SABERES TRANSDISCIPLINARES E ORGÂNICOS.

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

A Tela em Ruptura: Deleuze, Bourdieu e a Revolução do Olhar por Egidio Guerra





O pensamento do filósofo Gilles Deleuze sobre o cinema e a pintura, quando colocado em diálogo com as análises sociológicas de Pierre Bourdieu sobre a revolução de Édouard Manet, oferece uma ferramenta poderosa para compreender como a arte não representa o mundo, mas cria novos modos de percebê-lo e de pensar. Ambos, cada um a seu modo, investigam os momentos de ruptura onde as estruturas de percepção consagradas são desmontadas, dando lugar a um novo "regime de sensações". 


Deleuze: A Imagem-Tempo e a Função Óptica da Pintura 

Para Deleuze, o cinema não é simplesmente uma sucessão de imagens em movimento, mas a criação de dois grandes regimes de signos: a Imagem-Movimento e a Imagem-Tempo. A Imagem-Movimento, dominante no cinema clássico, está ligada a uma lógica de ação e reação: um personagem age sobre o mundo e o mundo reage a ele. É um cinema orgânico, onde as situações se encadeiam de forma lógica. 

A grande virada, para Deleuze, ocorre com o pós-guerra e o cinema moderno (neorrealismo italiano, nouvelle vague), que introduz a Imagem-Tempo. Aqui, as ligações sensório-motoras se rompem. Os personagens já não sabem como reagir; tornam-se "videntes" em vez de "agentes". As situações são puramente ópticas e sonoras: são clichês perceptivos que precisam ser quebrados. O cinema deixa de narrar uma história linear para nos confrontar com o "puro tempo", com duração e memória em estado puro. 

É nesse ponto que a pintura, para Deleuze, desempenha um papel crucial. Em Francis Bacon: Lógica da Sensação, ele argumenta que a tarefa do pintor não é reproduzir o visível, mas tornar visíveis forças invisíveis. A pintura lida diretamente com a matéria, com a cor e a linha, para criar "corpos sem órgãos" – corpos desorganizados, que escapam à representação figurativa. Ela opera por meio de "sensações", que são blocos de perceptos e afetos independentes de quem os experimenta. 

Quando Deleuze fala da imagem cinematográfica moderna como "óptica pura", ele está descrevendo uma função similar à da pintura: a imagem não serve mais a uma ação, mas existe para ser contemplada, para forçar o pensamento. Ela se torna um "quadro" em movimento, um campo de forças visuais que nos atinge diretamente no sistema nervoso. 


Bourdieu: Manet e a Revolução do Campo Artístico 

Pierre Bourdieu, por sua vez, analisa a arte através da lente da sociologia. Em suas aulas no Collège de France sobre Manet, ele demonstra como o pintor não foi um gênio isolado, mas um agente que conseguiu uma revolução simbólica no "campo artístico" do século XIX. O campo artístico é um espaço social de lutas onde os participantes competem pela definição do que é "arte legítima". 

Manet, segundo Bourdieu, rompeu com o habitus acadêmico – o conjunto de disposições internalizadas que ditavam as regras da boa pintura (perspectiva, clair-obscur, temas nobres, pincelada invisível). Suas inovações – a planificação da superfície, a supressão do modelado, a utilização de cores puras, a escolha de temas contemporâneos e vulgares – não eram meramente estéticas. Eram gestos estratégicos que desestabilizaram toda a estrutura do campo. 

Ao recusar as hierarquias tradicionais e incorporar influências consideradas "inferiores" (como a gravura japonesa e a fotografia), Manet criou um novo jogo. Sua obra, como Olympia ou Almoço na Relva, funcionou como um "golpe de força simbólico" que deslegitimou as instituições vigentes (o Salão oficial) e forçou a criação de um novo espaço autônomo para a arte, onde o valor de uma obra passaria a ser definido pelos próprios artistas e por críticos especializados, e não mais pela Academia. 


O Encontro: A Tela como Campo de Forças 

A intersecção entre Deleuze e Bourdieu é fértil precisamente onde a filosofia da sensação encontra a sociologia da prática. 

  1. A Ruptura com o Clichê: Tanto para Deleuze quanto para Bourdieu, a arte verdadeira começa com a destruição dos clichês. Para Deleuze, o clichê é uma percepção automatizada, um lugar-comum visual que o artista (pintor ou cineasta) deve quebrar para liberar a sensação pura. Para Bourdieu, o clichê é a doxa do campo artístico, o conjunto de crenças não questionadas que Manet desafiou. A pintura de Manet é, portanto, um ato de "limpar a tela" dos clichês perceptivos e sociais de sua época. 


  1. A Autonomia do Plano de Composição: A "lógica da sensação" deleuziana encontra eco na autonomização do campo artístico descrita por Bourdieu. Manet, ao se libertar da representação servil e do academicismo, está criando um novo plano de composição. Este plano não obedece mais às leis da perspectiva renascentista (a janela para o mundo), mas às leis internas da própria pintura (a tela como superfície). É um espaço autônomo, assim como o campo artístico que ele ajudou a fundar é um microcosmo com suas próprias leis. 


  1. A Imagem como "Fato Social Total": A análise de Bourdieu nos lembra que a "sensação" deleuziana não nasce no vácuo. Ela é produzida por um agente (o artista) num campo social específico, em luta contra outros agentes e instituições. A força revolucionária da imagem de Manet é, ao mesmo tempo, uma força sensorial (que nos atinge visualmente) e uma força social (que reorganiza o mundo da arte). A imagem-tempo no cinema, por sua vez, não é apenas uma inovação estética, mas um sintoma de uma crise maior da ação no mundo moderno, um "fato social" que se expressa na forma fílmica. 



Conclusão 

Deleuze e Bourdieu, partindo de tradições radicalmente diferentes, convergem num ponto fundamental: a arte de vanguarda (seja a pintura de Manet ou o cinema moderno) é um operador de crise. Para Deleuze, ela causa uma crise na percepção, forçando-nos a pensar para além dos clichês. Para Bourdieu, ela provoca uma crise no campo social, redefinindo as regras do jogo artístico. 

Juntos, eles nos oferecem uma visão mais completa: a obra de arte é um campo de forças onde o sensível e o social se entrelaçam. A tela de Manet, assim como a tela do cinema moderno, não é um reflexo do mundo, mas um dispositivo que o desmonta e o recompõe, criando novos olhares e, consequentemente, novas possibilidades de existência. É na fissura aberta por essas rupturas que o pensamento e a sensação verdadeiramente nascem. 

 

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