SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Como fuzis importados chegam às mãos do crime organizado no Brasil

 

Grupo de policiais com um suspeito, em foto na rua. Estão fortemente armados e uniformizados. O suspeito usa boné, olha pro chão e está descalço

Crédito,AFP via Getty Images

Legenda da foto,Policiais escoltam um suspeito preso durante a Operação Contenção, na favela da Vila Cruzeiro, no complexo da Penha, no Rio de Janeiro, em 28 de outubro de 2025
    • Author,Luiz Fernando Toledo*
    • Role,Da BBC News Brasil, em Londres

Uma megaoperação policial feita no Rio de Janeiro nesta terça-feira (28/10), resultou em ao menos 81 prisões e 64 mortes. Outras 54 mortes estão sendo investigadas, de acordo com o governador do Estado, Claudio Castro.

A ação, que envolveu cerca de 2,5 mil policiais, tinha como alvo a facção Comando Vermelho, nos complexos do Alemão e da Penha, na capital.

Um dos destaques anunciados pelo governo foi a apreensão de ao menos dezenas de fuzis — o número oficial é de 93, mas o governador falou em mais de 100.

Castro comemorou os resultados com uma imagem publicada em suas redes sociais, que mostra algumas dessas armas apreendidas, e divulgou um número ainda maior do que o informado pela polícia.

"O Rio de Janeiro termina o dia com uma imagem que fala por si: mais de 100 fuzis apreendidos pelas Polícias Civil e Militar."

Mas como esses fuzis chegam em grandes quantidades às mãos do crime organizado?

Publicação na rede social Instagram do governador do estado do Rio de Janeiro, Claudio Castro, que mostra uma grande quantidade de fuzis apreendidos em operação policial e logotipos das polícias estaduais

Crédito,Reprodução

Legenda da foto,Governador do RJ comemorou apreensão de fuzis em operação

O aumento da apreensão de fuzis

Fuzis representam uma pequena parte do total de armas apreendidas no país, mas o número total de apreensões vem crescendo.

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É o que aponta um artigo com dados inéditos sobre o tema, dos pesquisadores Bruno Langeani e Natalia Pollachi, publicado em setembro deste ano no periódico Journal of Illicit Economies and Development.

Esse tipo de arma, explicam os pesquisadores, é crucial para que as facções criminosas exerçam poder de controle dos territórios, possam ameaçar moradores, consigam enfrentar outras facções e tenham poder de fogo contra a polícia.

"Como resultado, as forças estatais são cada vez mais obrigadas a utilizar veículos blindados e grandes contingentes para entrar nessas áreas, enfrentando frequentemente uma resistência armada significativa", explicam.

"O fuzil traz uma preocupação adicional em áreas densamente povoadas. O tipo de ferida que a bala de fuzil produz é muito mais grave, com menor chance de sobrevivência", diz Natália Pollachi, diretora de projetos no Instituto Sou da Paz e uma das autoras do artigo.

"Fuzis têm como característica o disparo com muita energia, que pode atingir o alvo com precisão a mais de 500 metros de distância, além da possibilidade de disparo automático ou semiautomático, muito mais perigoso", diz.

A pesquisa analisou dados de apreensões de armas entre 2019 e 2023 no país, tanto de policiais estaduais quanto da federal.

O número de fuzis apreendidos foi de 1.139, em 2019, para 1.650 em 2023, o mais mais alto na série histórica analisada.

Só no Rio de Janeiro foram 797 armas do tipo apreendidas em um único ano. No país são apreendidas mais de 100 mil armas por ano, segundo os dados oficiais.

Dois policiais militares uniformizados e armados fazem incursão em favela no Rio de Janeiro

Crédito,AFP via Getty Images

Legenda da foto,Policiais militares patrulham durante a Operação Contenção na favela da Vila Cruzeiro, no complexo da Penha, no Rio de Janeiro

De onde vieram os fuzis?

Infografia mostra os caminhos de contrabando de fuzis para o Brasil, destacando os Estados Unidos como principal fabricante

Os pesquisadores apontam ao menos três origens conhecidas dos fuzis: os fabricados no Brasil e desviados, os importados e aqueles fabricados de forma clandestina, tanto com peças importadas quanto produzidas dentro do país.

A pesquisa diz que alterações legislativas feitas durante o governo Bolsonaro flexibilizaram as regras de quem pode comprar armas no Brasil, inclusive de calibre antes restritos aos militares.

Além de ter impulsionado o mercado legal, dizem os pesquisadores, houve também "um notável desvio" para o ilegal.

"Ao longo de quatro anos foi permitido para pessoas cadastradas como CACs [sigla para um registro oficial de armas por pessoas físicas: Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador] comprar fuzis. Uma única pessoa podia comprar 30 armas", diz Pollachi.

A facilidade teria auxiliado no desvio para o crime. "Nem todo mundo tem acesso a um esquema de tráfico internacional, mas qualquer um tem um primo com o CPF limpo. É muito mais fácil cooptar um laranja do que participar de um esquema de tráfico."

Essas alterações foram revogadas em 2023, mas quem comprou armas nos anos anteriores não tem obrigação de devolvê-las. Houve também uma alteração sobre quem monitora os CACs: a atribuição foi transferida do Exército para a Polícia Federal.

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) identificou, a pedido do Congresso, uma série de fragilidades nesse controle.

Um dos problemas encontrados foi que o Exército não checava a veracidade de informações apresentadas por quem faz os registros. Também não havia informações sobre fiscalizações feitas aos clubes de tiro.

Fabricação nos EUA e Europa

A Polícia Militar do Rio também fez um levantamento com base nas armas que apreendeu em 2024 (sem qualquer relação com a atual operação, portanto) e identificou que praticamente todas (94,7%) tinham sido fabricados no exterior, principalmente nos Estados Unidos (60% das apreensões). Outros países citados são Israel, Alemanha, Áustria e República Tcheca.

"Por isso, a importância de a indústria produtora de armas também fazer parte do enfrentamento ao crime organizado, com a gerência sobre o caminho dos armamentos e atuando em conjunto com o governo federal no controle do tráfico internacional de armas", disse o governador Claudio Castro, em resposta aos dados, quando foram divulgados.

Os dados nacionais apontam também predominância dos EUA, com fabricantes como Colt e Armalite na lista das mais aprendidas.

Uma rota comum vista por autoridades é importar armas de forma legal dos EUA via Paraguai, e depois transportá-las ilegalmente para o Brasil.

Houve também casos de envio direto dos EUA ao Brasil, como quando policiais apreenderam 60 fuzis no Aeroporto Internacional do Rio (Galeão), em 2017. O valor de cada arma era estimado em R$ 70 mil.

O arsenal incluía modelos AR-10 e AK-47 e estava disfarçado em contêineres com aquecedores para piscinas. A carga foi enviada por um brasileiro que morava nos EUA, dono de empresa de importação e exportação de produtos.

Outro fluxo envolve empresas sediadas em países europeus. Em dezembro de 2023, a Reuters noticiou que autoridades brasileiras e paraguaias fizeram operações para apreender armas enviadas da Europa para serem vendidas a grupos criminosos no Brasil.

Uma empresa baseada no Paraguai era responsável por importar armas de Croácia, Eslovênia e República Tcheca.

Armas fabricadas em local clandestino no chão

Crédito,Polícia Federal

Legenda da foto,Depósito com fuzis fabricados de forma clandestina, no interior de São Paulo

Fabricação clandestina e comércio de peças avulsas

Um detalhe que chama a atenção nos dados de apreensões é que uma parte das armas é registrada sem um fabricante ou origem.

Para os pesquisadores, isso pode ter acontecido por falta de treinamento dos profissionais que fazem o registro das apreensões ou ainda por serem armas fabricadas de forma clandestina.

No levantamento feito pela Polícia do Rio (com dados de apreensões de 2024) há a informação de que parte das armas apreendidas no Estado chegou em peças avulsas ao custo de cerca de R$ 6 mil. Depois de montado, o fuzil passa a valer cerca de R$ 50 mil.

Uma das formas de fabricação clandestina é a importação das peças separadas dos EUA.

"Lá as peças são vendidas com pouco controle. Há até kits para você montar seu próprio fuzil, sem número de série", diz Natalia Pollachi, do Instituto Sou da Paz.

Um dos sites vistos pela BBC News Brasil mostrava até mesmo uma "promoção de Halloween" para comprar um desses kits por US$ 400 (cerca de R$ 2,1 mil).

Há ainda montagem de armas com peças fabricadas de forma artesanal. Se no passado isso era feito de forma rudimentar, hoje esse modelo também se especializou, com peças sendo produzidas em máquinas profissionais.

Um caso recente desse modelo foi registrado por policiais no interior de São Paulo em agosto deste ano.

As autoridades encontraram uma fábrica clandestina em Santa Bárbara d'Oeste, que se apresentava como uma produtora de peças aeronáuticas. A investigação descobriu a fabricação usava "equipamentos industriais de alta precisão."

*Gráficos feitos por Caroline Souza, da Equipe de Jornalismo visual da BBC News Brasil

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