SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

A Arte de Navegar no Caos: Gestão de Sistemas de Alta Complexidade e Risco por Egidio Guerra




Gerir uma startup ou uma linha de produção é um desafio, mas há esferas de gestão que operam em uma liga diferente. Lançar um foguete ao espaço, operar uma usina nuclear, orquestrar o desenvolvimento económico de uma nação – estes são domínios onde a complexidade é avassaladora, os riscos são cataclísmicos e a margem para erro é infinitesimal. Compreender como gerir nestes ambientes é uma lição sobre os limites do controlo, a irrevogável importância do humano e a sabedoria de aprender com sistemas que já possuem bilhões de anos de experiência. 




O Domínio da Tecnologia e dos Indicadores: A Ilusão do Controle Total 

Em primeiro lugar, é crucial reconhecer o que a tecnologia pode gerir. Nestes sistemas, somos apoiados por uma rede densa de dados e métricas. 

  • Monitorização em Tempo Real: Sensores em todos os estágios de um foguete medem pressão, temperatura, vibração e trajectoria. Num reator nuclear, uma infinidade de indicadores rastreia o fluxo de neutrões, a temperatura do núcleo e a integridade dos sistemas de contenção. 

  • Modelagem Preditiva: Economistas e gestores públicos usam modelos econométricos complexos para simular o impacto de uma alteração nas taxas de juro, um novo imposto ou um investimento maciço em infraestruturas. 

  • Automação de Processos Críticos: Computadores executam sequências de lançamento e reentrada em milissegundos, muito além da capacidade de reação humana. Sistemas de segurança fail-safe são desenhados para agir automaticamente perante certas condições. 



Aqui, a gestão é uma ciência. É o reino dos KPIs (Indicadores-Chave de Desempenho), dos dashboards e dos alertas. Esta camada tecnológica cria uma "consciência instrumental" do sistema, permitindo-nos ver o seu estado e intervir com precisão. No entanto, é uma ilusão perigosa acreditar que isto equivale a controlo total. A tecnologia gere a execução, mas não a intenção, a ética ou o inesperado verdadeiramente singular. 



O Domínio Humano: Escolhas, Autonomia e Conhecimento Tácito 

É precisamente no inesperado que o elemento humano se torna insubstituível. A tecnologia lida com variáveis conhecidas; os humanos lidam com o desconhecido. 

  • Julgamento e Ética: Um director de uma usina nuclear pode ter de decidir entre seguir um protocolo rígido ou autorizar uma ação não prevista, baseando-se num "pressentimento" alimentado por anos de experiência. Um governante, perante dados económicos ambíguos, deve fazer uma chamada sobre um estímulo fiscal, pesando não apenas números, mas o bem-estar social e a estabilidade política. 

  • Conhecimento Tácito: É o "saber como" que não está totalmente documentado. É a experiência do engenheiro que ouve um ruído sutil num motor de foguete e suspeita de uma falha que os sensores não captaram. É a intuição do diplomata que lê entre as linhas de um tratado comercial. 

  • Autonomia Responsável: Sistemas complexos exigem que as equipas na linha da frente tenham autonomia para agir. O famoso princípio do "O-Ring" da NASA, onde qualquer pessoa poderia parar um lançamento se sentisse que algo estava errado, é um tributo à confiança no julgamento humano perante a falibilidade dos sistemas técnicos. 

Gerir o elemento humano significa cultivar cultura, ética, comunicação clara e resiliência psicológica. É sobre liderança, não apenas sobre comando. 



Lidando com Riscos e Complexidade: Da Previsão à Resiliência 

Nestes sistemas, a meta não é eliminar o risco (algo impossível), mas geri-lo com sofisticação. 

  1. Pensamento Sistémico: Compreender que tudo está interligado. Uma alteração numa variável económica afecta todas as outras. Uma falha num sensor de um foguete pode desencadear uma cascata de falhas. 

  1. Preocupação com os "Cisnes Negros" e os "Riscos Sistémicos": Para além dos riscos calculados, é necessário preparar-se para eventos raros e de impacto extremo, que estão fora das distribuições normais de probabilidade. 

  1. Cultura de Segurança Justa (Just Culture): Em vez de uma cultura de culpa, que esconde erros, promove-se uma cultura onde os erros são reportados e analisados como oportunidades de aprendizagem, criando um sistema imunológico mais forte. 

  1. Simulação e Stress Testing: Submeter o sistema a condições extremas em ambiente simulado para descobrir pontos fracos antes que eles se revelem no mundo real. 



Metáforas para uma Compreensão mais Profunda: A Sabedoria de Gaia e da Orquestra
 

Para conceptualizar a gestão destes sistemas, as metáforas são ferramentas poderosas. 

  • A Orquestra: Um maestro não toca nenhum instrumento. A sua função é garantir que todos os músicos (subsistemas especializados) tocam em harmonia, no ritmo certo e com a mesma partitura (a visão e a estratégia). Ele confia na perícia de cada um, mas define o tom e a dinâmica. Esta é a gestão como coordenação de especialistas autónomos. 

  • A Natureza e os Corpos Vivos: Uma floresta ou o corpo humano são sistemas complexos e adaptativos. Eles possuem mecanismos de auto-gestão (homeostase): o corpo regula a sua temperatura, a floresta regenera-se após um incêndio. Não existe um "chefe" central. A gestão, aqui, assemelha-se a cultivar um ecossistema – criar as condições para que a saúde e a resiliência emergiam naturalmente, em vez de tentar comandar cada processo. 

  • Gaia (A Terra como um Sistema Vivo): A hipótese de Gaia, proposta por James Lovelock, vê a Terra como um sistema complexo e auto-regulador, onde a vida interage com o ambiente para manter condições de habitabilidade. Esta é a metáfora suprema para a metacognição – a capacidade do sistema de "pensar sobre si próprio". Numa gestão inspirada por Gaia, o foco desloca-se do controlo para a observação profunda, adaptação e resiliência. Perguntamo-nos: como podemos criar organizações e sociedades que, como Gaia, possam autorregular-se, aprender com perturbações e manter o equilíbrio a longo prazo? 


Conclusão
 

Gerir os sistemas mais complexos do mundo é uma dança constante entre a precisão fria da tecnologia e o julgamento quente e imperfeito do ser humano. É a humildade de reconhecer que, por mais indicadores que tenhamos, estamos sempre a navegar em águas parcialmente desconhecidas. Ao olharmos para uma orquestra, para um ecossistema ou para o próprio planeta, aprendemos que a verdadeira mestria não reside no controlo absoluto, mas na arte de orquestrar a complexidade, de cultivar a resiliência e de confiar na inteligência distribuída e na capacidade de auto-organização que é, em última análise, a força mais poderosa que podemos gerir. 

 

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