Há uma geografia viva pulsando sob o mapa oficial das cidades. Uma espacialidade social, como nos ensina Benno Werlen, que não é feita apenas de coordenadas, mas de trajetórias, afetos e lutas. É a geografia construída pelo caminhar diário, pela luta por um teto, pela feira livre que transforma o espaço público em lar. Esta geografia tem uma voz – múltipla, dissonante e profundamente sábia. É a voz do povo, que, nas palavras de Carlos Piovezani, não é um ruído, mas um discurso pleno de sentido, uma demanda por reconhecimento que precede e funda a própria política. Escutar esta voz não é um gesto de benevolência, mas uma necessidade urgente para que as políticas públicas deixem de ser um monumental desperdício de recursos e uma ferramenta de opressão.
Os bilhões desviados, os indicadores sociais que teimam em não melhorar, são o sintoma de um sistema que trata pessoas como feudos e territórios como espólios. Políticos, amparados por tecnocratas – os modernos "capitães do mato" da burocracia – e aparelhando instituições à moda da extrema direita, perpetuam uma lógica perversa. Eles não roubam apenas o dinheiro; roubam a possibilidade do futuro. Essa "microfísica do poder", detalhada por Michel Foucault, opera nos corpos e nos espaços, disciplinando a vida e silenciando dissidências. Contra essa "desordem" imposta de cima, que Richard Sennett analisa como a ruptura dos laços urbanos, erguem-se as vozes insurgentes.
Essas vozes não são uníssonas. Elas carregam o princípio da interseccionalidade, como Patricia Hill Collins demonstra em Bem Mais Que Ideias. Não se trata apenas de classe, mas do entrelaçamento de raça, gênero e território. A luta da mulher negra da periferia por creche e contra a violência policial é distinta e inseparável da luta do movimento por moradia no centro expandido. São essas "lutas na macro política" – para usar a expressão de Milton Santos em A Natureza do Espaço – que forjam uma cidadania insurgente, termo cunhado por James Holston. Esta não é uma cidadania outorgada por leis abstratas, mas conquistada na prática cotidiana, na construção do barraco que vira casa, na ocupação que vira bairro, na rua que vira praça.
Foi assim que as metrópoles, como narra Ben Wilson, sempre se construíram: a partir de baixo, pela força de comunidades que se organizam. A verdadeira geografia da inovação, como apontam Maria Terezinha Serafim Gomes e Regina Helena Tunes, não está nos polos de tecnologia isolados do tecido social, mas nos arranjos produtivos locais, nas economias solidárias, na criatividade feroz de quem precisa reinventar a vida todos os dias. É aí, no território vivido, que técnica e tempo, razão e emoção, na visão seminal de Milton Santos, se fundem para gerar formas de existência resistentes.
Walter Benjamin, na leitura de Michael Löwy (Aviso de Incêndio), nos alerta para a necessidade de escutar os "estilhaços da tradição dos oprimidos". Esses estilhaços são as histórias não contadas, os saberes marginalizados, a memória dos que lutaram. Ignorá-los é assinar a perpetuação da catástrofe. A cidade, para Sennett, só se torna um artefato humano quando é capaz de acolher a diferença, o conflito e a cooperação – quando seus espaços são abertos ao diálogo e não à segregação.
Portanto, inovar em políticas públicas exige uma virada epistemológica e política radical: sair dos gabinetes climatizados e mergulhar na espacialidade social concreta. É preciso criar mecanismos institucionais não para "ouvir" o povo como um ritual vazio, mas para ser transformado por sua voz. Significa substituir a tecnocracia pelo diálogo genuíno, os feudos políticos por assembleias territoriais, a lógica extrativista por uma economia do cuidado.
O verdadeiro impacto social não será medido por planilhas de excel, mas pelo reconhecimento de que bilhões estão sendo recuperados para a vida quando uma comunidade vê seu projeto de horta urbana financiado, sua creche construída, seu direito à cidade garantido. É o momento em que a voz, antes sussurro na periferia, ecoa no centro do poder, não para pedir licença, mas para governar com ele. Só assim desmontaremos a engrenagem que rouba o presente e o futuro, e construiremos, a partir das ruínas, uma cidade verdadeiramente comum: feita de vozes, de corpos e de direitos insurgentes.
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