SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

sábado, 6 de dezembro de 2025

O Futebol Global: A Engrenagem e os Donos da Bola por Egidio Guerra.

 

O futebol moderno transformou-se numa indústria global colossal, uma engrenagem complexa e impiedosa onde o jogador, por mais genial que seja, é frequentemente uma peça intercambiável. Este mercado movimenta trilhões, ditada por interesses financeiros, petrodólares e uma lógica de espetáculo que pouco tem a ver com o amor simples pelo jogo. 


Os principais atores já não são apenas clubes históricos e federações. Grandes conglomerados midiáticos, fundos de investimento, patrocinadores multinacionais e, mais recentemente, estados-nação usam o futebol como veículo de soft power e diversificação econômica. A entrada agressiva da Arábia Saudita com bilhões de dólares não é um mero capricho; é uma estratégia geopolítica clara. Trata-se de projetar uma imagem moderna e aberta ao mundo (Vision 2030), desviar atenções de críticas internas, aquecer a economia turística e de entretenimento, e, por fim, conquistar influência nos corredores de poder do esporte mais popular do planeta. É capital como ferramenta de legitimação global. 

Enquanto isso, na base piramidal, milhões de crianças sonham em ser a próxima estrela. Comunidades inteiras depositam esperanças e recursos escassos nessa loteria desumana. A preparação começa cedo, em escolinhas e peneiras, alimentando um sonho que, estatisticamente, será impossível para uma esmagadora maioria. O caminho está repleto de armadilhas: para cada jogador que alcança o profissionalismo, milhares de talentos reais são abandonados pelo caminho. O abandono vem pela falta de dinheiro para continuar, por lesões mal cuidadas, por uma estrutura que descarta seres humanos com a mesma frieza com que troca passes. Esse desamparo muitas vezes leva a dramas sociais profundos: depressão, envolvimento com drogas, criminalidade ou prostituição – o sonho quebrado que vira pesadelo. 


A indústria do futebol, como apontaria a Escola de Frankfurt, doméstica as paixões e as revolta através do "amor ao clube". Essa identificação tribal, cultivada com hinos, símbolos e uma narrativa de "família", serve para mascarar as relações essencialmente mercantis e acionárias. O torcedor, consumidor leal, canaliza suas energias e frustrações para a rivalidade esportiva, enquanto o clube pode ser vendido, sua identidade distorcida e seus jogadores negociados como commodities, sem que o laço emocional fundamental se rompa. É uma eficiente "indústria cultural" que produz conformismo e lucro. 



Os Lados Positivo e Negativo: O Duelo Eterno 

Lado Positivo: 

  • União e Identidade: As Copas do Mundo e os clubes são potentíssimos criadores de identidade coletiva, capazes de unir nações inteiras além de diferenças políticas, sociais e religiosas. 

  • Beleza e Catarse: O jogo em sua essência é arte, criatividade pura, um espetáculo de superação e técnica que proporciona alegria genuína e catarse emocional para bilhões. 

  • Mobilidade Social: Para uma minoria ínfima, mas visível, é uma via real de ascensão econômica e fama global, inspirando gerações. 

  • Desenvolvimento Infraestrutural: Grandes eventos como as Copas podem (embora nem sempre) deixar legados em estádios, transporte e visibilidade turística. 

Lado Negativo: 

  • Commodificação e Desigualdade: Transforma paixão em produto, aprofundando abismos financeiros entre clubes, ligas e nações. Os bilhões circulam no topo, enquanto a base sobrevive com migalhas. 

  • Exploração de Sonhos: Alimenta uma fábrica de ilusões que explora o trabalho e o sonho de jovens e famílias pobres, descartando a maioria sem rede de segurança. 

  • Hipocrisia e Sportswashing: Serve para lavar a imagem de regimes questionáveis, que usam o esporte como cortina de fumaça para violações de direitos humanos (Qatar 2022, Arábia Saudita são exemplos recentes). 

  • Impacto Social Negativo: Copas podem gerar dívidas públicas enormes, remoções forçadas de comunidades pobres e priorizar investimentos em estádios de luxo em detrimento de saúde e educação. 




O futebol, portanto, vive nesta dualidade permanente: é o jogo bonito, fonte de emoções puras e sonhos coletivos; e, ao mesmo tempo, é um negócio brutal, um espelho das piores desigualdades e um instrumento de poder. A chave para o torcedor contemporâneo talvez seja conseguir amar o esporte – e celebrar uma Copa do Mundo – sem jamais perder a capacidade crítica de enxergar a engrenagem que move, e muitas vezes esmaga, aqueles que o fazem possível. 

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