SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

O Triângulo da Tensão: Democracia, Fascismo e a Sombra da Justiça por Egidio Guerra.

 


A relação entre Democracia, Fascismo e Justiça não é um simples jogo de forças binárias, mas um triângulo dinâmico e perverso, onde o equilíbrio é uma exceção e o desequilíbrio, a regra histórica. Através das lentes de obras fundamentais, podemos traçar um mapa desta geografia política sombria, onde a busca por uma justiça radical pode estrangular a democracia e abrir as portas para a barbárie.
 



A Democracia e sua Sombra Oligárquica: A Lei de Ferro de Michels 

O ponto de partida deve ser a própria democracia moderna. Em "Para uma Sociologia dos Partidos Políticos na Democracia Moderna", Robert Michels apresenta sua tese devastadora da "lei de ferro da oligarquia". Michels argumenta que qualquer organização, por mais democrática que seja sua intenção inicial, inevitavelmente desenvolve uma elite dirigente que acaba por defender seus próprios interesses, afastando-se da base que representa. A democracia, portanto, carrega em seu ventre o germe da sua própria corrupção: a burocratização, o afastamento das massas e a criação de uma classe política profissional. Este desequilíbrio interno – entre o ideal da soberania popular e a realidade da gestão oligárquica – cria um vazio de legitimidade e um profundo mal-estar, terreno fértil para demagogos que se apresentam como a "verdadeira voz do povo". 


O Precipício da Justiça Absoluta: A Lição de Robespierre e Victor Hugo 

A Revolução Francesa é o laboratório primordial deste desequilíbrio. Biografias de Robespierre e livros como "A Queda de Robespierre: 24 Horas que Definiram o Rumo da Revolução Francesa" ilustram com clareza sangrenta como o desejo de uma justiça pura e absoluta pode degenerar em terror. Robespierre, o "Incorruptível", não era um sádico, mas um ideólogo. Ele acreditava possuir um monopólio da virtude cívica. Em sua mente, qualquer oposição ao governo revolucionário não era uma disputa política legítima, mas uma evidência de traição e corrupção moral. A justiça, desvinculada do devido processo legal e da clemência, transforma-se em sua paródia: o Tribunal Revolucionário e a guilhotina. 


Victor Hugo, em "93", capta poeticamente este dilema. A obra coloca frente a frente os ideais da Revolução e seus horrores, mostrando que a luta pela liberdade pode exigir atos de grande violência. O romance questiona onde está a verdadeira justiça: na aplicação impiedosa da lei revolucionária ou no ato de misericórdia que a transcende? A queda de Robespierre é o momento em que a Revolução devora seu próprio filho, demonstrando que uma justiça que não tolera a ambiguidade e o erro humano acaba por destruir a própria comunidade que jurou salvar. É o primeiro aviso: o caminho do absolutismo moral, mesmo quando pavimentado com as melhores intenções, leva ao abismo. 


A Passagem do Abismo: Quando o Desencanto se Transforma em Fascismo
 

É neste terreno – o desencanto com a democracia oligárquica e o caos gerado por projetos de transformação radical – que o fascismo floresce. "M, o Filho do Século" de Antonio Scurati é um retrato anatômico deste processo. Através de uma narrativa poderosa, Scurati mostra como Benito Mussolini não tomou o poder em um golpe de teatro, mas sim explorou metodicamente o medo, a humilhação nacional e a violência de rua. O fascismo italiano, como depois o nazismo alemão (cujas biografias detalham a estratégia de Hitler de usar as instituições democráticas da República de Weimar para depois destruí-las), não rejeita a linguagem da "justiça". Pelo contrário, ele a sequestra. 


A "justiça" fascista não é universal; é tribal. É a justiça para o "povo eleito" (a nação, a raça) contra os "inimigos internos" – socialistas, liberais, judeus. William T. Vollmann, em seu massivo "Central Europa", explora as raízes profundas deste ethos na região que deu berço ao nazismo. Ele traça um panorama de um mundo em decomposição, de impérios falidos e identidades feridas, onde noções distorcidas de honra, destino e vingança criaram um caldo de cultura para o que viria. O fascismo oferece uma "justiça" rápida, visceral e espetacular, contrastando com a lentidão e os compromissos da justiça democrática. Ele promete acabar com a corrupção dos partidos (a "lei de ferro" de Michels vista como traição) e restaurar a grandeza nacional, substituindo a complexidade pela simplicidade do porrete. 


O Desequilíbrio Final: A Justiça como Arma 

O desequilíbrio final, portanto, manifesta-se no sequestro do conceito de Justiça. 

  • Na Democracia em crise (pela lei de ferro de Michels), a justiça é percebida como lenta, parcial e a serviço dos poderosos. 

  • No projeto revolucionário radical (a la Robespierre), a justiça é elevada a um ideal tão puro que se torna terror, aniquilando o dissenso. 

  • No Fascismo (retratado por Scurati e as biografias do nazismo), a justiça é rebaixada a uma ferramenta de vingança e purificação étnica ou política. 

A lição que emerge deste corpus de obras é uma advertência severa. A democracia é um sistema frágil, constantemente ameaçado por suas próprias imperfeições. O maior perigo não vem necessariamente de um inimigo externo, mas da tentação de buscar um atalho em direção a uma "justiça" definitiva. Seja pela via da pureza ideológica, que leva ao terror jacobino, seja pela via do nacionalismo tribal e da violência, que leva ao fascismo, o resultado é o mesmo: a substituição do debate pela dogmática, do pluralismo pela homogeneidade, e da lei pela força. Manter o equilíbrio neste triângulo tenso exige uma vigilância eterna contra os absolutismos, sejam eles da virtude, da nação ou da raça. Exige, acima de tudo, a defesa de uma justiça que seja processual, imperfeita e humana – a única compatível com uma democracia verdadeiramente viva. 


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