A prática de contar histórias para crianças é um ritual ancestral, celebrado por seu potencial de encantar, ensinar e formar. No entanto, quando esse método pedagógico se transforma em um veículo para a transmissão de "lições de moral" pré-empacotadas e conclusões únicas, ele se torna um ato de violência simbólica. Trata-se de uma pedagogia da resposta, não da pergunta; da linha reta, não do labirinto. Ao desprezar a singularidade e o universo interior de cada criança, essa abordagem fecha portas que a arte, em sua essência, deveria abrir.
A contação de histórias tradicional, com seu "e a moral da história é...", opera numa lógica linear e autoritária. Ela pressupõe que todas as crianças, em sua imensa diversidade de experiências, medos, desejos e contextos, devem extrair a mesma mensagem simplificada de uma narrativa complexa. O lobo é sempre mau, a princesa é sempre boazinha, a desobediência é sempre punida. Este método não dialoga com a criança; doutrina-a. Ele substitui a aventura do pensamento pela segurança do dogma, anulando a capacidade de a criança se perder no texto, encontrar suas próprias assombrações e alegrias, e tecer a partir do caos da trama.
É aqui que o pensamento de filósofos como Gilles Deleuze e Jacques Rancière nos oferece um antídoto potente e um novo horizonte para o que a arte – e, por extensão, a contação de histórias – pode ensinar.
Para Gilles Deleuze, o pensamento não é uma linha reta que busca uma verdade única, mas um rizoma: uma estrutura que se ramifica de forma imprevisível, conectando pontos heterogêneos sem um centro ou hierarquia. A arte, nesse sentido, não "ensina" lições. Ela provoca encontros. Um encontro com uma obra de arte (seja um conto, uma pintura ou uma música) não é uma decodificação, mas um evento que força o pensamento a sair de seus trilhos habituais. Ele cria "devires": a criança não aprende sobre o lobo, ela deve ser lobo por um momento, experimentando sua fome, sua solidão ou sua astúcia. Ela não julga a princesa, ela deve ser princesa, sentindo o peso do castelo e o desejo de liberdade.
A arte, portanto, amplia a sensibilidade e a imaginação justamente por ser complexa e não-linear. Ela dança na relação entre a obra, o autor e quem a escuta. A obra não é um depósito de significados a serem escavados, mas um aglomerado de (conceitos de sensação). A criança que escuta uma história não é um receptáculo vazio; ela é um corpo que ressoa, que se conecta com aqueles afetos de maneira absolutamente singular. Uma mesma história de medo pode aterrorizar uma criança e empoderar outra, dependendo de qual "linha de fuga" – outro conceito deleuziano – ela encontra na narrativa para escapar dos significados pré-estabelecidos.
Já Jacques Rancière complementa essa visão com sua noção de "emancipação intelectual". Para Rancière, a premissa de que é preciso explicar a obra de arte para que o "ignorante" (a criança) a compreenda é, na verdade, a confirmação de uma hierarquia que perpetua a desigualdade. O mestre-pedagogo que explica a moral da história está, na verdade, afirmando sua própria superioridade e a suposta incapacidade da criança de entender por si mesma.
Rancière propõe uma "comunidade de sensíveis", onde todos são igualmente capazes de ver, sentir e interpretar. A contação de histórias, nesse modelo, não seria uma aula, mas uma partilha. O contador não é o detentor do sentido, mas um mediador que apresenta um universo de signos. A criança, como qualquer espectador emancipado, é convidada a traçar seu próprio percurso de interpretação, a conectar a história com sua própria experiência e a tecer sua própria trama de significados. A ética que daí emerge não é uma lista de regras, mas uma sensibilidade aguçada para a complexidade do mundo, fruto do exercício contínuo de julgar por si mesmo, de se colocar no lugar do outro de forma genuína, e não por obrigação moral.
O que a arte pode ensinar, então, não é um conteúdo, mas um método de existência: a coragem de habitar a ambiguidade, a potência de criar conexões inusitadas, a sensibilidade para perceber os afetos que circulam entre as pessoas e o mundo. Uma história contada sob essa perspectiva não oferece respostas; ela sementes perguntas. Ela não domestica a imaginação com linhas retas, mas a liberta em espirais complexas, numa dança infinita entre a obra, o autor e aquele que, ao escutar, se torna, ele também, coautor da narrativa. É na recusa da conclusão única que se honra, verdadeiramente, a inteligência e a singularidade de cada criança.
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