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terça-feira, 18 de novembro de 2025

Uma Pedagogia do olhar: A Lição Crítica de Georges Didi-Huberman por Egidio Guerra

 


Num mundo saturado de imagens, onde a superficialidade e o esquecimento parecem reinar, a obra do filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman surge como um antídoto potente e uma bússola crítica. Através de suas séries monumentais "Quando as Imagens Tomam Posição: O Olho da História" (volumes 1, 2 e 3) e "Diante do Tempo: História da Arte e Anacronismo das Imagens", Didi-Huberman constrói uma arqueologia do olhar que nos educa para as complexas relações entre filosofia, arte, história e sociedade. Seu projeto central é demonstrar como as imagens – das pinturas renascentistas às fotografias de campos de concentração – não são meras ilustrações do passado, mas agentes ativos que atualizam a história e fermentam o pensamento crítico. 


Quando as Imagens Tomam Posição: A Imagem como Sintoma e Montagem 

A série "O Olho da História" é profundamente influenciada pelo pensamento do filósofo Walter Benjamin e pelo cineasta Bertolt Brecht. Didi-Huberman propõe que as imagens "tomam posição" no sentido político e epistemológico. Elas não são neutras. Em vez de serem janelas transparentes para um fato consumado, elas são sintomas das contradições, tensões e lutas de sua época. 


Para Didi-Huberman, educar o olhar significa aprender a ler essas "fissuras" na representação. A famosa análise que ele faz das quatro fotografias tiradas secretamente por membros do Sonderkommando em Auschwitz é um exemplo crucial. Essas imagens borradas, truncadas e "mal compostas" são, para ele, mais verdadeiras e poderosas do que qualquer documento oficial. Elas "tomam posição" contra a lógica do extermínio que visava apagar todos os traços. Elas são um ato de resistência e um sintoma do horror indizível. Ao confrontá-las, não estamos apenas vendo o passado; estamos sendo interpelados por ele, obrigados a assumir uma posição ética e crítica no presente. 

Além disso, ele defende que o conhecimento histórico se constrói por montagem, à maneira do cinema. Colocar imagens de épocas e contextos diferentes lado a lado – um quadro de Fra Angelico com uma foto de um campo de refugiados – não é um anacronismo ingênuo, mas um método para fazer surgir novas relações de sentido. Essa montagem "faz cintilar" o tempo, criando um "olho da história" que é dialético, capaz de ver os fios que ligam o passado ao presente. 



Diante do Tempo: O Anacronismo como Método Crítico 

Se "O Olho da História" nos ensina a ver a imagem como sintoma, "Diante do Tempo" fornece a base filosófica para esse método: a reabilitação do anacronismo. A história da arte tradicional frequentemente busca contextualizar rigidamente a obra, enclausurando-a em seu tempo para evitar "erros" de interpretação. Didi-Huberman argumenta o contrário: as imagens são, por natureza, anacrônicas. 


Uma imagem nunca pertence apenas ao seu momento de criação. Ela carrega em si camadas de tempo diferentes – o tempo do que representa, o tempo de sua feitura, o tempo de sua recepção. Quando olhamos para um afresco de Giotto no século XXI, nós o vemos com os olhos do nosso tempo, com nossas próprias angústias e questões. Esse "encontro de tempos" é produtivo. O anacronismo não é um erro a ser corrigido, mas a condição mesma de nossa relação com as imagens e com a história. 

Educar-se pela lente do anacronismo significa entender que a história não é uma linha reta e contínua, mas um campo de forças onde passado e presente se interpenetram constantemente. A arte, nesse sentido, é um veículo privilegiado desse "diálogo entre os tempos". Ela nos permite estar "diante do tempo", não como espectadores passivos de uma crônica fechada, mas como interlocutores ativos de um passado que ainda nos fala e nos questiona. 


Educar para um Pensamento Crítico: Filosofia, Arte, História e Sociedade 

A grande contribuição educativa de Didi-Huberman está em entrelaçar estas quatro dimensões: 

  1. Filosofia: Fornece as ferramentas conceituais (dialética, sintoma, anacronismo) para questionar a aparente obviedade do mundo. 

  1. Arte: Oferece o corpus de imagens que, quando interrogadas criticamente, tornam-se "casos de pensamento", experiências sensíveis que desafiam nosso entendimento. 

  1. História: É reconfigurada como um campo aberto e em disputa, onde o passado é uma ferramenta para decifrar o presente, e não um museu de curiosidades. 

  1. Sociedade: O objetivo final é formar cidadãos capazes de ler criticamente o fluxo de imagens que os rodeia, identificando as ideologias, as opressões e as resistências que elas veiculam. É entender que "tomar posição" frente às imagens é, em última instância, tomar posição no mundo. 

Conclusão 

Ler Didi-Huberman é submeter-se a uma pedagogia do olhar. Ele nos ensina que a verdadeira educação não reside em acumular datas e estilos, mas em desenvolver a coragem de confrontar a complexidade do tempo. Suas obras são um convite para deixarmos de ser consumidores passivos de história e de imagens, e nos tornarmos seus intérpretes ativos. Ao aprender a ver as imagens como sintomas que tomam posição e como entidades anacrônicas que falam ao nosso tempo, nós nos armamos contra o esquecimento e a manipulação. Educamos nosso olhar para, enfim, melhor compreender e transformar a nossa posição na teia da história e da sociedade. 

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