SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

domingo, 19 de outubro de 2025

A Simbiose Essencial: Legitimidade e Legalidade por Egidio Guerra.


 A premissa central é irrefutável: a democracia substantiva e a justiça efetiva só florescem quando legalidade (o que está na lei) e legitimidade (o que é aceito como justo e moral pela sociedade) caminham juntas. A legalidade sem legitimidade é tirania disfarçada de processos; a legitimidade sem algum grau de legalidade é caos. 


Pensadores como Adam Ferguson, em seu " Ensaio sobre a História da Sociedade Civil" (1767), já alertavam para os perigos da corrupção do vínculo social. Ferguson via a sociedade civil não como um contrato frio, mas como um organismo vivo sustentado por um "espírito público" – a virtude cívica. Quando as leis (legalidade) são manipuladas para beneficiar uns poucos, esse espírito público se corrói, e a legitimidade do sistema desmorona. A corrupção, portanto, não é apenas um desvio de recursos, mas um desvio de confiança, que mina a fé das pessoas nas instituições. 

A Corrosão da Base e a Ascensão dos Feudos Modernos 

Quando a corrupção sistêmica corrói a legitimidade, a população perde a fé de que o sistema a representa. A impunidade, por sua vez, corrói a legalidade, pois demonstra que a lei é seletiva – uma corda que só prende os fracos. Este é o terreno fértil para a ascensão de novas formas de autoritarismo, que não necessariamente se apresentam com uniformes militares, mas com ternos de tecnocratas. 

É aqui que os conceitos de Yanis Varoufakis ( "Tecnofeudalismo"
) e Anne Applebaum ("Autocracia S.A.") se tornam fundamentais.
 

  • Tecnofeudalismo: Varoufakis argumenta que o capitalismo está se transformando em uma nova forma de feudalismo. No lugar dos senhores de terra, temos senhores de dados e plataformas (Big Tech). Eles não trocam mercadorias no mercado; eles extraem renda e controle de seus "vassalos" (nós, usuários). Quando essa lógica contamina o Estado, as instituições públicas se transformam em feudos: o Ministério X é controlado por um grupo político, a estatal Y por um partido, o tribunal Z por uma facção jurídica. Cada feudo opera para extrair recursos e poder, não para servir ao bem comum. A legalidade é instrumentalizada para proteger esses feudos, destruindo sua legitimidade. 


  • Autocracia S.A.: Applebaum demonstra como as autocracias modernas funcionam como uma corporação. É uma rede de atores – políticos, oligarcas, burocratas, midiáticos – que pactuam como Máfias para capturar o Estado, distribuindo benefícios entre si enquanto mantêm uma fachada de democracia. Eles não precisam fechar o congresso; eles simplesmente o aparelham, transformando-o em um carimbo para suas vontades. A "legalidade" é mantida, mas a "legitimidade" é um cascão vazio. 

O Grito da Sociedade Civil: "No King!" e a Queda dos Muros 

A história é pontuada pelos gritos da sociedade civil quando a separação entre lei e justiça se torna intolerável. 

  • "No King!" (Revoluções Americana e Francesa): Este foi o grito primordial contra a tirania que se escondia atrás de uma legalidade divina e hereditária. Era a rejeição de um sistema onde a lei era a vontade de um só homem, destituída de legitimidade popular. 



  • Queda do Muro de Berlim e do Leste Europeu:
     Os regimes comunistas do Leste Europeu eram extremamente "legais" dentro de seus próprios sistemas constitucionais. Tinham constituições, códigos e tribunais. No entanto, eram totalmente ilegítimos. A queda do Muro em 1989 foi a explosão catártica de uma legitimidade popular há muito sufocada, que finalmente derrubou a fachada legalista da opressão.
     




  • Movimentos Anticoloniais na África e Índia: O colonialismo britânico na Índia e o português/francês na África eram estruturas legais complexas. Mas sua legitimidade era zero perante os povos subjugados. Figuras como Gandhi e Nelson Mandela lideraram lutas que eram, na essência, a restauração da legitimidade (o direito à autodeterminação) contra uma legalidade imposta pela força. 

Giorgio Agamben e o Estado de Exceção Permanente 


A obra de 
Giorgio Agamben, especialmente em "Homo Sacer" e nas ideias que permeiam "O Irrealizável", nos ajuda a entender a mecânica do poder quando a lei é esvaziada. Agamben fala do estado de exceção como o paradigma fundamental de governo moderno. É a suspensão da lei em nome da salvação do Estado. Quando as instituições são aparelhadas e transformadas em feudos, vivemos uma espécie de "estado de exceção permanente e difuso". A lei não é aplicada de forma igualitária (impunidade para os donos do poder), criando uma zona cinzenta onde a ação do Estado é, ao mesmo tempo, "legal" (porque ele dita as regras) e ilegítima (porque viola o espírito da justiça). O "irrealizável" da política, nesse contexto, é a busca por uma comunidade verdadeiramente justa dentro de um sistema cujas bases foram sequestradas.
 

O Caso Brasileiro: Vinte Centavos, Direitas Já e a PEC dosLadrões 


Os protestos no Brasil são manifestações contemporâneas desse mesmo fenômeno global. 

  • Protestos dos Vinte Centavos (2013): Foi um grito de legítima defesa contra a "autocracia S.A." brasileira. Não era só sobre o preço da passagem, mas sobre a qualidade dos serviços públicos (transporte, saúde, educação) – os feudos mal administrados por uma elite política vista como corrupta e distante. Foi a legitimidade popular se levantando contra uma legalidade percebida como cúmplice da espoliação. 

  • "Direitas Já" e "PEC dos Ladrões": Estes movimentos, com toda a sua complexidade e espectro ideológico, são a continuação desse mesmo sentimento. A "PEC dos Ladrões" (um termo popular para emendas que visam dificultar a responsabilização de autoridades) simboliza a instrumentalização da legalidade para proteger a impunidade. É a elite política usando seu feudo no Congresso (o "centrão") para criar uma lei que protege seus pares, corroendo ainda mais a já combalida legitimidade do sistema. O grito "Direitas Já", em sua essência, é um clamor por Justiça – uma Justiça que é percebida como outro feudo, lento e manipulável pelos poderosos. 

Conclusão: É Possível Derrubar o Feudo? 


A pergunta final é crucial: protestos como esses podem derrubar o "centrão", as elites e oligarquias?
 

A resposta é complexa. Protestos de rua são a explosão de legitimidade. Eles são capazes de derrubar governos (como vimos no Leste Europeu), forçar a abertura política (como na Índia pré-independência) e colocar temas na agenda. O Muro de Berlim caiu porque a legitimidade do regime ruiu por dentro e foi empurrada por protestos massivos. 

No entanto, derrubar um sistema feudal entrincheirado é uma tarefa muito mais árdua. O "centrão" não é um grupo, mas uma lógica de funcionamento do Estado – é a Autocracia S.A. em ação. Ele sobrevive a governos e se adapta. Para desmontá-lo, não basta a pressão de rua, que é intermitente. É necessário: 

  1. Reconquistar as instituições feudo por feudo: Isso exige reformas estruturais (política, tributária, judiciária) que são bloqueadas pelos próprios donos dos feudos. 

  1. Construir uma nova narrativa de legalidade: Uma que esteja inextricavelmente ligada à legitimidade popular, baseada na transparência, na accountability e na participação. 

  1. Enfrentar o Tecnofeudalismo: Regulando o poder das grandes corporações de dados que frequentemente se aliam ao poder político para a vigilância e o controle social. 




Os protestos são o sinal de alerta vermelho, o sintoma da doença terminal da legitimidade. Eles podem ser o pontapé inicial de uma transformação, como foram em 1989 ou em 2013. Mas a cura – a reconstrução de um sistema onde legalidade e legitimidade caminhem juntas – exige um trabalho longo, persistente e profundamente democrático de desmontar, tijolo por tijolo, os feudos que sequestraram o Estado e transformaram a coisa pública em propriedade privada. A alternativa, já nos alertava Ferguson, é a dissolução do próprio tecido da sociedade civil. 

 

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