiro de Hitler depositou no psiquiatra.

"Goering pediu a Kelley que, caso ele ou a esposa não sobrevivessem, adotasse sua filha e a criasse nos Estados Unidos. Kelley discutiu a ideia com a própria esposa, que se opôs", afirma o biógrafo do médico.

Nazistas diante do Capitólio, em Washington, em 2002.

Crédito,MIKE THEILER/AFP via Getty Images

Legenda da foto,Quando Kelley descobriu que os dirigentes nazistas não estavam mentalmente doentes, ficou aterrorizado, porque isso revelava que o fascismo também poderia chegar aos EUA

Temor pelo que encontrou

No início de suas investigações, Kelley acreditava que os dirigentes nazistas haviam sido contaminados por "um vírus" ou alguma doença que os levara a planejar e ordenar as atrocidades pelas quais seriam julgados, diz El-Hai.

"Mas, depois de concluir que os dirigentes nazistas não estavam mentalmente doentes e que seu comportamento se encaixava no limite do normal — o que não significa que fosse bom, mas que não podia ser atribuído a uma doença psiquiátrica —, Kelley ficou apavorado", afirma o biógrafo.

"Essa constatação implicava que havia muitas pessoas como eles (os líderes nazistas) entre nós, em qualquer país e em qualquer época", acrescenta.

"Basicamente eram pessoas normais, influenciadas pela mentira e pela burocracia. Criaturas moldadas pelo próprio entorno, indivíduos que poderiam estar atrás de grandes mesas em qualquer parte do mundo", concluiu Kelley, segundo o livro Anatomy of Malice: The Enigma of the Nazi War Criminals (Anatomia da Maldade: O Enigma dos Criminosos de Guerra Nazistas, em tradução livre), do psiquiatra americano Joel E. Dimsdale.

Vista da sala de audiências do Tribunal de Nuremberg em uma sessão de 1945.

Crédito,Bettmann Archive/Getty Images

Legenda da foto,Os julgamentos de Nuremberg tinham como objetivo evitar que horrores como os da Segunda Guerra Mundial se repetissem

Assim, ao voltar aos EUA em 1946, o psiquiatra fez uma série de conferências e escreveu artigos nos quais alertava para o risco de o fascismo também chegar ao poder no país, como ocorreu antes na Alemanha, na Itália e em outras nações europeias.

"Naquele momento, muitos Estados eram governados por políticos que defendiam a segregação racial e usavam técnicas semelhantes às dos nazistas para manipular seus eleitores", afirma El-Hai.

E como se tudo isso não bastasse, Kelley também decidiu iniciar um novo ciclo profissional.

"O tempo que passou com os nazistas mudou o modo como Kelley pensava sobre a natureza das doenças mentais e sobre se a psiquiatria era uma especialidade viável para tratar pessoas como esses criminosos. E concluiu que não era", diz El-Hai.

"Se essas pessoas eram normais, como a psiquiatria poderia explicar o que elas fizeram? Por isso, nos últimos anos de sua vida, ele se dedicou à criminologia, acreditando que talvez ali pudesse encontrar respostas", afirma.

Os atores Russell Crowe e Rami Malek na estreia de Nuremberg no Canadá, em setembro de 2025.

Crédito,COLE BURSTON/AFP via Getty Images

Legenda da foto,Os atores Russell Crowe e Rami Malek interpretam Hermann Goering e Douglas Kelley no filme Nuremberg

Imitando o paciente

A última evidência de que sua convivência com os nazistas, sobretudo com Goering, marcou Kelley ocorreu em 1º de janeiro de 1958.

Naquele dia, o psiquiatra, que após os julgamentos teve problemas com álcool e sofreu de depressão, discutiu de forma acalorada com a esposa e, em um impulso, tomou uma cápsula de cianeto. Morreu na hora.

Doze anos antes, o antigo sucessor de Hitler havia tirado a própria vida da mesma forma. O líder nazista se suicidou poucas horas antes da execução da sentença de enforcamento, determinada pelo Tribunal Militar Internacional, que o declarou culpado por conspiração contra a paz e por crimes de agressão, de guerra e contra a humanidade.

"O suicídio de Goering foi seu último ato de desafio, e acredito que o de Kelley também foi", diz El-Hai, que afirma não ter encontrado, nos documentos consultados, qualquer indício de que o psiquiatra pensasse em se matar.

A coincidência reforçou a suspeita de que Kelley teria entregue ao nazista a cápsula de veneno, algo que nunca foi comprovado.

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