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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Amor não é o porto seguro, mas sim o oceano tempestuoso que nos leva a navegar pelos mares mais profundos de nós mesmos! Por Egidio Guerra

 


O amor, na visão redutora do senso comum, é frequentemente confinado ao território do idílio, do conforto e da plenitude. No entanto, para os artistas e nas grandes obras que nos comovem, o amor se revela uma força muito mais complexa e, por vezes, brutalmente transformadora. Ele não é o porto seguro, mas sim o oceano tempestuoso que nos leva a navegar pelos mares mais profundos de nós mesmos. É uma chave de ignição, um "sinal verde" para a jornada mais importante: a busca pelo self. 


A metáfora do "Sinal Verde" de Matthew McConaughey é um ponto de partida perfeito. Em suas memórias, McConaughey fala sobre perseguir a sua "lenda pessoal", aquele chamado único que dá sentido à existência. E o que é esse sinal verde senão uma permissão, outorgada pelo amor próprio e por um amor maior pela vida, para arriscar, crescer e se tornar quem se deve ser? O amor, aqui, é o combustível da aventura individual. É o antídoto para o medo que nos mantém parados no vermelho. 


Esta mesma energia impulsiona os artistas icónicos. Freddie Mercury, como retratado por Lesley-Ann Jones, era um turbilhão de amor e dor. Seu amor pela música era absoluto, um fogo alquímico que transformava angústia pessoal, solidão e uma identidade complexa em hinos de pura catarse, como "Somebody to Love" ou "The Show Must Go On". O amor em Freddie não era apenas romântico; era uma força criativa voraz, uma necessidade de se conectar com as multidões e, através dessa conexão, talvez encontrar a si mesmo. Já Bruce Springsteen canta o amor como âncora e como fuga. Em seus álbuns, o amor é a tábua de salvação da working-class, o que dá dignidade à luta ("If I Should Fall Behind"), mas também é o que motiva a fuga da asfixia da cidade pequena ("Thunder Road"). O amor, para Springsteen, é tanto a raiz quanto as asas. 



Ao nos voltarmos para a literatura contemporânea, testemunhamos uma exploração mais sombria e desafiadora do amor. 
"Uma Vida Pequena", de Hanya Yanagihara, é um testemunho devastador de como o amor, por mais puro e leal que seja, pode ser impotente perante os demónios internos de alguém. Jude sofre uma agonia inimaginável, e o amor incessante de Willem, Harold e Andy não é capaz de "curá-lo". A obra pergunta: o amor é redentor ou é simplesmente uma testemunha, um conforto que, embora não apague a dor, torna-a suportável? Neste romance, o amor não vence tudo; ele coexiste com o trauma, um pilar de dignidade em uma paisagem arrasada. Outros romances atuais exploram nuances similares – o amor como construção frágil, como pacto de sobrevivência ou como espelho de nossas falhas mais profundas.
 




É precisamente nesta dimensão mais profunda, sombria e alquímica que o pensamento de Carl Gustav Jung ilumina a discussão. Jung via o processo de individuação – tornar-se quem se é verdadeiramente – como uma espécie de Alquimia interior. Na alquimia, a "prima matéria" (a psique inconsciente e fragmentada) é submetida a fogo e decomposição para ser transmutada em ouro (o Self, a totalidade psíquica). E qual é o fogo alquímico por excelência, senão o amor? 



O amor, na perspectiva junguiana, é a força que nos obriga a confrontar nossa Sombra – os aspectos de nós mesmos que rejeitamos. Em um relacionamento profundo, projetamos nossa sombra no outro e somos forçados a integrá-la. Ele também nos conecta com o Anima/Animus (a contraparte psíquica masculina/feminina), levando a uma maior completude. O amor, portanto, não é um estado de pasividade, mas um cadinho de transformação. É doloroso, desorganizador e, se bem integrado, nos torna mais inteiros. É a "conjunctio" dos alquimistas, o sagrado casamento dos opostos dentro de nós. 



Esta não é uma ideia nova. Os grandes mestres da alma humana já a intuíam. 
Dostoiévski, em "Os Irmãos Karamázov", faz o starets Zóssima dizer: 
"Amor em ação é uma coisa cruel e terrível comparada ao amor em sonhos." O amor real exige luta, paciência e o perdão de falhas alheias e próprias. É um verbo ativo, não um sentimento passivo. Em "Crime e Castigo", é o amor incondicional de a possibilidade de redenção através do sofrimento compartilhado. Já Victor Hugo, em "Os Miseráveis", nos dá talvez a mais poderosa alegoria do amor redentor: o bispo Myriel, com seu amor cristão radical, salva Jean Valjean não com palavras, mas com um ato de amor que quebra as correntes do ódio. O amor aqui é uma força social e divina, capaz de transmutar um condenado em um santo. 



Portanto, o papel do amor na vida, tal como retratado por esses artistas e pensadores, é multifacetado. Ele é o 
Sinal Verde de McConaughey para a jornada, o fogo criativo de Freddie Mercury, a âncora e a estrada de Springsteen, a testemunha resiliente de "Uma Vida Pequena" e o cadinho alquímico de Jung que nos transforma através do sofrimento. É a redenção através da compaixão em Dostoiévski, a graça que salva em Victor Hugo e o amor Hamnet de Shakespere que gerou a obra Hamlet.
 


No fim, o amor e o mar não é a resposta simplista para todos os problemas. É a pergunta complexa que nos leva a mergulhar nas profundezas. É a força que não promete um "felizes para sempre", mas sim uma vida mais verdadeira, mais completa e, por mais dolorosa que seja, infinitamente mais rica. Ele é tanto o caminho quanto a meta na grande obra de nos tornarmos quem somos. 







 

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