SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

O Canto e o Grito na Última Sala de Aula! Por Egidio Guerra




Há um lugar onde a alegria ainda tenta nascer, entre cimento rachado e giz quebrado. É na sala de aula pública. Aqui, a alegria é um ato de rebeldia. É o instante fugaz em que um olho escuro, antes opaco pela fome, se incendeia com a descoberta de uma sílaba, de um número, de uma cor que não é a cor da violência. Nada no mundo, nenhum tesouro, substitui o som desse estalo interior, esse "eu entendi!" que é um pequeno triunfo contra o caos. É a linguagem primordial da criança: o assombro. 

Mas esta mesma sala é palco de uma tristeza que é crime político. Uma dor que não é acidente, é projeto. É o estômago roncando mais alto que a explicação. É o corpo que traz, em hematomas e silêncios, a geografia do abandono. É a fome que corrói a concentração, o abuso que sussurra baixinho "você não vale nada". Nada é mais triste, e mais revoltante, do que ver essa luz sendo sugada por buracos negros que não são cósmicos, são sociais. São a miséria planejada. 

E o que faz a escola quando falta tudo? Espaço para brincar (o brincar, linguagem divina!), brinquedos, livros, papel? Aos poucos, se arranca da criança sua capacidade de sonhar, de sorrir, de se expressar em outras línguas que não a do medo. Se esvazia o sonho. Eles sabem: criança sem sonho é futuro domesticável. 

Os donos do poder, as oligarquias, os capitães do mato modernos que assinam decretos, querem nos convencer que o "conteúdo" é fim. Uma lista morta para decorar. Mentira. O conteúdo digno é consequência. Consequência de um corpo alimentado, de uma mente curiosa, de um coração que não teme. A vida, ensinam-nos, não era para ser vivida na periferia, cercada pelo crime, com famílias despedaçadas. Mas é. E, nessas circunstâncias, a sala de aula vira sagrada. O último território de resistência contra a barbárie que vem de fora e, às vezes, se veste de gestão. 

Onde está a sensibilidade, a ética? Os políticos e empresários da corrupção vivem de necropolítica. Eles enterram, sim, corpos de crianças e jovens todos os dias – por bala, por fome, por desespero – e depois, cínicos, vomitam discursos sobre "esquerda" e "pobreza" para justificar mais policiamento e menos investimento. É um teatro de horrores. A quem querem enganar? Todos sabem. Todos veem. A revolta das famílias não é um desvio; é diagnóstico de um sistema em putrefação. 

E a escola adoece. Adoece seus professores, guerreiros que lutam com nada contra esses capitães do mato com terno e caneta. Que transformam escolas em feudos eleitorais, que roubam no MEC, que fraudam a democracia há décadas, comprando votos com o dinheiro que deveria comprar merenda, livros, dignidade. É um cansaço que vai até a alma. 

Então, o que podemos fazer nós, professores, nessa sala de aula sitiada? 

Podemos fazer do nosso ensino um ato de desobediência. 

  1. Ensinar a Revolta: Não a revolta cega, mas a indignação que nomeia. Ler Paulo Freire, Bell Hooks, Conceição Evaristo. Mostrar que a raiva deles é justa. Ensinar a história de baixo para cima, a dos quilombos, das lutas operárias. Fazer da aula um espaço para dizer: "Isso que você sente? É porque estão roubando sua vida. E você tem direito à raiva". 

  1. Ser Trincheira Afetiva: Quando falta tudo, sobra (ou deve sobrar) o acolhimento. Nosso colo, nosso ouvido, nosso olhar que não desiste. Um "bom dia" que vale um prato de comida para a alma. Proteger o brilho nos olhos como o bem mais precioso. Salvar a imaginação com contação de histórias, com música, com um desenho livre na lousa. A imaginação é o primeiro território a ser libertado. 

  1. Subverter os "Conteúdos": Ensinar matemática calculando o custo da cesta básica. Ensinar português lendo cartas de mães presas ou poesia marginal. Ensinar geografia mapeando os territórios do tráfico e da especulação imobiliária na comunidade. Fazer da ciência uma ferramenta para entender a poluição do rio local. Tornar o conhecimento uma arma de análise do mundo real. 

  1. Cultivar a Beleza e o Sonho: Contra o terror que destrói, plantar insistentemente o belo. Uma flor no vaso de garrafa PET, um mural coletivo, um sarau, um teatro sobre seus medos e suas esperanças. Reafirmar, a cada gesto, que a felicidade, o sorriso e o sonho são direitos inegociáveis, e não privilégios. 

  1. Organizar a Resistência: Sozinhos, somos vencidos pelo cansaço. Juntos, somos uma assembleia. Fortalecer os laços com a comunidade, com as mães em luta. Denunciar, coletivamente, a falta de tudo. Transformar a escola em um núcleo de pressão popular. Lutar por uma Associação de Pais e Mestres que seja braço, e não cabresto. 

Salvar uma criança diante desse terror não é dar-lhe apenas as letras. É dar-lhe uma lanterna para que ela mesma enxergue os contornos da jaula. É dar-lhe a voz para que nomeie seus carcereiros. É dar-lhe a certeza de que sua vida importa, que sua dor não é natural, e que sua alegria de aprender é um ato revolucionário. 

Nossa luta, dentro da sala, é pela sobrevivência da humanidade deles. E nossa. É ensinar, no fim das contas, que mesmo cercados pelo desmonte, ainda podemos — e devemos — sonhar com o dia em que a escola pública não será a última trincheira, mas a primeira pá de uma nova cidade, construída pelas mãos daqueles que aprenderam, na dor e na alegria, a ser livres. 

 



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