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quarta-feira, 19 de novembro de 2025

O que é "Stories of Surrender"? Por Egidio Guerra



"Stories of Surrender" é um projeto multifacetado do Bono, inicialmente concebido como um espetáculo ao vivo e posteriormente adaptado para um livro intitulado "Surrender: 40 Songs, One Story" (2022). O núcleo do projeto é uma memória narrativa onde Bono revisita sua vida através da lente de 40 músicas do U2 e de momentos pessoais cruciais. 

O título "Stories of Surrender" (Histórias de Rendição) é a chave. Para Bono, "rendição" não significa derrota ou desistência, mas sim um ato de entrega, aceitação e abertura. É sobre abandonar o controle, o ego e as certezas para encontrar algo maior: amor, fé, criatividade ou até mesmo a si mesmo. 


Resumo Detalhado dos Temas e Histórias Principais 

As histórias de rendição de Bono podem ser agrupadas em alguns eixos centrais: 

1. A Rendição ao Luto e à Perda: A Morte da Mãe 

  • A História: A morte de sua mãe, Iris, quando ele tinha 14 anos, é uma ferida fundamental. Bono descreve a incapacidade de seu pai, Bobby, de expressar o luto, criando uma casa silenciosa e cheia de dor não processada. 

  • A Rendição: Ele teve que se render à dor avassaladora. Não havia como combatê-la, apenas atravessá-la. Essa experiência de abandono e luto precoce tornou-se uma fonte primária de sua busca por conexão e significado. 

2. A Rendição à Fé e à Dúvida: O Cristianismo em Dublin 

  • A História: Bono e os membros do U2 (especialmente The Edge) fizeram parte de um grupo cristão carismático chamado "Shalom" no final dos anos 70. O grupo pregava que o rock 'n' roll era pecaminoso e que eles deveriam abandonar a banda para se dedicarem totalmente à fé. 

  • A Rendição: Este foi um momento de conflito existencial. Eles tiveram que se render à ideia de que sua fé e sua vocação musical não eram incompatíveis. A decisão de permanecer na banda foi uma rendição à crença de que Deus poderia estar em sua música, não fora dela. Essa luta entre dúvida e fé, sagrado e profano, tornou-se um pilar de suas letras. 

3. A Rendição ao Amor: Ali Hewson 

  • A História: Bono conheceu Alison Stewart ("Ali") ainda na escola e narra o amor adolescente que se transformou no alicerce de sua vida. Em um gesto icônico, ele a chamou no palco durante um show em 1982 para lhe dar um buquê de flores. 

  • A Rendição: Render-se ao amor significou abrir mão de parte de sua independência e egoísmo para construir uma parceria vitalícia. Ali é retratada como sua âncora, a pessoa que o mantém frente à fama, ao excesso e ao seu próprio ego. É uma rendição à vulnerabilidade e ao compromisso. 

4. A Rendição ao Ego e à Fama 

  • A História: O sucesso massivo do U2, especialmente após o álbum The Joshua Tree, transformou Bono em uma superstar global. Ele narra os perigos do ego, a tentação de acreditar em sua própria persona pública e os momentos de arrogância. 

  • A Rendição: A luta constante é se render à humildade. Seu ativismo, em parte, é uma forma de usar a fama para um propósito maior, rendendo-a a uma causa. A persona "Rockstar" precisa ser constantemente desmontada pelo homem real. 

5. A Rendição à Inveja e à Competição: A Relação com o Pai 

  • A História: A relação complicada e muitas vezes tensa com seu pai, Bobby Hewson, é um fio condutor. Bono sentia que seu pai o desprezava por sua ambição artística e tinha inveja de seu sucesso. Só no leito de morte de Bobby é que houve um momento de reconciliação, quando o pai disse que era "orgulhoso" de seu filho. 

  • A Rendição: Bono teve que se render ao desejo de aprovação e à raiva. Ele percebeu que a frieza de seu pai era seu próprio modo de lidar com a dor. A reconciliação final foi uma rendição à compaixão e ao perdão. 

6. A Rendição ao Ativismo: O Papel de "Salvador do Mundo" 

  • A História: Sua jornada como ativista, lutando pelo perdão da dívida da África (campanha Jubilee 2000) e contra a AIDS (DATA, ONE Campaign), nasceu de uma fé que exige ação no mundo real. 

  • A Rendição: Ele se rende à responsabilidade que sente por usar sua voz. Isso significa abrir mão de tempo em família, enfrentar críticas de ser um "missionário chato" ou um "egoísta salvador", e mergulhar na complexidade maçante da política global. 

 

Como Essas Histórias Influenciaram Suas Músicas 

As "Stories of Surrender" são o subsolo de onde brotam as letras do U2. Quase toda a sua discografia pode ser relida através dessas lentes: 

  • Luto e Família: "I Will Follow" é uma homenagem direta à sua mãe. "Sometimes You Can't Make It On Your Own" é uma conversa dolorosa e direta com seu pai, cantada no seu funeral. "Mofo" é um grito visceral sobre a falta da figura materna. 

  • Fé e Dúvida: "Gloria", "I Still Haven't Found What I'm Looking For" e "Wake Up Dead Man" são trilogias perfeitas da busca espiritual. A primeira é um hino de louvor, a segunda um manifesto da dúvida honesta e a terceira um apelo desesperado em meio ao desespero. 

  • Amor e Relacionamentos: "All I Want Is You", "The Sweetest Thing" e "Every Breaking Wave" são profundamente influenciados por seu relacionamento com Ali, explorando a devoção, o arrependimento e a resistência do amor ao longo do tempo. 

  • Ego e Fama: "The Fly" (de Achtung Baby) marca a criação de uma persona para satirizar a fama. "Stuck in a Moment You Can't Get Out Of" é um diálogo sobre depressão e ego, e "Numb" captura a paralisia e o excesso da vida no centro das atenções. 

  • Ativismo e Sociedade: "Sunday Bloody Sunday", "Pride (In the Name of Love)", "Walk On" e "Crumbs from Your Table" são exemplos diretos de como suas convicções políticas e sociais se traduzem em música. 

 

Como Influenciaram Sua Vida 

As "rendições" de Bono moldaram não apenas o artista, mas o homem: 

  1. Resiliência Emocional: Aprender a se render à dor, em vez de combatê-la, deu-lhe uma força emocional única para enfrentar críticas, fracassos e perdas pessoais. 

  1. Equilíbrio Pessoal: Sua rendição ao amor de Ali forneceu um porto seguro inabalável, permitindo que ele navegasse nos mares turbulentos da fama sem se perder completamente. 

  1. Propósito Existencial: A síntese que ele fez entre fé e arte deu à sua carreira um senso de missão que vai além do entretenimento. Seu ativismo é uma extensão direta dessa fé prática. 

  1. Humildade (em Construção): A consciência constante de sua luta contra o ego o obriga a uma autorreflexão contínua. "Stories of Surrender" é, em si, um ato público de humildade, onde ele expõe suas fraquezas e contradições. 

Conclusão 

"Stories of Surrender" é muito mais do que uma simples autobiografia ou um show. É a chave hermenêutica para entender Bono e o U2. A vida, para ele, é uma série de atos de rendição – ao amor, à dor, a Deus, ao próximo e à sua própria verdade mais profunda. Sua música é o diário sonoro dessa jornada, onde cada acorde e cada verso ecoam essas rendições transformadoras que, paradoxalmente, não o enfraqueceram, mas sim o forjaram como um dos artistas mais complexos e completos de sua geração. 

 

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