O risco do anacronismo

Retrato de Dumas

Crédito,Getty Images/BBC

Legenda da foto,O francês Alexandre Dumas tem tido sua negritude resgatada

Em outras partes do mundo, a origem negra de personalidades notáveis também vem sendo resgatada.

Autor de O Conde de Monte Cristo e de Os Três Mosqueteiros, o francês Alexandre Dumas (1802-1870) era neto de uma ex-escravizada e, nos últimos anos, tem tido sua negritude destacada por movimentos antirracistas.

O poeta, escritor e dramaturgo russo Alexandre Pushkin (1799-1837) é outro exemplo.

Seu bisavô materno era um africano que foi sequestrado de sua terra natal e acabou criado na corte como afilhado da então imperatriz.

Mas faz sentido colocar a questão da negritude olhando para personagens que talvez não questionassem isso — ou, se o faziam, era com outros critérios que não os atuais?

Para David Santos, sim.

"Todos eles são vítimas de uma sociedade que nunca trabalhou o letramento racial como proposta do reino de Deus. Eles não escolheram negar sua identidade afro", diz o frade franciscano e teólogo.

"A sociedade de seu tempo impôs a eles essa postura. Resgatá-los, hoje, é nossa missão."

Retrato de Pushkin

Crédito,Getty Images/BBC

Legenda da foto,O poeta, escritor e dramaturgo russo Alexandre Pushkin também tem tido sua origem negra resgatada

O historiador Philippe Arthur dos Reis, professor na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), faz uma ressalva: ele considera a palavra "embranquecimento" inadequada nesta discussão.

"Por causa da própria concepção de negritude e de branquitude, que se diferencia com o passar do tempo", aponta.

A questão do racismo, lembra ele, é um problema da modernidade.

A linguista Ana Azevedo Bezerra Felicio, pesquisadora, ativista e autora do livro O amor não está à venda, ratifica isso. Ela aponta que "negro" é uma categoria surgida com os movimentos antiescravagistas.

"É muito importante olharmos para a diversidade no passado para refletirmos como a nossa sociedade veio a ficar dividida deste jeito, mesmo que essas divisões [étnicas] não fossem tão relevantes no passado", diz ela.

Para Roberta Basílio, o resgate da negritude de personalidades já consagradas, como Machado de Assis, tem um efeito importante porque as pessoas já reconhecem "o talento e a inteligência" dessas figuras.

Em outras palavras, parte-se da obra já celebrada para acrescentar o lembrete: foi uma pessoa negra quem fez.

"Mostramos que somos potência. E eu digo nós porque sou uma mulher negra. E isso tem um peso muito grande para nós, como representatividade", frisa ela, lembrando que, em seus tempos de escola, os protagonistas da história eram sempre brancos e os negros, inferiorizados.

Para Reis, trazer à tona a identidade negra de tais figuras importantes tem um impacto "simbólico" e "afetivo".

"Mas a simples menção a isso não resolve o problema. Tem de ter a efetiva transformação dos espaços", cobra o professor.